Sensibilidade Extrema


Aquela colega era do tipo inesquecível. Do tipo digno de figurar naquela antipática revista americana como “Meu Tipo Inesquecível”.
Volta e meia nós a víamos com os olhos marejados de lágrimas, e sendo belíssimos seus olhos, assim como o seu todo, é claro que nos preocupávamos e queríamos saber o que estava acontecendo:
- Ai, colega...você nem imagina o quanto estou triste hoje...Logo pela manhã, logo que saí da cama, encontrei uma pobre lagartixinha em minha sala. A coitadinha estava toda estraçalhada. Era uma perninha pra cá, outra perninha pra lá, o rabo lá longe...Um horror. E o culpado dessa tragédia? Meu gatinho. Meu gatinho que eu amo tanto. Ver aquele pobre ser indefeso partido em vários pedaços deixou meu coração desse “tamaínho”...
- Triste mesmo. Uma coisa horrível. Mas fazer o quê? É da natureza do gato.
Com o passar do tempo todos nós percebemos que até mesmo uma formiga que se extraviasse da carreira formada pela multidão delas era motivo de tristeza para Maria Auxiliadora, que eu apelidei de Maria Auxilia-chora, e brincava com ela:
- Seus olhos, minha querida, me fazem sempre lembrar aquelas bóias de navegação.
- Por causa da cor deles?
- Não, meu anjo, estão sempre boiando dentro d´água.
- Ah, fazer o quê? Essa vida tem tantas coisas tristes...
Eu tinha vontade de rir, mas a última coisa que faria na vida seria contrariar uma gostosinha, mesmo que ela fosse a embaixatriz do baixo-astral.

Um dia viajamos juntos, a trabalho, em meu carro, e conversamos bastante enquanto os outros colegas dormiam no banco de trás do Opala. E ela me contou o quanto chorara em certos trechos de filmes, de livros, de histórias que ouvira na infância, e mil outras coisas tristíssimas que presenciara em sua ainda curta vida. Em nenhum momento citou Anne Frank, Dachau, Awschuitz, Treblinka, África do Sul, terremotos, maremotos, vulcões ou tsunamis. Todos seus muitos motivos de tristeza provinham de coisas que apenas nos fazem franzir os lábios ou sentir aborrecimento por alguns minutos, ou horas, se tanto.
Percebendo o quanto ela gostava de mostrar que era incrivelmente mais sensível que o restante da humanidade, deixei que falasse à vontade e mostrava-me solidário com suas imensas e constantes dores causadas pelas minorias oprimidas (pássaros, insetos, borboletas, plantas, pequenos animais, e, quem sabe? até mesmo por vírus, micróbios, fungos, bactérias, átomos...). Afinal de contas, creio que já disse que ela era gostosinha. E gostosinha é melhor que gostosa, que gostosona, que gostosérrima. A gostosinha é a essência, é o suprassumo, é a embalagem econômica e concentrada das outras categorias acima citadas. A viúva de um irmão de um certo ex-presidente de nosso país é um exemplo de gostosinha. Procurem lembrar-se da ex-cunhada de um certo ex-presidente e vejam se não tenho razão em minha classificação pessoal.

No primeiro restaurante em que paramos, encontramos o resto da turma e o diretor de nosso território de vendas, que viajava sozinho.
- Fernando, quantos estão no seu carro?
- Cinco, seu Dácio.
- Mande alguns para o meu carro. Está um saco viajar sozinho.
Era tudo que eu queria.
- Cambada, o seu Dácio quer conversar com vocês no caminho e disse pra vocês irem para o carro dele.
Maria Auxilia-chora fez menção de ir também e eu a detive:
- Você não, minha querida. Ele quer conversar só com eles.
Deixando os quatro com caras de preocupados à espera do diretor, arranquei com o Opala levando apenas a mais sensível de todas as gosto..digo, a mais sensível de todas as moças.
Um minuto depois ela pôs a boquinha pra funcionar de novo:
- Fale-me de você, colega.
Olhei para ela por um longo instante, depois de certificar-me que não vinha nada em sentido contrário na estrada, fiz a minha melhor cara de engasgo e a muito custo consegui dizer a ela:
- Mama faleceu quando eu tinha sete anos...- Tive que parar por ali. A dor profunda bloqueou minha garganta.
Um minuto depois, recuperado, completei a informação:
- E Papa quando eu tinha onze anos...
A essa altura os olhinhos dela lembravam Foz do Iguaçu em tamanho de foto 12 x 15. Era um aguaceiro só.
Mama e Papa eram os apelidos de meus detestáveis avós, de quem eu só queria distância desde que me entendi por mais ou menos gente. Minha maior alegria na infância era saber que não iria para a casa deles nas férias.
Um lenço inteiro molhado por Maria Auxliachora depois, continuei a série de tragédias:
- E Suzy, a única que me sobrou no mundo, foi-se quando eu tinha quatorze anos.
Aos quatorze anos eu havia trocado a Suzy, uma cadela perebenta, por um volume intacto do Júlio Verne com um carrinheiro.
A essa altura ela chorava tanto que quase senti remorsos. Mas eu não podia parar no meio do caminho. Não enquanto ela não desse vazão à tristeza que sentia por minha vida pregressa.
- Co...le...ga, por fa...vor, pare o car...ro.
Triste, sorumbático, com os olhos quase tão molhados quanto os dela, levei o carro para o acostamento e parei-o enquanto enfiava a cabeça no volante e minha barriga movimentava-se com violência devido ao meu choro convulsivo.
Maria Auxilia-chora pegou minha cabeça carinhosamente, levou-a de encontro aos seus seios,( bonitos e fartinhos), e durante muito tempo consolou-me com palavras doces, beijos na cabeça, afagos no rosto, e só faltou cantar “nana neném” pra me acalmar de vez. Enquanto isso minhas mãos, minhas pobres mãos descontroladas, sentiam a maciez e suavidade de suas sensíveis coxas.
- Sua vida daria um romance, meu querido. Daria mesmo um romance tristíssimo.
- Ô...
- Um romance que venderia milhões de exemplares.
- Milhares, talvez. Ou melhor, centenas. Há pouca gente no mundo tão sensível quanto você, minha querida.- Tudo isso dito entre semi-soluços e soluços inteiros.
- Você está em condições de dirigir?
- Acho que não, meu anjo. Meu coração está deste “tamaínho”...
- Quer parar em algum lugar aconchegante?
Mais do que depressa eu arrumei um lugar aconchegante, aconchegamos-nos, esquecemos nossas tristezas no doce embalo do amor solidário, e depois disso ela se tornou menos sensível com as minorias. Adorava quando eu ficava um pouco maior. Em qualquer sentido.
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 06/06/2007
Reeditado em 22/07/2007
Código do texto: T516262
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