690-O TESOURO DO DOUTOR ENRICO

Advogado de sucesso, Doutor Enrico Benestantti fez uma considerável fortuna no exercício de sua profissão. Entretanto, não ostentava luxo, nem tinha grande patrimônio. Vivia modestamente num bairro classe média de São Paulo, um casa ampla, confortável, mas sem nada que chamasse a atenção.

Sua conduta também era de homem comum. Viajava muito, principalmente para Europa, a fim de resolver pendências jurídicas de seus clientes. Nessas viagens, como em todas outras situações, a discrição era o seu ponto forte. Sem chamar atenção, trajando roupas comuns, elegante, porém não ao ponto de se destacar na multidão, caminhava com desenvoltura nos mais diferentes locais, fossem luxuosos ou de ostentação, ou até mesmo em favelas, onde quer que o exercício de sua profissão exigisse.

A família, de igual modo, era comum. Dona Helena trabalhava na diretoria de uma grande indústria. Hildeu, o filho mais velho, veterinário formado, era professor na USP. A filha Hilda estava terminando o curso de ciências sociais.

O famoso advogado soubera incutir na esposa e no casal de filhos aquele gosto pela simplicidade nos gostos e discrição na conduta.

Sua conta bancária era modesta. O seu gerente insistia em que ele tivesse mais crédito ou usasse dos serviços do banco, a fim de que sua conta apresentasse maior saldo ou os recursos fossem aplicados em fundos e outros produtos financeiros. Sem resultado, pois a movimentação era comum e o Dr. Enrico nunca aplicara um real nessas contas de grandes riscos e resultados incertos.

Que ganhava muito dinheiro, era certo. Mas onde estava, nem a própria esposa ou os filhos sabiam.

Dinheiro depositado no exterior? Pouco provável, pois sua ética não o permitiria. Terras ou propriedades em nome de terceiros? Também não seria o caso, pois não teria necessidade de esconder seu patrimônio, usando “laranjas”.

Vivia bem, tinha o carro do ano, levava a esposa ou os filhos em suas viagens ao exterior, quando coincidia com as férias deles. Fornecia-lhes dinheiro para suas necessidades e para seus pequenos luxos. Nada faltava na casa ou à família.

Tinha um grande círculo de bons amigos, pois sua simpatia granjeava-lhe amizades em todos os lugares. Onde estivesse, o ambiente de cordialidade e bom humor se implantavam, graças à sua conversa animada, aos assuntos variados que abordava com propriedade e sua capacidade de ouvir os outros.

Quando estava em casa, passava grande parte do tempo no seu escritório, cujas paredes eram forradas de grandes armários de portas de vidro com milhares de volumes enfileirados e devidamente etiquetados. Ao se referir ao prazer que tinha com os livros da sua vasta biblioteca, costuma dizer:

— Estes livros são o meu tesouro.

Não obstante, era um homem do lar, quando sua atividade de importante advogado permitia. Ainda lhe sobrava tempo para cuidar de detalhes da casa: praticava um pouco de jardinagem, fazia pequenos consertos e gostava imenso de decorar a casa pela época do Natal.

E foi justamente pelo Natal que a tragédia ocorreu: instalando uma fiação com luzes na fachada da casa, escorregou do alto de uma escada, bateu com cabeça no chão cimentado e morreu no ato.

A tragédia foi sentida pela família e pelos amigos, claro. No velório e sepultamente compareceu um número incontável de pessoas. Tudo realizado sem pompa e com a dignidade que doutor Enrico Benestantti fazia jus.

Na sequência foi aberto o inventário, e um pequeno patrimônio foi arrolado: a casa residencial, o carro e um irrelevante saldo bancário.

A grande biblioteca do eminente causídico permaneceu na posse da viúva. Os filhos não se interessaram pelos livros deixados pelo pai, jurídicos em sua maioria, já que Hildeu se tornara veterinário e Hilda estava terminando o curso de assistente social.

Dona Helena, a viúva, manteve o escritório intacto, tal qual se apresentava quando o marido estava vivo. A biblioteca, entretanto, despertou o interesse de um importante comerciante de livros usados.

Certa tarde, ela entrou no escritório e ficou admirando o local no qual o marido havia passado incontáveis horas, às vezes dias inteiros. Passou a mão por sobre a escrivaninha, olhou com nostalgia para os troféus e porta-retratos em uma prateleira de estilo rococó ao lado, e descansou o olhar sobre as estantes de livros.

Teve a atenção atraída para uma coleção de livros de capa vermelha na primeira prateleira de uma das estantes com portas de vidros.. Pareciam romances que ela já havia lido.

Tentou abrir a porta, que estava trancada. Procurou as chaves, encontrando-as na primeira gaveta da escrivaninha. Abriu a porta de dois metros de altura e passou a mão pelas lombadas da coleção.

Sim, era uma serie de livros de autores célebres, alguns dos quais já havia lido. Retirou aleatoriamente um volume. A brilhante encadernação vermelha rescendia a couro. Gostou da textura, da superfície lisa. O titulo estava gravado na lombada e na frente, em letras douradas, um trabalho esmerado.

Demorou-se admirando a beleza do volume, pois ela também gostava de livros. Notou que o livro parecia ter algo entre as folhas, pois estava como que estufado.

Deu uma folheada.

Com surpresa, viu caírem cédulas de dinheiro de dentro do livro. Abaixou-se para apanhá-las e constatou, com surpresa, que eram notas de dólares e libras. Notas do mais alto valor. As notas de cincoenta libras misturaram-se às de cem dólares.

Apanhou as notas do chão, colocou-s sobre a escrivaninha e retirou do livro mis notas. Separou-as em dois montes, separando os dólares das libras. Examinou mais uma vez o livro e viu que não tinha mais notas entre as folhas.

Contou as notas: vinte e uma de cem dólares, dezoito de libras esterlinas.

Fez um cálculo rápido do valor daquele dinheiro, em reais: cerca de dez mil reais.

Hilda sentou-se na larga poltrona usada pelo marido e ficou alguns momentos pensando naquele achado e o que poderia significar.

Que estranho! Será de Enrico guardava seu dinheiro no meio dos livros?

Arrepiou-se ao pensar nisto. Deu um salto e foi pegar outro volume da mesma coleção.

De forma idêntica, estava recheado de notas. Neste volume só havia notas de libras. Quarenta e sete notas. Começou ficar frenética. Abriu mais um e mais outro, e final, todos os livros da coleção de autores famosos, de capa vermelha. Mais de vinte volumes, dos quais tirou uma quantidade surpreendente de notas, de dinheiro vivo.

Helena nem calculou o valor – mas sabia que as notas representavam um valor apreciável.

Será que todos os livros estão recheados de notas?

Apanhou um livro da prateleira superior. Também dele surgiram notas e mais notas. Ela correu, então, para a estante que ficava na parede lateral. Ali estavam livros mais altos, de costaneiras largas. Tirou um volume com dificuldade, pois era pesado. Estava igualmente estufado, tinha alguma coisa entre as folhas. Levou para a escrivaninha e folheou o volume.

O grande livro estava recheado de papéis. Não notas nem cédulas, mas — Helena constatou com mais surpresa — ações de bancos e de empresas.

A descoberta deixou viúva meia zona. Teve de se sentar novamente na poltrona a fim de se refazer.

Chegou a uma estonteante conclusão: A fortuna do marido estava toda ali... dentro dos livros!

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No dia seguinte, Hilda recebeu um telefonema do comerciante de livros que havia manifestado interesse na compra de toda a biblioteca do doutor Enrico.

— O senhor me desculpe — respondeu a viúva. — Antes de fazer o negócio, vou ter de ler todos os livros do meu marido.

— Mas, Dona Hilda...

Sem dar mais explicações, ela cortou a ligação.

Não havia tempo a perder. Tinha de “ler” os livros da grande biblioteca que era o tesouro do marido.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 22 de outubro de 2011

Conto # 690 da SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 08/03/2015
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