667-ESCRAVOS BRANCOS - Contos da Vovò Bia - 8o.

8º. Conto da Série “Histórias de Vovó Bia”

Vovó Bia era toda suavidade com os netos, dos quais dizia:

—Eles são o mel nos meus lábios.

Na Fazenda Palmeiral, onde morava, eles queriam sempre ouvir histórias da vovó, que os distraia com narrativas fantasiosas.

Já os dois netos da cidade, que freqüentavam a escola, preferiam histórias de verdade, principalmente da família.

Ela passava o mês de maio na cidade. Os dias frescos do final de outono eram propícios aos momentos de contação de histórias. Bastava se acomodar ao sol cálido, sob as parreiras do quintal, em caramanchões bem cuidados pelo genro, e lá vinha Toninho querendo ouvir uma história.

Num dia desses, Toninho chegou da escola com uma pergunta na ponta da língua. Correu para o quintal, onde a avó estava tricotando e tomando um pouco do sol vespertino do outono.

— Vó Bia, o professor disse que os italianos vieram para o Brasil para fazer o trabalho dos escravos. É verdade?

A avó preferia contar histórias de fantasia, porém não podia deixar o neto sem resposta. Lia muito e sabia de tudo um pouco. Colocando de lado o crochê, disse:

— Senta aí que a história é comprida. E chama o Artuturzinho para ouvir também.

Toninho gritou, chamando o irmão, que veio correndo.

— Que foi?

— Senta aqui comigo que a Vó Bia vai contar uma história de escravos e italianos.

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Vovó Bia contou:

— Amanhã será dia treze de maio. Dia no qual se comemora a Libertação dos Escravos. Vocês sabem que foi uma princesa que libertou os escravos?

— Foi a Princesa Izabel, disse Toninho. — A professora explicou.

— Isto mesmo. Naquela ocasião, o trabalho nas fazendas de café, nos engenhos de açúcar, nos garimpos, era todo feito por escravos. Negros trazidos da África. Eram caçados naquele continente, trazidos em navios e quando chegavam ao Brasil, eram vendidos aos proprietários rurais. Não tinham nada de si. Perdiam até o nome. Uma desumanidade sem tamanho. Em 1888 a Princesa Izabel, que estava substituindo Dom Pedro II, num ato de bondade, acabou com a escravidão.

— Acabou como? — pergunta Arturzinho.

— A princesa fez uma lei. Foi uma lei muito importante. Tão importante que se chamou Lei Áurea. Então, de uma hora para outra, os fazendeiros, usineiros e todos os proprietários de escravos ficaram sem trabalhadores, pois os ex-escravos, na grande maioria, não quiseram ficar trabalhando para os antigos donos.

Naquela ocasião, vinham para o Brasil muitas famílias de alemães, italianos, suíços, franceses e espanhóis como imigrantes, . E com a falta de mão de obra nas lavouras, os fazendeiros pediram ao governo que incentivasse a vinda de mais imigrantes, para trabalharem nas lavouras.

— Porque é que os italianos mudavam para o Brasil?

— Na Europa, naquela época, e principalmente na Itália, as condições de vida eram muito ruins. Não havia trabalho nem produção, e muita gente passava até fome. As guerras constantes desorganizavam os governos. Daí que os imigrantes saiam da Europa. Vinham para o Brasil ou iam para a Argentina, para os Estados Unidos. Vinham “cavar a América” como diziam.

— Cavar a América? — Toninho perguntou.

— Quer dizer, eles vinham trabalhar, ganhar dinheiro. Desejavam uma vida melhor e muitos pensavam em ficar ricos.

— A senhora passava fome na Itália?

— Felizmente, não. Meu pai tinha uma pequena propriedade, com parreiral e terra de plantio de trigo. Ele fazia vinho que tinha boa aceitação e nunca passamos necessidade. Ele até deu algum dinheiro para Francisco, meu irmão, quando saímos de Nápoles e viemos pra cá, para o Brasil.

Mudando um pouco de posição na poltrona, ela continuou:

— Quando nós, os imigrantes, chegamos ao Brasil, o nosso destino já estava traçado; Os fazendeiros mandavam capatazes para o porto de Santos e lá as famílias dos italianos eram selecionadas para ir para tal e tal fazenda. Não tínhamos liberdade de escolher nem o nosso destino. Os italianos e suas famílias tinham de ir aonde lhes era determinado. Quando chegavam nas fazendas, iam morar nos mesmos lugares onde os escravos haviam habitado. Não podiam sair da fazenda sem permissão do capataz. Eram obrigados a comprar alimentos, tecidos para fazer roupas e outras poucas mercadorias de que precisavam, no “armazém” da própria fazenda. Não tinham dinheiro e o armazém (que pertencia ao fazendeiro) abria uma conta para cada família. Como ganhavam pouco (o que o fazendeiro lhes quisesse pagar), estavam sempre devendo no armazém.

— Que vida dura! Como é que os italianos aguentavam?

— Era uma vida pior do que a vida dos escravos. Cada família de italiano era encarregada de cuidar, isto é, capinar e limpar sete mil pés de café. Era um trabalho pesado, mais do que no tempo dos escravos. Antes, cada escravo era responsável por cinco mil pés.

— Quer dizer que os imigrantes tinham que trabalhar mais do que os escravos?

— Sim. Os patrões diziam que os italianos eram mais trabalhadores que os negros, que agüentavam mais, podiam trabalhar mais.

— E não tinha jeito de ir embora, voltar pra Itália?

— Muitos adoeceram. Contraiam a febre amarela, disenteria e acabavam morrendo. Outros conseguiam passagem de volta e retornaram à Itália. Fugir não tinha como, porque o fazendeiro mandava o capataz (que era o antigo feitor o mesmo do tempo dos escravos) caçar o fugitivo. Aos poucos, os italianos que persistiram, foram conseguindo algumas economias. Plantavam "a meia" arroz, feijão e milho no meio do cafezal. Conseguiam uma renda e por fim saiam das fazendas. Compravam “umas terrinhas”, como diziam: sítios, chácaras, pequenas propriedades. Assim, foram conseguindo se libertar da “escravidão branca”, que por algumas décadas, vigorou no interior do Brasil.

— Foi assim que o vovô comprou a fazenda dele?

— Ah, bom, esta já é outra história, que vou lhes contar qualquer dia desses. Agora está na hora do jantar, vão se lavar antes que sua mãe ralhe com vocês.

Levantaram-se os três e entraram. Por toda a casa se sentia o cheiro gostoso do pão recém assado e da minestra do jantar.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 20 de maio de 2011

Conto # 667 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 25/02/2015
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