695-A VIDA É DURA - Minhas memórias

1º. Da Série dedicada a Júlio Símaro,

comerciante em São Sebastião do Paraíso

Meu primeiro trabalho remunerado foi compatível com a idade e o tamanho: aos onze anos, era o menor da turma, conforme se vê na foto oficial de formatura do Grupo Escolar Campos do Amaral do ano de 1946.

Sendo pequeno e quase uma criança, ainda usando calças curtas, ainda não tinha competência para negociar um emprego ou serviço. Assim, minha mãe ajustou com seu Julio Símaro, proprietário de uma casa comercial dita de “secos e molhados” o meu primeiro trabalho: carregar pães da padaria até sua loja.

Uma obrigação diária, que eu cumpria por volta da uma hora da tarde: pegava na Padaria Dramis um saco com cem pães recém-saídos do forno, para levar, sobre os ombros, até a Casa Símaro.

Quando chegava à padaria, os pães estavam saindo do forno. Quem os contava era o proprietário, Giuseppe Dramis, italiano bem humorado e calmo. Cem pães quentes, que enchiam um saco de pano branco, antes utilizado para o transporte de farinha de trigo. Amarrava a boca do saco com barbante forte e me ajudava, ou melhor, ele mesmo colocava o saco sobre minhas costas.

O percurso era curto, apenas dois quarteirões: cortava caminho atravessando o Jardim Novo pelo meio, o que já economizava algumas passadas. Talvez uns 250 metros, não mais do que 300. Mas era um percurso sofrido: além do peso (lembrando: eu era franzino e de pernas curtas) havia o calor dos pães. Queimava minhas costas. Eu não podia sequer descansar, colocar o saco no chão, pois não teria forças para sungá-lo novamente às costas. Então, o único jeito era andar o mais rápido possível. Os pés reclamavam, metidos em sapatos de sola dura. O suor escorria pelo rosto, e o sangue afluía ao rosto, que ficava vermelho como camarão.

Para mim, aquilo se afigurava um verdadeiro “trabalho de Hércules”, que tinha de desempenhar com honra e coragem.

Ao chegar à Casa Símaro, seu Júlio me ajudava a arriar o saco. Abria o saco e colocava os pães na vitrine de quitandas e doces, ensinando-me como fazer:

— Coloque os pães de pé, encostados no vidro, com a crosta dourada para fora.

No balcão, algumas pessoas já esperavam para comprar o pão que seria servido no café da tarde.

Seu Júlio era um homem bonachão, estava sempre de bom humor e gostava de dizer ditos espirituosos. A freguesia gostava de seus comentários. Lembro de uma frase que ele me dizia constantemente, não sei se me gozando pelo esforço ou se a fim de animar. Ficou gravada na minha memória e, de certa forma, serviu de orientação para o resto da vida:

— A vida é dura, Toniquinho... — fazia uma pausa estratégica para impressionar e concluía — prá quem é mole!

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O pagamento ajustado com minha mãe era quase que simbólico: eu recebia um pão por dia. Saía da loja com o pão e ao chegar em casa, entregava-o à minha mãe, que já esperava com o café passado e a mesa posta para o café da tarde. Ela então ia até a porta da cozinha e chamava meu pai:

— Pedro, o café ta na mesa. Vem, que o pão tá quentinho!

Nos primeiros meses, estando ainda de férias e preparando para ser matriculado no Ginásio Paraisense, eu tinha até certa folga em ir à padaria com vagar. Mas depois que entrei para o ginásio, a coisa mudou. Saia do ginásio ao meio dia e tinha de me apressar para chegar em casa, almoçar e correr pra a padaria, a fim de pegar o saco com pães ainda quentes. Uma correria.

O dinheiro passou a ter mais significado em minha vida, e então falei com mamãe:

— Seu Júlio até que podia pagar meu trabalho em dinheiro.

A proposta foi aceita sem delongas. O pão era vendido no balcão a um cruzeiro, e seu Júlio concordou em me pagar trinta cruzeiros por mês pelo serviço:

— Olha que você está levando vantagem: está ganhando o domingo, sem trabalhar. — me disse em caçoada.

No decorrer do primeiro mês, eu ia pensando como eu poderia “levar vantagem” se o dinheiro, naturalmente, seria entregue para mamãe, que controlava toda a parte financeira da família: meu pai era um artista que não gostava de administrar a sua renda e entregava à mamãe tudo o que recebia. Também ela tinha alguma renda, vendendo toalhas de crochê que fazia com capricho. Por isso, eu sabia que meu ordenado também seria administrado por ela.

Meu primeiro salário foi pago em duas notas de dez e duas de cinco cruzeiros. Que emoção! As mãos tremiam! Dobrei as notas, coloquei-as no bolso e corri para casa.

— Mãe, mãe! Aqui está o dinheiro que seu Júlio me pagou!

Abri as notas e estendi para ela. Qual não foi minha surpresa quando ela me disse:

— É seu primeiro salário. É seu. É você quem vai guardá-lo.

Fiquei surpreso e ao mesmo tempo muito contente. Mas mamãe logo me avisou:

— Olha lá com o que você vai gastar.

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Desde o ano anterior eu já namorava uma caneta-tinteiro exposta na enorme vitrina da Casa João Ponte, no centro da cidade. Durante os anos escolares, havia escrito com diversos materiais: na lousa de ardósia, com um lápis duro feito não sei de que material; com o lápis comum daqueles tempos, de grafite dura e áspera; apreendera escrever com pena e caneta, fazendo borrões involuntários nas folhas dos cadernos e lambança com a tinta que escorria dos tinteiros. A caneta tinteiro era meu sonho. Ainda mais então, que estava no ginásio e o uso de caneta-tinteiro “aumentaria meu cartaz” perante os colegas que ainda usavam caneta com pena e tinteiro.

A que havia colocado meus olhos de desejo era uma da marca Esterbrook, de cor verde metálico e tampa com presilha dourada. O preço eu já tinha memorizado: CR$28,00.

— Mãe, será que posso comprar a caneta tinteiro? Aquela da Casa João Ponte?

Ela concordou.

Saí em disparada e voltei com a caneta e um vidro de tinta própria para caneta, que custava três cruzeiros, mas que a gentil atendente da loja abateu para dois, perfazendo o total da compra exatamente os trinta cruzeiros que eu tinha nas mãos.

Não me lembro das primeiras palavras que escrevi com a caneta-tinteiro, mas gostaria de ter escrito aquela frase dita e repetida muitas vezes para mim, pelo seu Júlio Símaro, quando sentia as costas queimando e os pés doendo:

— A vida é dura, Toniquinho... prá quem é mole!

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Veja na sequência deste conto:

# 697 – O Trabalho Enriquece e Enobrece

# 698 – De encontro ao Futuro (?)

Outros contos relacionados:

# - O Muro

# - Na Venda de Totó Miranda

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 09/03/2015
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