685-A METAMORFOSE DO CHIFRE-Biográfico de Pedro Gobbo

Foi uma época muito difícil para meu pai e para toda a família. Restabelecendo-se de cirurgia complicada, havia de se manter em repouso, sem fazer esforço algum.

Mas as mãos não paravam. Na primeira vez que pode descer os degraus da casa que levavam até a sua pequena oficina de marceneiro, vistoriou as ferramentas, limpou formões, engraxou algumas máquinas, espanou o tampo de sua banca de trabalho. Tudo muito vagarosamente, pois estava fraco de verdade.

Cansou-se logo e voltou para a sala, trazendo papel, lápis e carvões, que usava para desenhar as peças antes de entalhar.

Como não tinha serviço encomendado, rabiscou aleatoriamente as folhas de papel pardo.

Os rabiscos foram tomando formas. Surgiram desenhos de objetos. Um porta-retratos, um abajur, uma serie de desenhos para castiçais torneados e coisas assim.

A idéia que lhe agradou mais foi a do abajur feito de chifres de boi.

Os chifres já secos eram comprados do Sr. Colin, negociante de ferro velho, ossos secos, vidros quebrados. Nos tempos duros da Segunda Guerra mundial, esses refugos, ajuntados em grande quantidade, eram vendidos para fundições de metais, fabricas de botões (ossos) e fábricas de garrafas de vidro. O experto comerciante Colin tinha nos fundos de sua casa, num terreno amplo, pilhas gigantescas desses materiais.

A pilha de ossos brancos casava arrepio. Ao lado dos ossos de bovinos, coletados nos açougues da cidade, havia um monte de caveiras das quais meu pai tirava apenas os chifres. Custavam-lhe 1 cruzeiro o par.

Estava tão fraco que não podia sequer serrar os chifres, tarefa que meu irmão, mais acostumado a lidar com as ferramentas de marcenaria, fazia com entusiasmo.

— Olha, pai, aqueles dois ali estão muito bons. — Arthur fuçava e remexia nas caveiras, descobrindo os melhores chifres.

Em casa, colocou em prática sua idéia.

— Maria, esquenta água num tacho. Quando estiver bem quente, põe um chifre na água.

O chifre amolecia-se na água escaldante: ficava mole, macio, pronto para ser cortado com formões e facas, e tomar a forma definitiva. Depois de seco, permanecia no formato que papai havia dado.

Após cortar daqui, lixar dali, colar dois suportes que seriam os pés, o chifre se transformava num pássaro estilizado, um grande bico com dois olhos vermelhos (botões de roupa) e a parte posterior moldada como penas. Pintado de preto com uma laca especial, o chifres viravam um vistoso corvo ou pássaro preto enorme.

— Está muito bonito, mas deve ter também alguma utilidade — papai explicava. Perfeccionista, sempre procurava unir o belo com o útil.

— Vai ser um abajur.

— Abajur? — Mamãe não conseguia visualizar as idéias de papai.

No fundo do chifre oco (já transformado em pássaro) meu pai colocou um bocal de lâmpada comum, cujo fio saia por baixo do objeto, entre as pernas da elegante ave. Colocada a lâmpada, o pássaro se transformou num quebra-luz, emitindo uma luz suave pela parte posterior.

Os primeiros abajurs foram vencidos aos vizinhos e às amigas de minha mãe, para as quais fazia toalhas de crochê. Também alguns amigos de papai os adquiriram, acho que mais para ajudá-lo. Dim Danese, cuja loja na Mocoquinha tinha uma vitrina enorme, colocou um “anu de luz no rabo”(1), como ele chamou a obra de arte de papai.

Foi mamãe quem teve a idéia de presentear Dona Marocas, minha professora do grupo escolar, com um daqueles estranhos objetos, que eu achava feios e esquisitos. O sucesso entre as professoras foi imediato, todas quiseram der um e as encomendas se multiplicaram.

A renda familiar havia praticamente cessado quando papai fora para o hospital. Mas quebra-luzes de chifre, renderam um bom dinheiro, graças à imaginação e a habilidade de meu pai, um artista que se dizia marceneiro.

(1) Para não faltar com a verdade, Dim Danese chamou o abajur de “Anu com luz no cu”

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 7 de outubro de 2011

Conto # 685 da SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 06/03/2015
Reeditado em 06/03/2015
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