O ALPINISTA

21 fev 15

Era uma desafiadora escalada. Nossa equipe era composta de cinco membros, três homens e duas mulheres. Eu era o escalador mais experiente e quase com a mesma experiência uma das mulheres. Os outros três membros eram muito jovens e se lhes sobrava coragem, faltava-lhes a experiência. A escalada começou a ser preparada em um mês de janeiro era um dia 23. Eu e a mais experiente das mulheres, éramos velhos conhecidos e já havíamos nos aventurado em escaladas mais simples e tranquilas. Em uma delas, já depois de haver certa cumplicidade, uma pedra rolou ao ser pisada pela companheira de aventura e me atingiu na fronte me fazendo perder os sentidos. Isso me fez afastar das escaladas por algum tempo e sofrer uma tremenda carga daqueles que me eram próximos para desistir das escaladas. O acidente mexeu comigo e me deixou marcas que ainda perduram, não consegui mais acreditar que os que me precediam na escalada teriam zelo suficiente para não pisar em outra pedra solta. Minha vontade de conquista me inquietava e me impelia para uma nova escalada e teria que ser como uma continuação daquela onde me ferirá e teria que ter como companheira a mesma que pisara na pedra solta e assim provar a todos e a mim que fora somente um acidente de percurso e que o próprio acidente seria uma garantia para um zelo maior o que possibilitaria uma escalada mais desafiadora. Começamos a formar a equipe o primeiro membro, a outra mulher, se juntou a nós quatro meses depois. Era bem jovem e com muita personalidade, uma personalidade desafiadora do que estava estabelecido chegando, por vezes, a teimosia. Gostava de escolher sua própria trilha da escalada por mais que todos dissessem que existia outra mais favorável. Após algum tempo de convívio víamos que este comportamento desafiador e contestador nada mais eram do que um escudo para ocultar seus medos interiores. Dois meses após veio o primeiro dos companheiros, extremamente técnico e seguro de seus conhecimentos, nos treinos que fazíamos mostrava uma excessiva e irresponsável segurança. Mais dois meses e chegava o último membro da equipe. Brincalhão, extremamente zeloso com seus equipamentos seu principal defeito enquanto membro de um grupo era a parcialidade. Virtudes e defeitos se misturavam e sobressaiam em todos do grupo com maior ou menor incidência. Era com este grupo que teríamos que realizar nossa grande escalada.

Começava a escalada, como guia e mais experiente defini as trilhas que seguiríamos a cada trecho. A pedra que me atingira tempos atrás era presente e determinante para que eu optasse por trilhas sem pedras soltas, ainda que mais difíceis e íngremes, sem pontos de ancoragem seguros. Estas escolhas sem a participação de outros membros, por desconhecimento do problema que silenciosamente eu carregava, e principalmente o silêncio da companheira de maior experiência que no mínimo por descuido fora a causadora do meu trauma, ao final se mostrou para mim como omissão, culpa ou desinteresse. Na escalada o barulho do vento e a distancia que cada membro é obrigado a manter do outro, obriga um falar alto e sem cautela, pois a percepção do perigo a cada passo, real ou não, exigia que todos ouvissem e cumprissem o que era determinado. Durante os primeiros obstáculos começavam os problemas de inter-relacionamento. Os membros mais jovens começavam a ir contra as determinações de rotas a seguir e conseguiam eco na companheira mais experiente o que por vezes me obrigou a desviar por trilhas que para mim eram inseguras.

A cada trecho vencido o grupo se desfazia. Sentia-me acuado e passei a perceber que só era seguido pelo fato de que a corda mãe, aquela que dá proteção e sustentação aos outros escaladores estava em minhas mãos. A total falta de apoio e a incompreensão do acidente anterior que me traumatizara me fez inseguro e incapaz de concessões ou imparcialidades. Já não conseguia distinguir qual a trilha que deveríamos seguir. Chegávamos a um ponto da escalada bem próximo ao que seria a metade da distancia, cinco mil metros, possível de escalar. Neste ponto me senti abandonado pelo grupo e novamente fui atingido por outra pedra solta, desta vez maior, mas que me atingiu apenas de raspão. Parecia que eu esperava por isto. Resolvi descer. Uma descida solitária, o que aumentava minha insegurança, cheia de acidentes por falta de apoio e sentimento de fracasso. A repetição da pedra caída sobre mim me deu a dolorosa certeza da confiança em meus instintos. Desci muito mais do que o que havia subido. O medo me seguia e me fazia escolher rotas mais perigosas. Minhas quedas durante o percurso me faziam interromper a descida até que recuperasse as condições físicas. Quando o machucado ou a torção me permitiam acessar eu improvisava o tratamento com folhas, raízes e gravetos, quando atingia meu ombro, cabeça ou costas tinha que dar tempo para que se curassem por si.

Perdido e sem direção cheguei ao final da descida em um precipício imenso que me obrigaria a uma nova escalada para atingir o nível onde iniciara a escalada com o grupo original. Neste trecho já não tinha provisões de comida e água. Senti fome e sede e por uma ajuda do destino encontrei uma escaladora que também havia se desgarrado de um grupo e aceitara dividir comigo o infortúnio da subida ao nível inicial. Subida cheia de acidentes e incidentes. Magoas e desilusões não me deixaram ver as qualidades da escaladora que me acompanhava, ela também carregava seus traumas de outras escaladas. Chegamos ao nível original e nos separamos. As feridas se fecharam e as cicatrizes perduram. O tempo, senhor de todas as verdades, me impulsionava a tentar reunir o grupo original e iniciarmos a conclusão da escalada, agora com maior maturidade e experiência. Tímidas tentativas que fiz se mostraram infrutíferas, o grupo estava desfeito e sozinho me senti quanto a intenção de nova união.

Hoje cuido de minhas cicatrizes para que elas não mais interfiram na próxima e derradeira escalada que me disponho a fazer.

Geraldo Cerqueira