673-UMA HISTÓRIA DE DUAS FAMÍLIAS-Memórias
Chegaram ao entardecer. Cansados porque tinham viajado muito para alcançar a pequena casa onde passariam a morar. Inseguros, pois nada sabiam sobre o lugar. As duas bestas que puxavam o carroção também estavam no limite da exaustão. As sombras do entardecer não colaboravam para animar o homem e a mulher nem para alegrar as crianças.
— Sim, aquela é a casa, tenho certeza. — Disse o chefe do grupo familiar. — A indicação é essa: à beira do córrego, com uma árvore ao lado.
Eram oito pessoas: Carlos, o pai, sentava-se no banco da frente do veículo, segurando as rédeas, dirigindo e animando os animais. Francisca, a esposa, sentava-se num banco lateral, atrás do marido. Dois meninos estavam juntos ao pai, no banco da frente. Quatro crianças se esparramavam por sobre os volumes, caixas e móveis. Ali estava tudo o que a família possuía.
A viagem tinha sido longa e ela sentia mais ainda, pois estava no último mês de gravidez.
A casa tinha sido previamente alugada por Carlos e situava-se num campo, isolada, no fim da estrada cheia de buracos, capim e poeira. Dava mostras de estar desabitada há muito tempo. O terreno inclinado, sem árvores, começava na beira do riacho e subia colina acima. . Ante o olhar desanimado da mulher,Carlos murmurou, como que para consigo mesmo:
— É só por algum tempo. Logo vamos morar na cidade.
Carlos Mumic era um homem decidido. Havia deixado o serviço na estrada de ferro, um trabalho pesado: a colocação de dormentes onde os trilhos eram assentados, presos com grossos cravos de ferro. E que exigia a ausência da família, que morava em Jaboticabal.
Gostou da pequena cidade que era São Sebastião do Paraíso em 1912. Resolveu trazer a família para morar ali, pois sabia que na pequena localidade poderia estabelecer-se com um negócio próprio. Já pensava numa selaria ou qualquer coisa do ramo de couros.
Ninguém ali para recebê-los. Passaram defronte a uma propriedade, onde algumas crianças correram até a porteira e nela subiram para abanarem as mãozinhas, num gesto inconsciente de boas vindas. Da janela da casa, distante uns cem metros da porteira, um casal também lhes abanou as mãos.
Responderam com alegria aos acenos e Francisca até falou alguma coisa com uma das crianças, todas loiras como seus próprios filhos.
— Eles também são filhos de imigrantes — pensou
Acomodaram-se como puderam naquela noite. Felizmente era mês de outubro e o tempo estava quente. Mas Francisca, grávida pela sétima vez, não conseguiu dormir.
No dia seguinte, nem bem amanhecera, foram acordados por fortes palmas à porta da casa. Carlos e Francisca apareceram ao mesmo tempo à porta.
Um casal estava de pé, defronte à casa. Francisca reconheceu.
— São os donos daquele sitio que passamos em frente, ontem à tarde. — disse ao marido.
— Buon Giorno! — disse o homem, que trazia no braço uma cesta de taquara. — Somos seus vizinhos. Vimos vocês passarem ontem na frente da nossa chácara.
Surpresos e alegres desceram os dois degraus da porta para abraçar os vizinhos.
— Bom dia! Muito bom Dia!
Carlos era cordial e foi logo abraçando os dois recém-chegados. Francisca, um pouco tímida, chegou-se em seguida. Trocaram abraços, sorrisos e beijos, como se os dois casais fossem velhos conhecidos. Vieram as apresentações, de modo informal. Os vizinhos eram Aníbal e Beatriz, que traziam na cesta bolos e biscoitos para o café da família de Carlos e Francisca. Como Francisca pensara na véspera, eram também imigrantes.
— Sou Carlos Mumic e esta é Francisca, minha esposa. Somos austríacos. E vocês?
— Somos italianos, sou de Trento e ela é de Sorrento. Estamos aqui há alguns anos. Tenho uma olaria.
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Nas semanas que se seguiram, a amizade entre os Mumic (Carlos e Francisca) e os Muschioni (Aníbal e Beatriz) foi ficando cada vez mais forte. Carlos saia cedo de casa, dirigia-se à cidade, distante cerca de uma légua. Tentava estabelecer conhecimentos com os comerciantes e outras pessoas do local, procurava uma casa mais decente para a família e um cômodo para montar uma selaria. Apesar do peso do corpo e do volume da barriga, Francisca ia constantemente à chácara de Aníbal e Beatriz.
As crianças (meia dúzia de cada casal) se divertiam juntas e Beatriz ajudava Francisca no que podia. Dava-lhe ovos e fubá, feito no moinho da chácara.
Aníbal, que vivia da olaria montada em sua Chácara Lagoinha, era calado e até um pouco casmurro, mas mostrava-se cordial com Carlos e Francisca. Talvez pelo fato de serem, como ele, oriundos de terras européias e enfrentadores das mesmas dificuldades no novo mundo.
Nos últimos dias da gravidez, Francisca não saiu mais de casa, e então Beatriz ia todos os dias à pequena “casa do campinho”, como dizia. E no dia do parto, foi Beatriz que ajudou Francisca. Ambas já tinham suas próprias experiências dos partos anteriores e tudo foi normal.
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Mudaram-se da pequena “casa do campinho” para o centro da cidade. A nova residência ficava no Jardim Novo, bem a propósito para que os filhos mais velhos – Alípio, Carolina, Benedito, Alberto – estudassem com a professora Isbela Nicácio, em aulas particulares.
Carlos montou uma selaria no bairro da Mocoquinha, negócio que manteve por alguns anos. Em 1918, Com José Marinzek e Jorge Botero, montou o Curtume Paraisense. A sociedade durou até 1922, quando montou seu próprio curtume, chamado Curtume Santa Cruz.
Como esse curtume ficava “do outro lado” da cidade, os contatos e visitas entre as famílias de Carlos e Aníbal rarearam.
Aníbal, por sua vez, continuou fazendo tijolos e teve sucesso. Grande era a procura por parte das novas construções da cidade e os tijolos da Marca “AM” eram os preferidos. Construiu algumas casas na cidade, de aluguel, aumentando seu patrimônio.
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Maria, filha de Beatriz e Aníbal, nasceu em 1900, era uma das mais velhas da irmandade de onze filhos. Casou-se em 1934 com Pedro Gobbo. Tiveram dois filhos: Antônio Roque e Arthur.
Alípio, filho Carlos e Francisca, nascido em 1906, era o mais velho de oito irmãos e irmãs. Casou-se em 1928 com Alice Nascimento. Tiveram três filhos e cinco filhas, dentre elas Enny, a terceira na escala etária.
Os filhos de Aníbal/Beatriz e Carlos/Francisca pouco contato mantiveram, mas no correr do tempo, dois de seus netos se encontraram.
Enny e Antonio Roque conheceram-se quando freqüentaram a Escola Técnica de Comércio. Ambos estavam com quinze anos e do convívio como colegas nos três anos do curso comercial, aconteceu o namoro, o noivado, e o casamento, em outubro de 1958.
Quando Antônio e Enny se casaram Dona Francisca Mumic (a Vovó Francisca de numerosa descendência) era a única sobrevivente dentre os quatro protagonistas iniciais desta história, .
Dessa maneira, a amizade entre as famílias Mumic e Muschioni foi restabelecida de modo perene e formal, com definitivos laços de família.
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 11 de junho de 2001
Conto # 673 da Série 1.OOO HISTÓRIAS