Premonição Arretada

No demorado e pormenorizado sonho daquela noite, daquela noite inesquecível, eu via Elaine semi nua, usando apenas calcinha e sutian, discutindo com dona Elvira, sua mãe. E dona Elvira gritava não, não e não, um tanto quanto desesperadamente. Logo mais, no quadro seguinte do sonho, Elaine discutia também com o pai e conseguia dele um sim, apesar das negativas maternas. Correu então, feliz da vida, para o banheiro, entrou debaixo do chuveiro e, apesar de todos meus esforços, não consegui vê-la nua, tomando seu demorado banho. (Acho que naqueles tempos a ditadura interferia com sua censura até nos sonhos da gente...). Na continuação do sonho, dona Elvira, com quem eu nunca conversara antes, chorou em meu ombro enquanto contava que sua filha queria ir a uma festa em Santos com o rapaz que pretendia namorá-la. Ela, como boa mãe, dizia que tinha que impedir, mas o irresponsável do pai, Adalberto, acabara amolecendo e permitindo. Abraçando a chorosa senhora, perguntei o nome do rapaz que levaria Elaine de carro a Santos e ela disse que era um certo Edward. Bastou a mulher dizer o nome do rapaz, e eu vi um acidente gravíssimo de carro acontecendo em câmara lenta. Vi claramente um carro preto descendo pirambeira abaixo, batendo nas árvores e nas pedras, e ir espalhando seus vários ocupantes, jogando-os a distâncias enormes. Abracei dona Elvira com força, garanti a ela que Elaine não iria de forma alguma, ganhei dela um beijo no rosto e logo depois acordei.
Acordei sentindo gosto de sangue na boca. Um gosto forte mesmo. Corri para o banheiro, enchi a boca com água e bochechei bastante antes de cuspir fora e olhar o resultado: nenhum sangue. Era só o gosto mesmo. Fui então até a cozinha, onde minha mãe já me esperava com o café recém-coado e o pão com manteiga de todos os dias.
- Bença, mãe. Mãe, tive um daqueles sonhos de lascar. Acordei suando frio.
- Acidente de novo, filho?
- É, mãe. Com a Elaine, aquela morena graúda que a senhora achou linda.
- E como foi o sonho?
Contei à minha mãe todos os detalhes que consegui lembrar-me.
- E o que é que você vai fazer, filho?
- Sei lá, mãe. Ninguém acredita nos sonhos da gente.
- Mas se você não fizer nada, meu filho, e acontecer alguma coisa a ela, você terá remorsos pelo resto da vida. Olha lá...
- Tem razão, minha velhinha. Tem razão.
- Velhinha é a pequepê...
- Tô brincando, velhi...mãezinha. O que você acha que devo fazer então?
- Sei lá. Fale com os pais dela, com ela, com o tal Edward. Tome alguma providência que depois te deixe em paz com sua consciência.
- Dá até música: “ tome alguma providência/ que te deixe em paz/ com a tua consciência/ vá, conte tudo/ tenha muita paciência../
- Xarope. Acabe esse café e suma de casa. Vá trabalhar que é melhor.

Elaine não tinha motivo algum para acreditar em meus malditos (ou seriam benditos?) sonhos premonitórios, mas minha mãe tinha razão. Eu teria pelo menos que tentar impedir que ela viajasse. O tal Edward eu nem sabia quem era. Nem queria saber, já que eu era “paradão” na Elaine...
De repente tive uma como que iluminação. Eu não soubera nunca os nomes dos pais dela. Jamais tivera oportunidade alguma de ouvir os nomes deles, e no sonho eles apareciam como Adalberto e Elvira. Senti-me impressionado até mesmo antes de confirmar se era mesmo assim que se chamavam. Resolvi bater à porta da casa de Elaine, mesmo que ela não estivesse e eu acabasse passando por meio doido.
Dona Elvira (?) abriu a porta, simpática e risonha:
- Bom dia, moço? O que deseja?
- Bom dia, senhora. Creio que a senhora nunca me viu antes. Eu mesmo só a vi à distância, mas bati aqui para confirmar seu nome e de seu marido. É coisa que tem a ver com Elaine, que é minha colega de escola.
- Deus do céu, moço!? O que houve com ela?
- Nada, minha senhora, mas é que tive um sonho...
- Entre, moço, entre e conte-me em detalhes. Espere um pouquinho enquanto chamo meu marido. Adalbertooooo....
“Putz! O homem se chamava mesmo Adalberto!”
- O nome da senhora é Elvira?
- Parecido. Alzira; mas minha mãe queria que eu me chamasse Elvira. Porquê?
- Por causa de meu sonho.
Seu Adalberto chegou à sala, estendeu-me a mão, apertou-a com a delicadeza de um torno, mas, para meu alívio, soltou-a logo.
- O que é que há, meu jovem?
- Seu Adalberto, dona Elvira, desculpe, dona Alzira, talvez os senhores me julguem meio doido, mas a verdade é que costumo ter alguns sonhos que acabam se tornando realidade. E nessa noite eu sonhei com sua família.
- Como assim? Minha família toda?
- Com o senhor, com sua senhora e com Elaine. Bem, como eu ia dizendo, o sonho foi assim: primeiro eu vi Elaine em roupas íntimas discutindo com a mãe, que passou o tempo todo dizendo não, não e não. Depois ela desceu, conversou com o senhor e conseguiu um sim. Pelo que entendi, ela queria pra Santos com um amigo, um colega, sei lá, de carro...
Dona Alzira olhava-me com olhos arregalados e comentou:
- Moço, dá até pra achar que o senhor estava espionando de dentro da minha casa. Foi assim mesmo ontem à noite. Assinzinho mesmo.
-..depois que o senhor permitiu, sem o apoio de sua esposa, Elaine correu para o banho, feliz da vida e disse que ia marcar então com um tal Edward, ou coisa parecida,,,
- Edouard, um amigo estrangeiro dela.
-...pois bem, continuando, logo a seguir eu vi um acidente pavoroso acontecendo com um carro preto. Um carro que rolava ribanceira abaixo e ia jogando gente pra fora enquanto caía de um lugar muito alto.
Dona Alzira estava ficando transparente à medida em que eu narrava meu sonho.
- Ele tem mesmo um carro preto. Um carro grandão, de quatro portas. Daqueles americanos, todo cheio de modernismos. O senhor já viu?
- Não, dona Alzira. Eu nunca vi antes esse Edouard, nem o carro dele, nem o seu marido. A senhora eu vi de longe, uma vez, na escola. Só vi tudo isso em meu sonho.
Algum tempo depois eu saí daquela casa com a sensação de dever cumprido. O resto era com eles, os pais. Eles que impusessem a resolução deles à filha.

No dia seguinte li no jornal de meu pai a notícia da morte de cinco jovens que retornavam do litoral e acabaram caindo fora da estrada em alta velocidade. Estavam em um carro grande, preto, americano, dirigido por um tal Edouard não sei das quantas.

Elaine, coitada dela...Perdeu a festa, ficou pêzíssima comigo, jurou nunca mais olhar na minha cara e que eu nunca mais falasse com ela. Mas no dia seguinte ela veio agradecer-me, penhoradamente, e eu estava sozinho em casa. Foi gratidão pra cá, gratidão pra lá, gratidão assim, gratidão assado, gratidão de tudo quanto foi jeito e maneira. Ô moça que sabia ser grata...
E eu fiquei muito grato a meus pais. Exatamente naquele dia eles resolveram visitar minha avó, que morava na milésima quinta rua depois de onde Judas perdeu as botas.
Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 06/06/2007
Reeditado em 22/07/2007
Código do texto: T516195
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