Acordar
Acordo. O telefone está tocando, quem será a está hora da noite? “Querida atende por favor?”. Ela se senta lentamente na cama e se levanta até a sala. Está vestida com sua camisola, seus cabelos negros, lisos e longos estão soltos, sempre gostei deles assim. Atende ao telefone: “Alô? ... Sim. ... Como? ... A-ahn... ele?” Um barulho surdo me atinge, ela caiu de joelhos no chão e largou o telefone. Lágrimas percorrem o seu rosto, mas ela não fazia nenhum barulho além da respiração ofegante. “Querida? O que foi? Quem era?”. Ela não me responde. Por quê? “Amor, fala comigo”. O que aconteceu? Tento colocar minha mão em seu ombro para consolá-la.
Acordo. Estou na minha cama, é de manhã. Onde está Ana? No banheiro? Não ela não está aqui. Na cozinha? Também não está aqui. Em passos vacilantes chego até a garagem, o carro dela não está aqui. Onde será que ela foi? E por que levou o meu carro? Talvez ela tenha falado com minha mãe. Ela está aqui na sala da casa dos meus pais. Sentada com seu velho vestido azul e seu cabelo preso conversando com minha mãe, as duas choram. Talvez meu pai saiba sobre o telefonema. Ele está na cozinha. “Pai, você sabe o que...”. Ele está bebendo! Faz dez anos que ele largou. É isso! “Pai, seu sem vergonha, larga esse copo!” Ele olha para mim assustado, pálido.
Acordo. Estou na minha cama. Minha esposa está ao meu lado. Ainda veste o vestido azul, ela não tirou para dormir? Deve estar muito cansada foi um dia longo. A luz do corredor está desligada. Eu sempre a deixo ligada, será que a lâmpada queimou? Levando da cama, ela se mexe um pouco, Ana geme reclamando, se vira e volta a dormir. Vou até a luz com as mãos tateando a parede para não bater em nada. Ligo-a. A lâmpada está ótima, será que eu que esqueci de ligar? Ana grita! “Que foi amor?”. Ela sai do quarto com um bastão de basebol. Nós nunca tivemos um bastão. “Ana? O que foi amor?” Ela passa por mim e fica olhando para o interruptor. “Ana?”. Ela se assusta, vira lentamente.
Acordo. Estou na casa dos meus pais. Meu pai ainda está dormindo. Ressaca. Voltou a beber o desgraçado. Minha mãe está na sala olhando para uma foto minha. Ela chora. O sol está alto, é meio-dia. “Mãe, o que você fez para o almoço?”. A campainha toca, é Ana. Está usando uma calça jeans e uma camisa vermelha. Ela nunca gostou de vermelho. Pendura seu casaco no cabide. O Cabelo dela está preso, ela nunca vai soltar? Abraça-se com minha mãe, ficam um bom tempo assim. Sentamos todos à mesa. Silêncio. O vício do meu pai sempre nos incomoda assim. Minha mãe quebra: “Ainda não acredito.”.
Acordo. Estou na janela vendo Ana pendurar as roupas no varal. Ela é linda, com aquela saia azul e a camisa rosa, mas teima em usar o cabelo preso. Eu tenho muita sorte em tê-la. Ela olha para mim.
Acordo. Estou na minha cama. Ana não está. Deve ter ido trabalhar. Pego o telefone da sala e ligo para ela. “Ana? Oi amor, só liguei para...”. “Alô?” ela me interrompe. “Ana está me escutando?”. “Quem é?”. “Sou eu Amor.”. “Alô?” Ela desliga. A ligação estava ruim. Vou almoçar com meus pais de novo. Ela já está aqui, ela trocou de camisa, uma verde. E a calça, moletom. Estão comendo sem mim.
Acordo. Ana está na cama, chorando. Ela se afastou muito de mim desde o telefonema. Ela não devia chorar tanto pelo meu pai. Não é como se ele tivesse morrido. Não costumo a observar ela assim, mas parece que ela não quer falar comigo, vou para cozinha comer algo.
Acordo. Eu dormi no sofá. Pobre Ana, não sabe lidar com a bebedeira do meu pai. Ela desce as escadas, está linda! Com uma saia preta, camisa branca e um colete preto. Seu cabelo está finalmente solto. Será que ela está melhor? Olho-a nos olhos, ainda está muito triste. Calça seus sapatos pretos. Coloca uns óculos de sol para que não vejamos suas lágrimas. Hoje é sábado, dia de ir à casa da minha mãe para o churrasco. Chegamos. Tem mais gente do que o normal. Grandes amigos que a tempo não vejo. Será que alguém organizou algo para hoje? Um grande bufê. Todos se servem. O João está aqui! “João!”
Acordo. Estou em cima de um prédio. Lá em baixo tem uma igreja, está lotada. A luz vermelha da antena piscando está me dando dor de cabeça. Vou descer. Mina mulher acaba de passar por mim na porta da igreja. Ela está maravilhosa toda de preto. Um caixão! Um funeral, todos estão de preto. “Acidente de carro.” ouço alguém dizer. Será meu pai? Como não fiquei sabendo disso? Olho para o corpo no caixão.
Acordo. Levanto-me da poltrona na casa dos meus pais. Não acredito que meu pai morreu. Tem alguém chegando. Minha mãe, minha mulher, meu pai? Mas então quem morreu? “Afonso.” minha mulher sussurra. “Sim querida?”. Ela olha para minha mãe com os olhos cheios de lágrimas e eternamente diz: “Por que ele se foi?”. Como se fosse uma pancada eu me lembro de tudo. Do acidente, do corpo, de tudo. “Eu morri?”. “Sim.” responde uma voz aterrorizante atrás de mim. Tenho medo de virar, mas tenho que virar. E lentamente, tremendo, viro. Um homem muito mais alto que um normal, vestindo uma capa preta envolta em todo o corpo com um capuz que lhe cobria o rosto e uma gigantesca vara na mão me aparece em cima de um barco. “Onde estou?”. “Na beira do rio.”. “Que rio?”. “O rio. Tenho que levar você para o outro lado que você já está atrasado.”. Sento-me no barco olhando para o chão dele. Não, na verdade não estou olhando para nada. “Você não trouxe minha moeda?” pergunta o gigante. Retiro umas do bolso e entrego a ele: “Só tenho essas.”. “Servem.”. Ele põe a vara na margem do rio e empurra. Continua empurrando o barco para o outro lado, que não consigo ver, o rio é enorme! “Afonso!” escuto minha mulher gritar. Não respondo. É tarde demais.