Os olhos do gato.
Cinzento era um daqueles gatos, que honrava as origens dos felinos, e intuitivamente sabia o quanto a sua espécie fora venerada num passado em alguma das muitas civilizações da Humanidade. Tinha o porte de um lorde inglês mesmo sendo um puro exemplar dos SRD (sem raça definida). Ele era um dos muitos que já passaram e que deixaram seus descendentes no prédio. Eu, particularmente tenho medo, ou melhor, respeito por gatos, eles são diferentes e Cinzento era o mais diferente de todos. Os outros logo se familiarizavam com os moradores, já ele tinha uma posição bem definida: nada de intimidades. Só bebia e comia a comida que deixavam, quando não tinha ninguém por perto e se sentia o próprio dono dos muitos capôs dos automóveis dos moradores do prédio. Entretanto o seu lugar preferido era o muro que dava para a lateral da calçada onde todos obrigatoriamente teriam de passar no movimento diário de ir e vir. Era ali que ele passada as suas manhãs e finais de tarde. Por quê nesses horários? Bem, era quando havia maior fluxo de pessoas passando. E por quê? Para poder ficar observando uns, assombrando outros, ou para uma minoria se desfazendo em gentilezas (mas isso era para um número muito pequeno mesmo de pessoas).
Seu Miranda, um dos porteiros do prédio, tinha verdadeiro pavor daquele gato, e não cansava de falar da esquisitice do tal. Uma vez experimentei pergunta-lo porque o achava tão diferente e com seu sotaque nordestino arrastado, me falou que aquele gato tinha “parte com o peçonhento”. Ensaiei um sorriso nervoso, e como se não bastasse seu Miranda ainda me deu mais detalhes:
- Dona, esse gato rouba as almas das pessoas que olham para ele. Já reparou nos zóios dele? Estão sempre só com dois filetes, parece serpente para encantar.
Bem, eu é que não ira olhar para o gato para ver se era verdade ou não. Sempre que passava por ele, acelerava o passo e não olhava para trás, para não correr o risco de virar estátua.
Numa certa manhã, daquelas de inverno, quando o dia insiste em não clarear, eu saindo para trabalhar, me assustei com aquele miado alto e com uma sonoridade diferente, olhei de onde vinda e era o Cinzento, sentado imóvel em cima do muro, estampando um sorriso (se isso fosse possível) de Mona Lisa. Fiquei paralisada e naquele instante ele soltou outro miado. De mim, ele não roubou a alma, mas naquele instante ele descobriu todos os meus segredos.
Passado um tempo, misteriosamente Cinzento sumiu. Nunca mais tivemos notícias dele. Seu Miranda confirmou o sumiço do bichano e se benzia toda vez quando bendizia o ocorrido. Chegou-se a pensar que Seu Miranda fosse o responsável pelo sumiço, mas ele afirmou e jurou que nem de longe iria se meter com o “coisa ruim”.
Passaram-se alguns meses, e numa loja que vivia fechada, começou uma reforma. Todo mundo que passada tinha curiosidade para descobrir o que seria ali, mas nenhuma dica se tinha; nem um provável dono aparecia. Então naquele tarde de agosto, numa sexta-feira, uma tabuleta foi fixada na porta da loja: “SENSITIVA – Apenas com um olhar, ela lhe desvenda o passado, fala do seu presente e revela o seu futuro”. Sobre o título, o desenho dos olhos de Cinzento. Enfim o gato estava de volta.