684-MEU PRIMEIRO CARRO - Auto-biográfico

Cezar Antonio Fabro era pedreiro, uma profissão que foi substituída por duas ou três outras: construtor, mestre de obras, peão de obra, etc. Foi um dos melhores, senão o melhor, construtor de casas em São Sebastião do Paraíso nas décadas de 1940 e 1950. Alegre, bonachão e espirituoso, tinha apelido de Cezarino e por força das circunstâncias, tornou-se amigo de meu pai.

Papai era do tipo lobo solitário, que vivia enfurnado na sua oficina de marceneiro. Mas depois de fazer alguns serviços de carpinteiro em casas construídas por Cezarino, os dois tornaram-se amigos de verdade. As visitas dominicais eram mútuas, as famílias trocavam pequenas gentilezas e os dois filhos do casal, da mesma idade de meu irmão e eu, eram bons amigos. Já a menina, Norminha, era muito bonita e não nos dava nenhuma atenção.

Como disse, Cezarino era folgazão. Brincava com nós, os meninos e deu-me muitos pedaços de filmes de celulóide, quando foi “operador” das máquinas de projeção do Cine São Sebastião.

Eu admirava Cezarino. Um domingo chegou com a família e uma máquina Kodak, e começou a tirar fotos de todos e de tudo. Papai na oficina, nós todos no meio da horta, eu balançando num galho da laranjeira, mamãe servindo a enorme travessa de macarronada, enfim, passou o dia tirando fotos.

Em outro domingo, apareceu dirigindo um automóvel Ford ano 1929.

—Comprei essa máquina, seu Pedro. Vamos dar uma volta prá experimentar.

Corria o ano de 1946, eu tinha onze anos e, com Arthur, rodeei o auto várias vezes, boquiaberto. Naquele tempo, posse de um carro era coisa possível só para os ricos fazendeiros, ou para os comerciantes mais importantes da cidade. Não existia, na época, nem vinte carros na cidade, incluindo nessa contagem os três “carros de praça”.

Papai não conteve a sua admiração:

— Ganhou na loteria?

— Que nada! Recebi como pagamento da construção do palacete do Enrico Masadiano. Ele vai comprar um carro novo e queria vender esse... então acertei com ele e fiquei com o fordinho.

Era assim que se apelidavam os carros mais conhecidos daquela época: Fordinho-29, Chevrolet-Tigre, (pequeno caminhão), Chevrolet-Vitória (o primeiro carro de passeio da Marca Chevrolet depois da segunda guerra mundial), o Guarda-Louça (Ford de 1938, de linhas quadradas, mais parecia uma caixa),

Depois do almoço, entramos no Fordinho-29. Só os homens. Não sei como coubemos dentro do veículo: Papai, Cezarino na frente e os quatros meninos no assento de trás. Cezarino dirigiu até o campo de aviação, onde pode correr à vontade pela pista vazia e fazer "manobras arriscadas”. Enquanto Cezarino dava gargalhadas, meu pai se agarrava com a mão esquerda no painel e o braço direito dobrado firmemente sobre a porta do carro. Nós, os garotos, fazíamos a maior algazarra, gritando quando as curvas apertadas nos jogavam de um lado para o outro, e animando o chofer a ir mais depressa.

Quando voltamos a casa, a basta cabeleira de papai estava toda ouriçada e ele parecia assustado. Cezarino ria que ria. De minha parte, além de fazer algazarra com os outros, estava mais fã do amigo de papai, e, no meu entusiasmo, falei para os companheirinhos:

— Inda vou ter um automóvel igual a este!

Os garotos rodeavam o carro, olhando-o por fora e por dentro, Artur, mais novo, não deixou escapar a vez de me amolar:

— Deixa de ser bobo, Tunico.Cê nunca vai ter dinheiro pra comprar um deste aí!

Quando Cezarino partiu, levando a família e levantando a poeira da rua de terra e cascalho, fiquei olhando longamente, até o fordinho desaparecer na distância e na nuvem de pó.

Acompanhei como que por acaso, a trajetória do fordinho, que passou por diversas mãos. Cerca de quinze anos depois, pertencia ao Juca Mafra, o “Rei dos Rádios”. Juca era perito no conserto de rádios, radiolas, vitrolas e eletrolas. Sua oficina ficava no centro da cidade e o carro ficava o dia inteiro estacionado à porta de sua oficina, que era também uma loja de rádios. Caprichoso, mantinha o carro sempre limpo, a capota de lona preta sempre brilhando e chegou até colocar um rádio no carro. Era o máximo da sofisticação para um automóvel já antigo.

No início dos anos 60 já havia veículos diversos transitando pela cidade. Entretanto, Juca Mafra continuava na posse do fordinho. E eu, ainda na pretensão antiga.

— Ainda vou ter aquele fordinho 29. – Dizia em casa (já estava casado e tinha duas filhas, Cecília e Denise) ou os colegas no banco onde trabalhava. Mas era só falar por falar, pois com meu salário não tinha condição de comprar carro algum.

Claudio Mumic era primo de minha esposa e trabalhava no curtume do qual o pai era sócio. Entretanto, o que ele gostava mesmo era de negociar com carros. A Volks iniciara a produção dos fuscas e o comércio de carro começava a esquentar. Era um bom comerciante, estava sempre antenado e sabia para quem oferecer os carros que vendia (mediante módica comissão). Era o que de chama hoje “free lancer” no mercado.

Nunca lhe falei sobre meu sonho de possuir o carro do Juca Mafra. Não sei como ele ficou sabendo. O fato é que, certo dia de fevereiro de 1963, enquanto eu, Enny e s duas meninas almoçávamos, Claudio entrou pela casa, balançando algumas chaves seguras pelos dedos da mão direita.

— Oi Claudio, que surpresa! — disse Enny. – Senta aí, vamos almoçar.

Acho que ele não ouviu o convite, ou fez que não ouvira. Balançando as chaves na minha frente, disse:

— Vim lhe trazer o carro que você tanto deseja!

Estaquei com o garfo a meio caminho entre o prato e a boca.

— Que... que carro? — Conseguí balbuciar, surpreso e até assustado. —Acho que você está enganado. Não tou comprando carro nenhum.

Ele colocou as chaves na minha mão esquerda, dizendo:

— Vem ver. O fordinho 29 do Juca Mafra.

Ainda atordoado com o que Claudio ia falando, levantei-me e fui até a porta da casa. De fato, lá estava, encostado ao meio-fio, o carro preparado para ser vendido: os cromados brilhando ao sol, a capota negra muito limpa, o estofamento de couro nos trinques. Enfim, aos meus olhos, uma verdadeira jóia.

— Mas não tenho dinheiro. Nem sei mesmo quanto custa.

Claudio me fez entrar no carro e dar na partida. Enny apareceu na sacada do alpendre e ficou olhando, de olhos arregalados, segurando as meninas pelas mãos.

— Vamos dar uma voltinha.

E fomos. No meio do caminho, Claudio foi me falando das vantagens, da conservação do carro, do cuidado que o Juca Mafra — praticamente seu único dono, como disse — tinha com o fordinho, até que enfim falou no preço.

— Não posso pagar, eu lhe disse. Não tenho este dinheiro.

— Ora, cara, é o carro que você que, não é? O pagamento a gente combina.

Ao sair, Claudio não levou consigo as chaves do carro. Nem os documentos de posse.

—A Enny tem que experimentar, antes de você dizer que não quer o carro.

Naquela noite, conversando com Enny, resolvi comprar o carro, fazendo algum sacrifício.

E ao deitar-me, com o pensamento a mil, lembrei-me da primeira vez em que andara naquele fordinho, há mais de vinte anos. E quase vi na direção e ouvi as gargalhadas do grande amigo de papai, Cezarino Fabro.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 21 de agosto de 2011

Conto # 684 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 06/03/2015
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