669-A HISTÓRIA DE VOVÔ ANÍBAL-Série Vovó Bia # 9

9º DA Série Histórias de Vovó Bia

— Vó Bia, por que o vovô não vem com a senhora para a cidade?

Na sua ânsia de saber das coisas, Toninho faz perguntas sobre tudo e sobre todos, como uma metralhadora giratória disparando em 360 graus.

A mãe o censura:

— Ara, menino, deixa de tanta pergunta. Já está na hora de ir pra cama.

A avó, pondo de lado o livro, marcando cuidadosamente onde interrompia a leitura, responde a ambos:

— Deixa, Maria, Toninho é muito curioso. E não tem nada de mais saber por que o Aníbal quase nunca vem à cidade.

E olhando para o neto:

— O nono não gosta mito de movimentação, de gente. Prefere ficar na fazenda, no seu quarto, com suas coisas...

— Que coisas?

— Velharias. Coisas que lhe trazem recordações, lembranças...

— Lembranças do que?

— Dos tempos de rapaz, de quando deixou a Itália, veio para o Brasil. — A avó fala com brandura, com vagar, pois as lembranças do marido eram em grande parte suas lembranças também, casados que estavam há mais de meio século.

— Você e vovô vieram juntos da Itália?

— Não, Toninho. Aníbal veio em outro navio, Ele nasceu no norte da Itália, em Trento. Viajou em outro navio, e veio com uma família que não era a dele. Tinha apenas dezesseis anos, e os pais permitiram sua vinda sob a responsabilidade de uma família que vinha trabalhar nas fazendas de café. O capo, quer dizer, o chefe daquela família se chama Enrico Carmini.

—Ah, naquelas fazendas que não tinham mais escravos.

—Isso mesmo. Era comum este tipo de arranjo. Um chefe de família tinha um passaporte que valia para a família toda, e era suficiente declarar que tal rapaz era se filho, e entrava no Brasil de modo legal.

Seu avô chegou também no porto de Santos e de lá foi com os Carmini para a fazenda do Barão de Mococa, a mesma cidade em que eu, Francisco e Nicola tínhamos ido. Como já lhe contei outro dia (1), a vida dos imigrantes nas fazendas de café era pior da que a vida dos escravos. Seu avô era jovem, tinha ambições e não agüentou. Sair da fazenda não podia, estava ligado à família de Enrico Carmini. O jeito era fugir.

Foi o que fez. Na escuridão de uma noite sem lua, pegou suas roupas (a única coisa de seu) e sumiu no mundo.

Andou toda a noite, pela estrada indicada por alguém, que ia para uma cidade pequena, mais ao norte de Mococa, chamada Monte Santo. Ao amanhecer, não tinha percorrido nem a metade do caminho. Com fome e cansado, parou à beira de um rio. Tinha de atravessar a pequena correnteza, mas, como não sabia se era fundo e como também não sabia nadar, ficou por ali sem saber o que fazer.

Sentado à sombra de uma árvore, estava quase cochilando quando ouviu um chiado, um barulho como o silvo contínuo de uma locomotiva, que ia aumentando, aumentando.

— Vem chegando gente. Melhor esconder, pensou.

Escondeu-se atrás de moitas de capim, de onde tinha uma vista das margens do rio. Então viu algo que nunca tinha visto antes. Pela estrada de onde viera, chegaram três carretas de rodas enormes, puxadas por juntas de bois. As carretas vinha cobertas por esteiras de bambus, que protegiam as cargas e deviam estar pesadas, pois os bois caminhavam com vagar. Aníbal estava vendo pela primeira vez o carro de boi.

À frente de cada carro vinha um menino, com uma vara no ombro, aparentemente guiando os animais. Ao lado das carretas, cavaleiros acompanhavam. Também em passo moderado. O silvo agudo vinha dos carros, os eixos das rodas girando sob o peso da carga.

Após uma pequena parada, o menino que ia à frente de subiu para um dos carros. Um dos cavaleiros tomou seu lugar e entrou no rio, animando os bois a seguirem, com gritos e com a vara, com um ferrão na ponta.

O cavaleiro seguiu cortando a correnteza. No centro, a altura da água não atingia nem o fundo dos carros. e tanto os cavaleiros quantos os bois e carros passavam com segurança.

Aníbal viu que tinha de aproveitar a passagem dos carros de bois para atravessar o rio. Saiu do esconderijo e gritou para cavaleiro que ia atrás do terceiro carro:

— Me deixa ir no carro até o outro lado do rio.

O cavaleiro ficou surpreso com o aparecimento daquele rapaz, com linguajar arrevesado, mas não interrompeu a marcha do último carro, que já estava entrando no rio.

— Pula aqui na minha garupa, que o carro ta pesado demais. — respondeu o último cavaleiro.

Aníbal deu uma pequena corrida e, ajudado pelo cavaleiro, montou a trazeira do cavalo, e agarrou-se à cintura do cavaleiro.

— De onde cê ta fugindo? — O cavaleiro, homem de experiência, perguntou.

— Dessa banda de onde vocês vieram. —Aníbal não quis dizer de onde vinha, por medo de ser preso e reconduzido à fazenda do Barão de Mococa.

— Pode falar, rapaz, que ninguém vai te prender, não!

Anibal ficou calado.

— Você andou a noite inteira?

— Andei, senhor.

— Deve estar com fome.

— Estou, senhor.

— Vamos acampar do outro lado do rio. Você pode comer com a gente.

Assim, chegaram do outro lado do rio. Quando desceu do cavalo, saiu correndo.

— Ei, rapaz, venha cá! Vem arranchar com a gente.

A fome falou mais alto do que o medo. Aníbal voltou e acompanhou, a pé, a caravana de carros de bois.

A estrada seguia a margem do rio e quando chegaram num lugar bem plano, a caravana parou. Sob a sombra de arvores, os homens e os meninos ajuntaram-se, acenderam uma fogueira e prepararam o café.

Aníbal estava arredio, desconfiado, com medo. Mas os carreiros eram camaradas e amigáveis, conversavam alto e davam boas gargalhadas. Aníbal entendia pouco do que falavam. Aos poucos, foi se aproximando.

— Meu nome é Calixto. Vou para Monte Santo. — disse o chefe da caravana, dono dos carros e dois bois e patrão dos cavaleiros.— Se quiser, pode vir com a gente.

Aníbal acompanhou a caravana. Ao chegar ao destino, o chefe dos carreiros perguntou:

— Quer ficar trabalhando prá mim? Preciso de um rapaz forte e você parece trabalhador.

Combinaram o serviço. Aníbal ficou trabalhando com Seu Calixto. A vida era dura, não tinha lugar de morada, dormia debaixo dos carros de bois e comia do rancho – farinha de mandioca, paçoca de carne. arroz mal cozido e feijão tropeiro.

Trabalhou dois anos como carreiro. Em uma das chegadas em Monte Santo, ao descarregarem mantimentos e mercadorias no Hotel Bruno, conversou com meu irmão Francisco. Eu estava junto e nos vimos pela primeira vez. O hotel era de um primo nosso, chamado Francisco Bruno, homem muito afável e de imenso bigode (é o que me lembro dele).

O hotel precisava de um moço para todos os serviços, desde limpeza até carregar malas, essas coisas. Aníbal procurou o dono do hotel e conseguiu o emprego.

Eu já trabalhava no hotel, arrumava camas e ajudava na cozinha Me dei bem com Aníbal desde que nos conhecemos. Era um pouco mais velha do que ele, e ele era muito solitário, tinha muitas saudade da família. Naquele tempo não havia namoro como hoje, a gente não conversava sobre assuntos íntimos, nem mesmo os sentimentos. Nós dois éramos amigos, por isso fiquei surpresa quando ele disse que queria casar comigo.

— Madona Mia! Você tem que falar é com meu irmão Francisco, ele é que sabe. — Foi minha resposta.

Casamo-nos sem muita festa. Foi em 1897, eu estava com 23 anos e Aníbal tinha 19. Nesse meio-tempo, ...

— Agora, chega! — A interessante história de vovó foi interrompida pela mãe de Toninho. — Já é tarde, está na hora de dormir.

— Mas, mamãe, agora que a vovó ia...

— Amanhã ela termina Vamos todo mundo pra cama. A senhora também, mamãe!

Toninho se levantou, contrariado. Por ele, a contação de história iria até de madrugada.

Vovó Bia beijou o netinho, deu “Boa noite para todos” e se recolheu.

(1) ver Os Escravos Brancos, conto # 667 da Série Milistórias.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 28 de maio de 2011

Conto # 649 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 26/02/2015
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