698-O FUTURO NÃO ESPERA POR NINGUÉM - Memórias

A Casa Símaro – loja de secos e molhados - ficava na esquina da Rua Dr. Placidino Brigagão com Avenida Ângelo Calafiori. Três portas se abriam para a rua e duas para a avenida. A casa residencial era parte integrante do imóvel, com entrada independente para a avenida. E no quintal havia um depósito, do tamanho de uma garagem comum. Ali eram armazenados sacos de sal, rolos de fumo em corda, latas de querosene, os queijos em prateleiras altas, o vasilhame (garrafas de cerveja vazias para serem retornadas, na nova compra), réstias de alho e cebola, além de caixas vazias.

O cheiro era incrível, uma mistura de odores fortes, quase insuportável. Muito raramente se fazia uma limpeza, o que acontecia quando o estoque de sacos de sal estava bem pequeno, porque era uma mercadoria ruim de lidar.

Atrás da loja havia ainda um cômodo grande, armazém de sacos de açúcar, farinha de trigo, cereais, caixas com produtos de limpeza e de miudezas em geral. Numa parede, pendurado a quase dois metros, ficava o aparelho telefônico: uma caixa preta com a manivela de um lado, o gancho e o fone outro. Como eu era nanico, tinha de subir em uma caixa para alcançar o telefone ou tocar a manivela.

A residência era moderna. As salas e quartos tinham pisos de tacos de madeira, os tetos eram forrados com taboas envernizadas, de onde pendiam lustres caros. Dona Francisquinha, a esposa, mantinha tudo muito limpo e fazia questão de que limpássemos bem os pés, quando nos saíamos da loja, pra ir até a cozinha tomar água ou café.

Ela ajudava muito na loja, atendendo no balcão nas horas de mais movimento. Além disso, fazia todas as terças feiras uma taxada de doce de leite, que cortava em pedaços retangulares, para serem vividos na loja. Apreciadíssimo por todos os fregueses, e principalmente pela criançada das proximidades.

De quinze em quinze dias, ela fazia o vinho doce e da cor de mel. A receita só ela sabia: mistura de diversas bebidas vendidas com açúcar e álcool. Uma vez experimentei: era fraco, bem mais fraco do que o vinho de laranjas feito por papai.

Esse vinho branco era guardado em litros, na a cozinha, num lugar fresco, e vendido em doses num canto da loja, onde ficavam todas as bebidas. Cachaça, Fernete, vermute, “rabo de galo” e o vinho doce eram bebidas servidas no balcão em pequenas doses, em copos apropriados chamados de “martelinhos”. No balcão e o freguês tinha de tomar a bebida em pé. Nada cadeiras ou mesinhas.

— Assim não tem o perigo do freguês ficar escornado em cadeiras. Quando sente a perna bamba, vai embora. — Era a política de seu Júlio, que evitava cachaceiros no seu estabelecimento.

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Durante algum tempo, seu Júlio teve uma baratinha amarela. A baratinha era um carro esportivo, construído sobre um chassi do Fordinho do ano 1929 e tinha acomodação para três pessoas: duas no minúsculo cubículo coberto, e uma que podia ir no banco extra, escamoteável no porta-malas. Como a família era de apenas três pessoas (seu Julio, dona Francisquinha e Terezinha, a filha de onze ou doze anos), cabiam os três. Algumas vezes me levou nos passeios que dava aos domingos de tarde, pela cidade. Eu ia junto de Terezinha, apertadinho no banco de trás, que era descoberto. Cinto de segurança, nem pensar, e a agente tinha de se agarrar em pegadores colocados ao lado.

Gostava muito de passear com eles. Principalmente pela proximidade de Terezinha, que era da minha idade e com a qual tinha boa amizade.

Deve ter originado desses passeios meu desejo de ter um carro Ford modelo 1929 e da preferência por carros de cor amarela. Meu primeiro carro foi um Ford 1929 adquirido em 1962, e tive, posteriormente, dois carros amarelos: um Galaxie-500 (modelo mais caro da Ford na ocasião) em 1969 e uma Belina (também da Ford) em 1972.

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No final de 1950, recém diplomado no ginásio, fiz um teste para trabalhar no Banco de Credito Real, como contínuo (rapaz de recados, encarregado da limpeza, de levar avisos de vencimentos e duplicatas a serem aceitas pelos comerciantes)

Enquanto esperava o resultado do teste (do qual participavam dois outros candidatos), fui trabalhar na loja de seu Júlio. Ele melhorou meu salário, pois eu já tinha quinze anos, e podia tomar conta sozinho da loja, quando ele precisava sair para resolver negócios no centro da cidade ou comprar mercadorias em casas atacadistas no outro lado da cidade.

Esperava que o processo de seleção fosse demorado e por isso, levei um grande susto quando, na manhã de 30 de janeiro de l951, ao atender ao telefone (ainda usando uma caixa para alcançar o fone), ouvi a notícia de que tinha sido selecionado para preencher a vaga no banco.

Fiquei tão surpreso que não me decidia.

— Amanhã vou lá ver como é...

Seu Julio não titubeou:

— Você vai lá é agora mesmo. E bem depressa. Corre porque o que o futuro não espera por ninguém.

Saí depressa e fui o banco, ao encontro do meu futuro.

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Por volta de 1944, antes que eu trabalhasse para ele como carregador de pães, seu Julio envolveu-se numa pendenga com Monsenhor Mancine por conta de um muro que se estendia entre o a Capela do Colégio Paula Frassinetti e o Orfanato Monsenhor Felipe e que impedia o prosseguimento da Rua Dr.Placidino. A maneira como o caso foi resolvido, de uma maneira até cômica, pelo seu Júlio, está narrada no conto “O Muro”, da Série Milistórias.

3º. Da série dedicada a Julio Simaro-comerciante em São Sebastião do Paraíso

Ver:

# - 695 – A Vida é Dura

# - 697 – O Trabalho Enriquece e Enobrece

# - 013 – O Muro

# - 012 – Na Venda de Totó Miranda

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 5 de dezembro de 2011

Conto # 698 da Série 1OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 10/03/2015
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