668-O SUSTO DA VOVÓ BIA - Série da Vovó Bia - 7o.

7º. Da Série Histórias de Vovó Bia

Durante o mês de maio, todos os anos, Vovó Bia trocava a Fazenda Palmeiral pela casa do irmão Francisco na cidade.

Maio, Mês de Maria, era celebrado com grande reverência pelas Irmãs Dorotéias na capela do colégio da congregação. Devota que era de Nossa Senhora, Vovó Bia não perdia uma noite sequer do terço, acompanhado de ladainha e benção do Santíssimo.

A grande casa situava-se na rua mais importante da cidade, calçada e com grande movimento de pessoas. A parte da frente do edifício era a loja de Francisco, (conhecido como Chico Cervejeiro), com quatro portas abertas para a rua e grande estoque de mercadorias.

Francisco era celibatário. Com ele moravam os sobrinhos Carolina e Armando, também solteiros, além de Maria, o marido Pedro, os dois garotos do casal, Arturzinho e Toninho. .

Era uma alegria só quando Vovó Bia chegava à casa de Francisco.

Os garotos adoravam a avó. Pois a boa velhinha tinha uma paciência enorme com os netos e — o melhor de tudo! — gostava de contar histórias.

Frequentavam a escola primária. Arthurzinho, oito anos, estava no segundo ano e Toninho, de dez anos, estava no terceiro ano. É muito curioso, vivia perguntando sobre tudo e sobre todos

— Vovó, a senhora disse outro dia que ia contar a história de quando a senhora chegou no Brasil. Conto agora, conta?

Toninho tinha um jeito carinhoso de pedir as coisas.

A avó, sentada à sombra de uma parreira, tricotava tranquilamente. Era maio, quando ela passava o mês na casa da cidade para assistir as novenas na capela do colégio das freiras. O sol morno da manhã era agradável e a velha senhora aproveitava para aquecer o corpo. Deixando o tricô de lado, ela olhou para o neto e disse:

— É uma história muito triste, disse ela.

— Não tem importância. Hoje é sábado, não tenho aula e a senhora bem que poderia...

Não teve como se esquivar.

— Chame o Arturzinho, que ele também há de querer ouvir esta história.

Toninho sai correndo para o fundo do quintal o irmão menor está brincando.

— Corre, Turzim, que a vovô vai contar uma história.

Os dois meninos voltaram, sentam-se num banco de fronte a avó, que, ao mesmo tempo em que retoma o tricô, começa a história.

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—Naqueles tempos, a vida na Itália era muito difícil para todo mundo. Não era ainda um país como hoje. Havia principados independentes, parte era dominada pela França, outra pela Áustria. Um verdadeiro imbróglio. Sempre tinha uma guerra, e os soldados saqueavam as cidades, apossavam dos produtos colhidos pelos agricultores, não havia trabalho e era tudo muito caro. Meu pai, felizmente, tinha uma pequena propriedade longe das estradas por onde passavam os combatentes e de difícil acesso. Nunca foi saqueada. Plantava trigo, aveia, e tinha uma plantação de uvas, uma vinha. Fazia um vinho gostoso que vendia na cidade...

— Em Roma? — perguntou Toninho.

— Não, Toninho, era muito longe de Roma, que é a capital da Itália. A gente vivia na Campania, onde meu pai tinha a propriedade na região de Salerno. Fica perto de Nápoles e do importante vulcão chamado Vesúvio.

— Ah! A Dona Marocas já ensinou. Este vulcão destruiu uma cidade com a lava...

— Sim, Pompéia. Foi enterrada pela lava. Mas esta é outra história.

Ela olhou para o céu, como que procurando agarrar as memórias. E Prosseguiu:

— Eu era pequena e tinha que trabalhar, ajudando meu pai. Ele se chamava Genaro, minha mãe era Gioconda. Todo mundo tinha de trabalhar. Eu, meus dois irmãos, Francisco e Nicola, mais velhos do que eu. Na plantação, na poda da vinha, na colheita das uvas, no fabrico do vinho. Havia trabalho duro o ano inteiro.

— A senhora, o tio Gordo e o tio Nicola não iam à escola? — indagou Toninho.

— Escola só na cidade de Salerno. Então, papai contratou um vizinho, que era instruído e que tinha muitos livros, para ele ensinar a gente a ler e escrever. Era um velho muito bonzinho e sabia de tudo. Ele vinha quase todas as noites, e foi com ele que eu e meus irmãos aprendemos ler, escrever. Com suas histórias, ia ensinando tudo o que sabia. Mostrava os livros que trazia e eu ficava com uma vontade danada de aprender ler depressa para ler os livros. Ensinava também a fazer conta e mostrava o dinheiro, as notas e moedas, ensinando eu meus irmãos como trocar dinheiro, fazer troco, essas coisas.

— Mas, a viagem? — Arturzinho já estava ficando impaciente.

— Espera um pouco. Estou contando isso tudo prá vocês compreenderem a história. — Disse a avó. E continuou

— Então, nós começamos a ouvir notícias de muitos italianos que estavam viajando para a América, que era um lugar maravilhoso, que todo mundo trabalhava e ficava rico em pouco tempo. Um dia papai voltou da cidade com umas novidades, animado com essas histórias. Mas não queria abandonar sua terrinha,. Então combinou com mamãe para mandar nós três, eu, Francisco e Nicola, para a tal de América, que ficava do outro lado do mundo. Eu tinha então quinze anos, Nicola tinha dezessete e Francisco tinha dezoito. Francisco estava servindo o exército do reino da Itália, que estava lutando para a unificação de todos os principados e domínios estrangeiros num só país. Quando papai chegou com as novidades, Francisco estava de licença.

“Vocês têm de embarcar logo, antes de vencer a licença de Francisco”, disse meu pai. .

—Arrumamos as malas de um dia para o outro. A gente tinha pouca coisa. Papai pegou todo o dinheiro que tinha guardado e entregou para Francisco, fazendo ele prometer que cuidaria bem de nós, eu e Nicola.

Vovó parou de contar a história e pediu ao Artur que buscasse um copo d’água. Ele foi num pé e voltou no outro. Após tomar a água, ela continuou:

— Embarcamos num navio em Nápoles. Um navio a vapor, que estava repleto de imigrantes, como nós, que vinham para a América. Eu nem saiba direito para qual país vinha.

“Vamos para o Brasil, disse um. Vamos desembarcar no porto de Santos”, disse alguém..

– Foi quase um mês de viagem no mar. O navio balançava, todo mundo passava muito mal com os enjôos. Passageiros ficaram doentes, com uma febre desconhecida, e alguns morreram.

— E como eram...enterrados? —Perguntou Arturzinho.

Vovó sorriu antes de responder à pergunta inocente do neto.

— Não eram enterrados, não, Um padre fazia as orações, o corpo estava enrolado num lençol branco, e era jogado ao mar.

— Viche! — exclamou Arturzinho.

— Enfim, chegamos ao Brasil. O porto estava cheio de gente, só do nosso navio era uma multidão. Muitas famílias eram esperadas por fazendeiros brasileiros, que precisavam de empregados para suas propriedades. Ninguém estava esperando nós três, porque não vínhamos para trabalhar nas fazendas. Francisco tinha o dinheiro que papai lhe entregara e pensava trabalhar na cidade, em qualquer cidade. Descemos do navio com nossas malinhas e foi então que levei o maior susto da minha vida.

Uma parada para tomar mais um gole d’água. Os meninos arregalaram os olhos.

— Susto? – um dos garotos perguntou.

— Sim. Foi quando vi um negro pela primeira vez. Logo que descemos da prancha de desembarque, chegou perto de nós um preto. Nós nunca tínhamos visto um negro. Eu nem sabia mesmo se era homem ou macaco. Nunca, nunca ninguém me havia falado a respeito de “homem negro”. Escondi-me atrás de Francisco, tremendo de medo. O preto abriu a boca, eu pensei que ele ia me morder, mas ele estava era rindo. Então ele falou. Eu nada entendi. Nem Francisco ou Nicola.

— Vai ver, ele queria uma esmola. — Arriscou Toninho.

— Não, ele queria nos ajudar, carregando nossas malas, por algumas moedas. Mas logo chegou seu Machiari, que disse alguma coisa e o negro foi embora.

Uma pausa. Uma nuvem de tristeza (ou saudade?) passou por seus olhos, que se umedeceram.

— Acabou? — Arturzinho já mudara diversas vezes de posição. A avó notou que estava na hora de terminar a história.

— Nós fizemos amizade com a família de seu Machiari, um imigrante napolitano. Ele também vinha para cavar a vida, não ia trabalhar em fazenda. Já tinha o nome de uma cidade para morar.

— Vou para Mococa, tenho uns conhecidos lá que vieram no ano passado. — Disse o senhor Machiari. — Se vocês quiserem, vão conosco.

Francisco achou boa a idéia e comprou as passagens para Mococa, De lá, fomos para Monte Santo e finalmente para Paraíso.

— E como foi que...? —Toninho começou uma pergunta.

Levantando-se e colocando o crochê na cestinha de vime, Vovó Bia interrompeu a pergunta do neto:

— Por hoje, a história termina aqui. Outro dia conto mais.

Arturzinho saltou do banco e correu para o fundo do quintal, para sua brincadeira interrompida. Toninho levantou-se com preguiça, dizendo:

— Tá bom, ta bom, vovó. Mas a senhora fica devendo outra história, hein?

Vovó Bia, que já estava perto da porta da cozinha, virou-se e sorriu para o garoto, aquele sorriso tranqüilo, doce e compreensivo que só as vovós sabem sorrir.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 25 de maio de 2011

Conto # 668 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 25/02/2015
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