707-O HOMEM QUE MORREU DUAS VEZES- Drama - Adaptação
Adaptação do conto # 694 para a Revista In Memoriam
Dr. Leovigildo Calhardo era um importante advogado especializado em demandas de terras. Quem precisasse legalizar posses duvidosas ou tratar de qualquer litígio na área rural, sabia a quem recorrer, pois sua fama corria o Estado e ultimamente alcançava até as regiões do norte do país.
Embora fosse dinâmico e dava mostras de gozar de boa saúde, o irrequieto advogado sofria de uma doença congênita: epilepsia. O controle do mal era mantido com eficiência pelos medicamentos. Mas nada impedia de um ataque em condições adversas, ou seja, em alguma localidade desprovida de qualquer tipo de assistência imediata, conforme o mal requeria.
Pois numa tarde quente, enquanto verificava registros e arquivos num cartório no longínquo distrito de Pequizeiro, no oeste da Bahia, o doutor Leovigildo sofreu um desses ataques.
O dono do cartório, que nunca tinha visto um caso igual, ajudado por dois clientes, levou o advogado para o pequeno posto médico. Ali, atendido apenas por um enfermeiro também pouco habilitado (ou melhor, sem nenhuma habilitação), não recebeu socorro necessário. Quando chegou o médico responsável pelo posto, o velho e caquético doutor Epaminondas, o advogado já estava hirto.
— Nada a fazer — disse logo o velho médico. — Já era. — E assinou o atestado de óbito, dando como causa mortis ataque cardíaco fulminante.
O corpo teria de ser transferido par a capital, onde residia Doutor Leovigildo.
Na falta de uma ambulância para transporte do corpo, o único taxista de Pequizeiro concordou em levar o corpo até a capital.
— A gente acomoda o corpo no assento de trás. Vai ficar deitado no chão do carro, mas não tem outro jeito. — Disse Zé Cândido, o motorista
E assim, precariamente e indignamente foi colocado o corpo dentro carro.
Entretanto, o ataque epiléptico não havia sido mortal, como o velho médico do posto atestara. Como se sabe, um ataque dessa doença pode levar o portador a ficar com a aparência de um morto, enganando aos leigos e até médicos incompetentes.
Após duas horas de viagem, o carro descendo pelas curvas perigosas da estrada do Morro da Cambota, a consciência retornou ao Dr. Leovigildo. Abriu os olhos, sentiu o corpo doendo pela incômoda posição em que estava muito tempo. Sentiu um zumbido no ouvido, que logo identificou com um barulho exterior.
Ainda que se sentisse fraco, procurou levantar-se, o que conseguiu com grande esforço e segurando no encosto do banco da frente. Conseguiu se sentar no banco traseiro e se dando conta que estava em um carro, bateu no ombro do motorista.
— Ei, chofer, prá onde estamos indo?
Ao sentir a pressão sobre seu ombro, virou-se e deu de cara com o rosto do homem que transportava como morto.
O susto foi terrível e o medo do inexplicável tomou conta de Zé Cândido que, por momentos, descuidou da direção do carro. Momentos fatais, suficientes para que uma guinada involuntária jogasse o carro para a beira da estrada, cujo rústico acostamento foi ultrapassado em boa velocidade. O veículo descambou por um terreno descampado e íngreme,
Aterrorizado com a aparição e incapaz de dominar o veículo, Zé Cândido só teve um reflexo: apelar para a sua fé.
— Mãe de Deus, me ajuda. Nossa Senhora dos aflitos, me socorre.
O carro bateu num tronco baixo e capotou. Por diversas vezes girou sobre si mesmo. Zé Candido segurou firme no volante e tentou abrir a porta, enquanto o passageiro era jogado de encontro ao teto, sobre os bancos, de novo no teto e para baixo.
Por fim, o carro parou: as rodas para cima e as portas abertas. Zé Candido estava fora, distante uns vinte metros do veículo. Desmaiado.
Quando recobrou os sentidos, olhou ao redor, viu o carro e o corpo do passageiro dependurado em uma das portas.
Levantou-se e aproximou-se do homem. A face estava coberta de sangue que escorria da testa. Os olhos arregalados, o branco destacando-se nas duas cavidades, cabelos pelo rosto, a boca escancarada, era a própria visão de um morto-vivo. Ouviu um som cavo vindo da garganta.
Ainda está vivo, pensou. E dirigindo-se para o homem ferido:
—O senhor pode falar? Está me ouvindo?
O homem piscou uma vez. Tentou levantar o braço direito, mas este descambou.
O sangue brotava da ferida na cabeça e de um corte feio no pescoço.
Zé Cândido sentiu quando as forças diminuíram e a chama da vida se apagou naquele corpo inerte. Tentou ouvir o coração, mas nem era preciso. Sabia que o outro morrera definitivamente.
Sentou-se no capim e murmurou entre os dentes, falando para si mesmo:
Se não estava morto antes, agora, com certeza, não está mais vivo. Este é um caso de um cara que morreu duas vezes.
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 10.01.2012
Conto # 707 da Série 1.OOO HISTÓRIAS
Adaptação do conto #694, especial para revista InMemoriam