697-O TRABALHO ENRIQUECE E ENOBRECE-Memórias

2º. Da Série dedicada a Júlio Símaro,

comerciante em São Sebastião do Paraíso

meu primeiro empregador.

“Fazer a América!” Essa era a ideia fixa dos imigrantes europeus, que significa, nos rude linguajar, principalmente dos italianos Significava ganhar dinheiro, tornar-se independente, enriquecer. E tudo à custa do que eles sabiam fazer: trabalhar.

O trabalho dos italianos que chegavam com a mão abanando, sem nada senão a vontade de sobreviver e vencer na vida, foi a alavanca que impulsionou o progresso na região sul do Brasil, a base do progresso de São Paulo, Espírito Santo, Sul de Minas e outros enclaves colonizados por eles.

A vida era estritamente ordenada, ou seja: dos sete aos onze anos, frequentava-se o Grupo Escolar, fazia-se o curso primário. Com o diploma do curso primário, podia-se ir trabalhar em seguida. Os filhos de sitiantes geralmente continuavam com os pais, nas lides da agricultura e do cuidado com o gado. Nas cidades, não era difícil conseguir um emprego seja nas pequenas indústrias ou no comércio. Havia alguns poucos descendentes de imigrantes que ia estudar, pois os cursos, a partir do ginásio, eram pagos e frequentados, quase totalidade, por filhos dos fazendeiros, grande proprietários de terras ou da incipiente classe média.

Neto de italiano pelos quatro costados fui, desde cedo, orientado no sentido de trabalhar, ter uma boa profissão e vencer na vida. Ao terminar o curso primário, já manifestava um amor pelos livros e vontade de continuar estudando.

Fiz um curso de admissão ao ginásio, pretendendo ser classificado entre os cinco primeiros, aos quais eram concedidas bolsas de estudos pelo Ginásio Paraisense. Fiquei em sétimo lugar. Não poderia, portanto, continuar estudando já que o dinheiro em casa andava muito curto.

Meu pai, marceneiro que na ocasião auferia pouca renda, fez um acordo com o Irmão Diretor do Ginásio, a fim de trocar seu trabalho pela mensalidade colegial.

Mesada, nem pensar. Tudo era provido por minha mãe, que administrava o dinheiro em casa. Roupas, calçados, livros e material escolar, lanche, etc. Nunca me envergonhei dos primeiros meses no ginásio, quando, no recreio às dez horas, desembrulhava o pão com banana ou um pedaço de carne do jantar do dia anterior que comia com voracidade, porque o estômago já roncava de fome.

Aleatoriamente, ganhava dois cruzeiros para ir à matinê, sessão de cinema de domingo à tarde, para crianças e jovens.

Com onze anos, no primeiro ano do ginásio, tive o primeiro trabalho remunerado. Buscar pão na padaria Dramis para entregar na loja “de secos e molhados” do seu Júlio Símaro. (1)

Na sequência, nas férias de julho – que eram de trinta dias – fui trabalhar como caixeiro, ajudando na mesma loja. Foi um mês que correu depressa, e logo voltei às aulas. Desde então, em todas as férias nos quatro anos do curso ginasial, meu lugar na loja estava reservado.

Assim, trabalhei na Casa Símaro em todas s férias dos quatro anos de ginásio e em todos os sábados. Aprendi muito: no trato com os fregueses, no arranjo das mercadorias, na limpeza do estabelecimento, e, principalmente, na honestidade e correção do proprietário, que teve também paciência comigo.

Sábado era dia sem aula e de grande movimento na Casa Símaro, e lá ia eu ajudar no balcão do empório. Ganhava dois cruzeiros, para a matinê do domingo ou para comprar um gibi.

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Homem brincalhão, colocava os fregueses à vontade, tinha uma paciência enorme em atender, principalmente, os que vinham do interior do municio, da roça, como se dizia. Havia um grupo de negros do Morro Vermelho, uma das regiões mais distantes da cidade. Talvez fossem quilombolas, descendentes de escravos que fugiam das fazendas. Era um grupo de uns sete ou oito, e chegavam aos sábados de manhã, com seus cavalos carregados de queijos, feitos por eles, que seu Julio comprava por unidade. A parte da manhã era quase que só tomada pelo recebimento dos queijos, a maior parte bem fresquinhos e deviam ser lidados com cuidado. Havia um armazém no quintal com muitas prateleiras de madeira, nas quais os queijos eram colocados para serem “curado”, um processo que ia secando as peças. Dentro de uma semana, estavam de “meia-cura” e em quinze dias eram queijos curados, pronto para serem ralados. (2)

Na parte da tarde, nós (seu Julio, a esposa Dona Francisquinha e eu) atendíamos os homens, que já haviam tomado uns copinhos de vinho doce, exclusividade da casa. Traziam na cabeça o que desejavam. Às vezes, para ajudar a memória, vinham com carretéis vazios de linha, ou agulhas enfiadas em pequenos retalhos e pediam “outra igual a essa”.

Ao encerrar o atendimento dos fregueses do Morro vermelho, seu Julio brindava a cada um com um sabonete Gessy, recomendando:

— Este é um agrado prá você fazer à patroa.

Os simples homens da roça se abriam em risadas de agradecimento, exibindo os dentes brancos, as gengivas vermelhas e os olhos brilhantes nas negras faces.

Usualmente, passava das cinco da tarde quando o grupo de cavaleiros, com os embornais e sacos de pano arrumados nas garupas das montarias, deixava o empório, de volta ao Morro Vermelho.

Era hora de arrumar os sacos de mantimentos, dar a última varrida e fechar o estabelecimento.

Seu Júlio, como sempre, tinha uma palavra de entusiasmo:

— Então, Tuniquinho, tá cansado?

E antes que eu respondesse, lá vinha com uma de suas tiradas conclusivas:

— É... O trabalho enriquece e enobrece... Mas é preciso trabalhar!

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(1) Esta parte está registrada no conto anterior ”A Vida É Dura”.

(2) Essa compra de queijos frescos, vindo diretamente dos pequenos produtores, artesanalmente, serviu de inspiração para o conto “Na Loja de Tótó Miranda”, sendo que o fato ali narrado foi vivenciado pelo seu Julio Símaro e um fiscal do Imposto de Consumo.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 6 de dezembro de 2011

Conto # 697, da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 10/03/2015
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