"Quem Nasceu pra Lagartixa..."


Eu saía da escola doido pra almoçar e depois sair correndo de casa para encontrar os amigos e dar continuidade ao campeonato de bola de gude, ou de quebra-quebra de pião, ou, conforme fosse, para participar de um racha de bicicletas ou de carrinhos de rolimã. A lição de casa ficava para perto da hora de dormir. Caso eu não esquecesse de fazê-la.
O Vencedor saía junto comigo, ia calmamente para casa, almoçava mastigando escrupulosamente cada garfada, depois escovava os dentes durante uns quinze ou vinte minutos, e logo depois dedicava-se à lição de casa, que estudava com todo afinco, passava a limpo, fazia alguns desenhos em torno da página para enfeitá-la, e no dia seguinte ganhava elogios da professora e notas altas. (Tudo isto segundo relatos constantes de sua orgulhosa e incentivadora mãe, que fazia tudo para não vê-lo na rua misturado a nós, os “maus elementinhos” que teimavam em viver a infância como crianças.)
As notas do Vencedor eram sempre as mais altas da classe durante todos os anos em que estudamos na mesma escola pública.
Os anos passavam e ele ficava cada vez mais sério, mais circunspecto, mais sisudo, mais antipático, e mais indiferente à raça humana.
Seus esforços lhe valeram o ingresso na melhor universidade gratuita do país exatamente na época em que parei de estudar, e a mãe dele fazia questão de sair de casa, atravessar a rua e vir à nossa casa contar os últimos progressos de seu genial filho.
Ele estudava, estudava, estudava e colecionava diplomas e cursos extra-curriculares. Sempre um Vencedor. Sempre o primeiro da classe. Sempre o que se destacava em tudo. Sempre de cara fechada e de gestos comedidos.
Ele estudava e eu trabalhava e lia tudo que podia, tudo que me interessava, tudo que me atraísse ou me despertasse a curiosidade. Ele lia manuais, compêndios, apostilas, condensação de matérias, teses, e tudo mais que fosse acadêmico ou ligado às suas áreas de interesse.
Eu namorava uma das meninas do prédio em que ele morava- justamente a única pessoa a conseguir arrancar dele um sorriso e cumprimento amáveis- e ele sempre tinha que me pedir licença pra passar por nós. Sempre sozinho, sempre sobrecarregado de livros.
Eu trabalhava por conta própria, tinha meu velho carro, fazia meus horários e levava minha vida ao meu modo. Ele logo conseguiu um excelente emprego e tinha um carrão de luxo, da empresa, à sua inteira disposição o dia todo. Para buscá-lo todas as manhãs e voltar com ele à tarde. Ele embarcava e desembarcava sem um sorriso, sem nem mesmo dar um bom dia ao motorista que o servia. Uma simpatia o cara.
Um dia, quando eu saía do prédio e ele entrava, demos um tremendo esbarrão um no outro e apressei-me em pedir desculpas, mesmo tendo percebido que a culpa fora mútua.
Ele não abriu a boca. Foi muito mais ofensivo do que se houvesse me xingado. Olhou-me com todo o pouco caso que conseguiu expressar, limpou uma imaginária sujeira da roupa e retomou seu curto percurso para casa. Pensei em ficar calado e deixar pra lá, mas o olhar de pouco caso fora realmente eficiente. E como uma ofensa gera outra, mandei a minha:
- Retardado mental dos infernos !
Ele se voltou, deu alguns passos em minha direção, encarou-me e exigiu explicações pelo xingamento. Não as neguei:
- Você é um retardado mental, cara.
- Será mesmo? Eu sou um doutor. Sou vice-presidente de um grande empresa. E você, o que é? Nasceu pra lagartixa e nunca chegará a jacaré.
- Sou apenas gente normal. Um medíocre que sabe viver a vida. Que soube viver a infância, que curte a juventude, que tem amigos, que sabe sorrir, que sabe levar a vida sem seriedade demais. Que não se julga o dono do mundo. Que não é chamado de intragável, de intolerável, de antipático, de filho da uma puta como um certo executivo de alto nível que conheço. Um jacaré de papo amarelo que só sabe mostrar os dentes na hora de engolir o que lhe interessa.
- Tudo isso está me cheirando a inveja, meu caro. A muita inveja.
- Inveja? Quem é que invejaria um homem que não sabe sorrir? Que não teve infância? Que não sabe ter uma mulher ao seu lado? Que passou a vida toda grudado nos livros só pra aparecer e ganhar elogios dos professores? Um cara que tem jeito de estar sempre de mal com o mundo e que aposto que nunca deu uma boa gargalhada na vida. Pra te invejar, meu caro, só mesmo sendo também um retardado mental.
Durante um bom tempo seus olhos me fitaram por trás das lentes dos óculos, evidentemente caríssimos, e eu enfrentei seu olhar, que aos poucos ia mudando de expressão até que, para minha surpresa, ouvi-o dizendo:
-Em algumas das coisas que me disse, de certa forma, você até tem razão.
E mais não disse. Entrou em casa e eu fui para a minha.
Alguns meses depois a mãe dele foi à minha casa contar à minha mãe que ele fora promovido a presidente da Empresa.
Muitos meses depois ela foi à minha casa contar à minha mãe que a Empresa dele “engolira” outra empresa muito maior e que o filho crescera muito em importância no mundo dos negócios. A tal ponto que só poderia visitá-la nos Natais. E olhe lá...
Há exatamente trinta e três anos atrás ela atravessou a rua para nos contar, aos prantos, que o filho havia falecido. Que o filho fora vitimado por um enfarto fulminante antes dos trinta anos de idade, em plena reunião com a diretoria da empresa.
Nestes trinta e três anos decorridos desde que ele se foi, quantos amores eu tive, quantos filhos coloquei no mundo, quantos livros maravilhosos li e reli, quantos filmes bons assisti, quantos bons momentos me fizeram rir, chorar, emocionar, quantas viagens, quantos momentos de felicidade curti, quantas crianças lindas eu vi, quantos velhinhos e velhinhas maravilhosamente simpáticos me sorriram na rua ou nas filas, quanta coisa boa comi, quantas cervejas geladas bebi, quantas boas piadas ouvi e passei adiante, quantas derrotas amarguei e depois esqueci, quantas boas gargalhadas tive motivos para soltar, quanta vivência acumulei, quantos novos amigos agreguei e quão poucos inimigos fiz? Estou levando trinta e três anos de vantagens sobre ele. Por enquanto.
O Vencedor lutou muito e foi a nocaute antes do meio da luta.
Eu, o Perdedor, a lagartixa que nunca chegaria a jacaré, ainda estou por aqui e vivido o suficiente para entender que a lagartixa pode levar vantagens sobre o jacaré: ela sobe o quanto quer, por onde quer e – se quiser- fica olhando lá de cima. Tá certo que de vez em quando ela cai e um gato a pega, mas isso é da vida...
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 07/06/2007
Reeditado em 22/07/2007
Código do texto: T517088
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