693-CASAMENTO ENTRE MORTOS- Narrativas de Marco Polo # 3

Vatan Yrek andava preocupado. Era uma preocupação ligada à sua família, que lhe tirava o sono e estava prejudicando sua destreza como Arqueiro Zen de sua tribo. Não podia vacilar, pois era responsável pela segurança da aldeia e fazia parte do exército tártaro do grande chefe Bleda.

Sendo um líder entre companheiros, graças à habilidade no manejo de arco e flecha, era, desde jovem, Arqueiro Zen, isto é, um arqueiro que, mesmo montado num cavalo em movimento, consegue acertar a flecha exatamente no alvo desejado, mesmo que este também esteja em movimento. Era grande responsabilidade e honra que distinguia os tártaros, pastores-guerreiros habitantes das vastas estepes da Ásia Central.

Sua preocupação era de ordem familiar e estava relacionada aos costumes de seu povo.

— Está passando do tempo de conseguir uma noiva para Kan-Vatanl. — Disse à mulher Karin.

Ela nada falou. Ocupada em costurar as peles de rena para fazer um agasalho, era calada e servil, como convinha à mulher de um valente guerreiro.

— Se estivesse vivo, Yuri estaria com dezessete anos. Faz mais de dez que ele morreu. — Continuou Vatan, quase que num monólogo. — Dentro de alguns dias devo me reunir com meus camaradas, para treinamentos. Na aldeia do chefe tratarei de encontrar a moça.

Vatan saiu da tenda e olhou ao redor. Até onde a vista alcançava, a planície se estendia e o horizonte, de tão longe confundia as cores do céu e da terra. Rebanhos de renas e cabras de longos pelos eram vigiados por pastores montados em seus cavalos.

Sabia que não iria ser fácil encontrar uma noiva (falecida) para seu filho (também já morto). Mas tinha de cumprir com a tradição de seu povo.

As considerações de Vatan, por mais estranhas que parecessem, estavam conforme o costume dos tártaros, que consistia na celebração de casamento entre jovens mortos. Ou seja, um pai cujo filho havia morrido criança, fica aguardando a época em que o filho falecido deveria se casar. Então, procura a família que tivesse tido um filha morta quando criança e contrata o casamento com os pais da menina, que, se estivesse viva, seria uma moça em idade de se casar.

Vatan Yrek conseguiu justar as duas coisas: pós o período de treinamento com o seu grupo de guerreiros dirigiu-se à grande tenda de Can-Yassi, um grande pastor, dono de muitas cabras, renas e cavalos.

— Sei que sua filha morreu quando criança. — disse Vatan, após os salamaleques iniciais. — Meu filho Yuri estaria completando 17 anos, morreu quando tinha apenas seis anos. Venho propor-lhe o casamento entre meu filho e sua filha.

Can-Yassi concordou sem mais delongas e combinaram a data do casamento.

De volta à sua tribo. Vatan Yrek convidou os amigos para as bodas, que deveriam ser celebradas na tenda do pai da menina falecida, de nome Ayrsegil.

Os amigos de Vatan Yrek eram numerosos, bem como os de Can-Yassi e uma pequena multidão esteve presente na celebração. Já haviam sido desenhados em papéis todos os presentes que os noivos receberiam. Tais papéis foram então queimados, para que a fumaça, simbolizando os presentes, chegasse aos espíritos dos noivos falecidos.

<><><>

Este foi um dos antigos costumes dos Tártaros, um povo muito importante da Ásia Central nos séculos V a XVI. Chegou até nosso conhecimento através das narrativas em As Viagens, de Marco Polo, o grande viajante, mercador e aventureiro veneziano.

ANTONIO GOBBO

BELO HORIZONTE, 3 de dezembro de 2011

Conto # 693 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 09/03/2015
Reeditado em 09/03/2015
Código do texto: T5164200
Classificação de conteúdo: seguro