PERPÉTUA DO SOCORRO

Exaustos e ofegantes, subiam os três, ladeira afora.

Conceição levava numa das mãos uma cesta de vimes e, na outra, uma velha e coçada mala castanha de couro. À cabeça, uma trouxa de roupa.

Afonso, por sua vez, transportava às costas uma arca de madeira contendo os parcos pertences da família e algumas ferramentas de lavoura que atara à arca com velhos bocados de corda de linho recolhidos no calhau de Santiago.

Logo atrás, seguia a filha, Perpétua do Socorro, equilibrando sobre a cabeça um balaio de canavieira, no qual levava dois pães e três inhames cozidos em funcho. No braço direito e apoiada na anca, uma talha de barro de duas canadas com água fresca. Seriam os alimentos para a viagem.

Filha de Afonso e Conceição, a rapariga foi batizada na igreja de Santiago e teve por padrinhos o conselheiro Ananias e Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, recebendo por isso na pia o nome de Maria Perpétua do Socorro.

A necessidade de escapar à fome que vem assolando a cidade, arrancou-os ao casebre onde viviam, junto à Barreirinha, empurrando-os encosta acima em busca de melhor sorte.

Na cidade, vive cada vez mais gente, há menos espaços agrícolas, e o trabalho começa a escassear.

— Por este andar, qualquer dia não há fazendas na cidade — pensava Afonso. — E quando no Funchal forem só casas, o povo vai comer o quê?

Não sendo pescador de ofício, de vez em quando lá conseguia arrancar ao mar algum peixe, que vendia a fregueses certos nos palacetes da Rua da Carreira e Rua das Pretas. Outras vezes, para evitar os fiscais da praça do peixe de São Pedro, aventurava-se pela Forca afora e, em dias de sorte, conseguia vender todo o pescado ainda antes de chegar ao Lazareto.

A vida estava tão difícil no Funchal, que até o compadre Ananias, que era um dos maiores proprietários no Funchal, já raramente lhe dava um dia a ganhar na lavoura.

— Não está fácil para ninguém, Afonso. Não pode ser — justificara-se-lhe o conselheiro para negar-lhe “a esmola de umas jornas”.

— Soube que o regedor de S. Gonçalo está a aceitar caseiros para as suas terras em S. João Latrão. Porque não tentas a tua sorte por lá? Eu sou amigo do regedor Silveira e posso dar-lhe uma palavrinha, se quiseres — sugerira.

Pela tarde, chegavam à casa de S. João Latrão. Reverente, Afonso entregou ao regedor a carta de recomendação do compadre Ananias e pediu-lhe “a caridade de dar-lhes a cultivar um bocadinho de terra”.

O regedor Silveira e o conselheiro Ananias eram amigos de longa data. Com frequência, o conselheiro subia a cavalo até ao solar das Neves, residência habitual do regedor e passava alguns dias por lá, onde ambos se ocupavam nos passeios a cavalo e na caça à perdiz na coutada das Neves. Também o regedor, quando por via dos afazeres políticos ou por via dos negócios passava algum tempo na cidade, ficava hospedado na residência do conselheiro Ananias, uma casa apalaçada na Rua da Alfândega.

Em S. Gonçalo, porém, o regedor era tido por pessoa de difícil trato e por demais intransigente para com os seus caseiros no pagamento dos quinhões das colheitas.

Sendo a mulher estéril, o regedor de S. Gonçalo não tinha filhos legítimos, mas era voz corrente na freguesia que tinha mais de uma dúzia de bastardos, com mulheres dos seus caseiros incumpridores.

O regedor Silveira acedeu em dar-lhes de colonia algumas parcelas de terra num local onde já havia uma pequena cozinha de lenha, um palheiro e serventia de levada, benfeitorias que disse ter comprado à viúva de um antigo caseiro.

— Sempre dá para tratar uma rês e podem viver no sobrado — propôs.

Ficou então assente entre ambos que Afonso entregaria ao senhorio dois terços das produções de trigo, açúcar, bananas e vinho, como pagamento da renda das terras. Para pagar as benfeitorias, venderia parte do seu quinhão. O regedor dava-lhe cinco anos de prazo.

Instalaram-se e, no dia seguinte, Afonso, Conceição e Socorro começaram logo pela manhã a limpar os terrenos da feiteira, carqueja e giesta que os infestava.

Trataram depois da sementeira do trigo e do plantio de bananeiras, vinhas e canas-de-açúcar para poderem pagar ao senhorio, além de milho e hortaliças para seu próprio sustento.

Conceição estava radiante. Já se imaginava com uma vaca leiteira no palheiro, uma boa dúzia de galinhas gordas a esgravatar nos terreiros, e um chiqueiro com um bacorinho roliço que haveriam de criar para matar na Festa.

— Quem anda com Deus, Deus ajuda, e Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, minha comadre, há de proteger-nos — sentenciava enquanto admirava as plantações que floresciam viçosas.

Perpétua do Socorro, que fizera 15 anos havia dois meses, era, cada vez com maior frequência solicitada para prestar serviços domésticos na residência do regedor Silveira em S. João Latrão.

— A pequena qualquer dia está em modos de casar e é bom que aprenda a cuidar de uma casa como deve ser — sentenciou ele certo dia a Afonso. — A partir de amanhã fica na minha casa das Neves por criada. Vou mandar a velha embora. Trabalha pouco e, volta e meia está doente.

Afonso estava intranquilo com a ida de Socorro para o solar das Neves. O regedor Silveira tinha fama de mulherengo, e ainda que não tivesse comentado isso com Conceição, para não preocupá-la, não lhe saía da cabeça a ideia aterradora de que o perverso do senhorio pudesse desgraçar-lhe a filha.

— É menos um par de braços para trabalhar a terra, é verdade, mas também é menos uma boca para alimentar. E temos de cuidar do futuro da pequena — assentiu Conceição ao tomar conhecimento da decisão do regedor.

Depois da ceia, ambas arrumaram as roupas de Socorro na velha mala de couro, e pela manhã, Afonso acompanhou a filha ao solar das Neves.

Ao longo do percurso, nenhum dos dois pronunciou uma única palavra. Afonso mantinha um silêncio sepulcral, apenas quebrado por um ou outro suspiro involuntário.

Por duas vezes pararam para descansar. E em ambas as vezes, Afonso achou-se abstraído, com o olhar perdido naquela curta distância onde se desenhava a cidade ladeada pelo mar, deliberadamente de costas voltadas para Socorro, não fosse ela ler-lhe no rosto a preocupação que o atormentava.

Socorro, porém, apercebeu-se da inquietação do pai, ficando também ela em cuidados. No quase silêncio da caminhada, ocorreram-lhe então à memória algumas recordações perturbadoras. Lembrou-se do ar de gulosa depravação com que o regedor Silveira lhe cravava o olhar nos peitos arrebitados de adolescente… e daquelas vezes em que ele, disfarçadamente, lhe afagara ao de leve as nádegas, quando que ela, ajoelhada, esfregava as soleiras de cantaria, ou lavava o chão da cozinha na casa de S. João Latrão.

Chegados ao solar das Neves, Afonso tocou energicamente a aldraba em bronze da porta das traseiras, a que era permitida aos empregados.

O regedor não estava em casa. A velha criada informou que saíra a cavalo pela manhã, e que só voltaria ao anoitecer.

Afonso entregou a mala de couro a Socorro, despediu-se dela com um beijo na fronte e fez-se depois ao caminho de regresso a casa.

Os dias decorriam calmamente em S. João Latrão. Afonso vendera no mercado de S. Pedro a maior parte das hortaliças e cereais que produzira, reservando o dinheiro conseguido para pagar ao senhorio. Só a partir do ano seguinte começaria a produzir canas-de-açúcar, vinho e bananas, mas achou por bem começar desde logo a amealhar para o pagamento das benfeitorias, não fosse o regedor Silveira entretanto bater-lhe à porta e encontrá-lo desprevenido.

Era já quase Natal, o porco já estava em modos de matar, mas Afonso decidira não fazê-lo para já. Conceição adoecera, encontrava-se acamada há quase um mês e o seu estado piorava a cada dia que passava. As vizinhas vinham visitá-la todos os dias, mas nem os chás, nem as mezinhas, nem os caldos de galinha, nem sequer as rezas e benzeduras pareciam surtir efeito. Conceição apresentava cada vez mais chagas pelo corpo, febres altas e, algumas vezes chegara mesmo a delirar.

— Aquilo, ou é varíola, ou então é coisa do demónio — comentava-se na vizinhança.

Assim, a mulher definhava de dia para dia, até que, num fim de tarde, Afonso ao regressar a casa, deparou-se com a mulher já cadáver. Os vizinhos acorreram e velaram a defunta durante toda a noite.

Na manhã seguinte, a fim de tratar do enterro, Afonso mediu o corpo da mulher com um bocado de cadarço que enrolou e guardou no bolso. Com algum do dinheiro que economizara, desceu às Neves onde iria dar a notícia a Socorro, comprar o caixão e combinar o funeral com o prior.

Chegado ao solar, tocou a aldraba das traseiras por duas vezes. Não tendo obtido resposta, tocou uma terceira vez, agora com mais força e, quando a porta se abriu, deparou-se-lhe por detrás dela o regedor Silveira.

— Ah és tu! O que queres? — Perguntou secamente.

Afonso disse-lhe ao que ia, mas o senhorio respondeu-lhe com a frieza que lhe era peculiar, que Socorro não estava em casa. Que a mandara fazer um recado e que tardaria.

— Vai lá à tua vida, porque ela demora. Eu depois dou-lhe a notícia — concluiu batendo vigorosamente com a porta. Preocupado com a filha mas, ainda assim, espumando de raiva, Afonso abandonou a casa do regedor Silveira.

— Eu estava capaz de matar-te, miserável! — Resmungou enquanto descia apressadamente a calçada em direção à capela das Neves — Maldito do inferno!

De caminho, entrou numa taberna e pediu um copo de aguardente para amainar a cólera que o incendiava por dentro. Tomou-o de um só trago e logo pediu outro, que também engoliu num ápice. Num canto, sentados a uma mesa, três homens falavam e riam alto.

— Quem me dera a mim! Bem fez o regedor Silveira, é o que eu vos digo, porque a rapariga é mesmo uma “tentação do demónio” — dizia um. Os outros riam divertidos, enquanto o taberneiro voltava a encher-lhes os copos.

— O homem ia lá resistir àquele naco de carne fresca? Bode velho gosta é de erva tenra! — Exclamava outro, após o que soou nova explosão de gargalhadas.

— Então não veem que o regedor, o que quer é ter a certeza de que não há indecências nas suas terras? É por isso que fornica as pequenas dos caseiros! Para ter a certeza de que são virgens — atirou o terceiro homem, o que originou outra sonora gargalhada.

— Um brinde à cria! Que seja menina e que, quando se fizer mulher, seja faceira e roliça como a mãe — propunha o primeiro enquanto, de pé, elevava o copo de aguardente de cana.

Naquele momento, Afonso teve vontade de ter ali à sua frente o regedor Silveira e matá-lo com a frieza com que se mata um porco. Teve, melhor dizendo, vontade de matar toda aquela corja que se divertia à custa da sua desonra e da desgraça da filha. Bateu ruidosamente com a moeda de cinco reis sobre o balcão de madeira desgastada e saiu apressadamente. Não podia perder tempo em querelas, pois tinha um defunto para enterrar.

Em frente à capela das Neves ficava o curato. Atravessou apressadamente o passal e, já na casa do prior, acertou com ele o enterro da mulher para a manhã seguinte.

O cortejo fúnebre descia vagarosamente a vereda. Quatro vizinhos carregavam a urna aos ombros, seguidos pelo viúvo e, atrás dele, umas dez pessoas que rezavam mistérios do Santo Rosário.

— Tomara que o regedor não tenha dado o recado a Socorro — dizia Afonso de si para consigo. — Era melhor que a pequena não fosse ao funeral. Aparecer prenha no enterro, ia ser uma vergonha para mim e uma falta de respeito para com a alma da mãe — pensava.

Conforme combinado, o prior, já paramentado, esperava-os junto à capela para acompanhar o corpo à sepultura.

Para alívio de Afonso, Socorro não foi ao funeral. Enterrada a defunta, o grupo voltou para S. João Latrão. Afonso, porém, deixou-se deliberadamente ficar para trás. Tinha um assunto para tratar na casa do regedor Silveira.

Subiu a calçada em direção ao solar e, chegado perto da casa, não quis arriscar tocar a aldraba da porta das traseiras, não fosse dar de caras com a filha, embarrigada pelo devasso do regedor.

Escalou então o muro lateral da propriedade e, depois de certificar-se de que ninguém o via, saltou cautelosamente para a horta da casa. Caminhou lentamente e, já junto à casa, aproximou-se de uma janela e espreitou por entre as folhas da veneziana. Dava para uma grande e majestosa sala de jantar onde não se encontrava vivalma. Continuou a caminhar cautelosamente em direção à janela seguinte, que se encontrava aberta e, ao olhar para o interior, acelerou-se-lhe a respiração. Era o escritório do regedor Silveira. E ali estava o velho gordo, dormitando numa poltrona de veludo encarnado. Trepou silenciosamente a janela e, já no interior, tirou a faca do bolso e desembainhou-a lentamente. Aproximou-se do senhorio e, num golpe certeiro, como já fizera com os porcos de tantos natais, atingiu o regedor no coração.

O velho Silveira quase nem reagiu. Apenas um leve estremecimento e o regedor de S. Gonçalo já jazia sobre a poltrona encarnada sangrando profusamente.

— Hás de arder no fundo do Inferno, seu canalha! — Sussurrou Afonso depois de cuspir-lhe o rosto.

Saiu rapidamente do local pelo mesmo caminho. Já no exterior do solar, voltou a descer em direção à capela das Neves. Lavou a faca no regato da Fonte Santa e colocou-a na bainha de couro, guardando-a depois no bolso.

Sem destino, deambulou por veredas, caminhos e levadas e, dois dias depois, deu consigo a subir vagarosamente o Caminho Novo.

Junto ao Pináculo, sentou-se numa rocha proeminente e, dali, ficou a observar a cidade lá em baixo. Derramou um olhar nostálgico sobre Santa Maria Maior e a igreja de Santiago com a sua torre sineira, a destacar-se do casario; admirou o Forte logo abaixo que, na sua imponência, como que desafiava o poder e a força do mar; apreciou aquele debrum de calhau negro, beijado de branco pela espuma das ondas, a contornar a baía desde Santa Catarina até Santiago e fez um esforço para divisar o casebre de que nunca imaginara vir a sentir as saudades que agora experimentava.

No rosto, rolaram-lhe então duas teimosas lágrimas, enquanto, lentamente, a noite caía.

Era domingo.

Sentada na escadaria da igreja de Santiago, Perpétua do Socorro, cabisbaixa, aconchegava ao colo o filho adormecido com um braço, enquanto mantinha o outro estendido à caridade. Viu aproximar-se o conselheiro Ananias, que lhe atirou uma moeda de dez reis, entrando depois apressadamente na igreja. À saída da missa, voltou a aproximar-se da afilhada.

— É fêmea, ou varão? — Perguntou.

— É um rapaz, meu padrinho — sussurrou a rapariga com os olhos postos nos degraus de cantaria.

— Anda. Vais servir em minha casa! — Ordenou, enquanto descia a escadaria que dava para o Largo do Socorro. Com o bebé ao colo, a afilhada seguiu o conselheiro Ananias pela Rua de Santa Maria do Calhau. Atravessaram depois o Pelourinho, cruzaram a ribeira pela ponte velha e encaminharam-se para a casa do conselheiro na Rua da Alfândega. Pararam ao chegar junto à porta, e o conselheiro tirou lentamente a chave do bolso da jaqueta.

— Falaste a alguém sobre aquilo… que fizemos no solar? — Perguntou em tom de discreta cumplicidade.

Socorro enrubesceu, fixou os olhos na calçada e, envergonhada abanou a cabeça.

— E o que dizem em São Gonçalo?

— Dizem que… — balbucia — …pensam que… que foi o senhor regedor Silveira.

— Deixemos então ficar as coisas como estão — disse-lhe, enquanto rodava a chave no ferrolho.

Entraram e, atrás deles, a porta fechou-se ruidosamente, fazendo vibrar a aldraba de bronze.

Oscar Fernandes
Enviado por Oscar Fernandes em 25/02/2015
Reeditado em 28/09/2015
Código do texto: T5149367
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