Quem sabe

Olhou pela janela lá embaixo. Era Outono, começava a fazer frio a noite e o vento balançava as poucas folhas que restavam nas árvores. A cortina branca também balançava com o vento que entrava pela fresta da janela. Gostava daquele clima, lhe trazia uma sensação reconfortante das lembranças de suas tardes de adolescente, quando descobrira que aquela era a estação que mais gostava no ano. Parecia bobo pensar naquilo, afastou o pensamento e serviu-se de mais uma dose de whisky. A garrafa já estava pouco menos da metade, o que não era um bom sinal, visto que tinha aberto há pouco mais de dois dias.

Afastou-se da janela e procurou o relógio em cima da cama. Era aquela ansiedade que lhe matava e que fazia com que bebesse cada vez mais. Aquela demora rotineira, que parecia ensaiada. Aquele temor de que ele se quer viesse, como já tinha feito tantas vezes. Ele nunca chegava no horário marcado e, muitas vezes, se quer chegava. Parecia que gostava de brincar com ela, de jogar com seus sentimentos, de fazê-la esperar como uma idiota. Bebeu em um só gole o que restava no copo e sentiu a bebida descer ardendo por sua garganta. Depois suspirou longa e profundamente, como quem espera que alguém lhe aponte uma saída ou venha lhe salvar daquela vida mendiga.

Ouviu alguém bater a porta. Conhecia absolutamente aquela batida, era Jeremias, o mordomo, vindo perguntar se ela ainda precisava dele ou se poderia se recolher. Não, não precisava mais. Alias, há muito tempo não precisava de ninguém para nada, virava-se muito bem sozinha- algo de que se orgulhou por muito tempo, mas que hoje já não lhe fazia a menor diferença. Nos dias que vinha vivendo poucas coisas lhe faziam diferença, ao não ser, é claro, a presença tão aguardada de alguém que poderia nem chegar.

Olhou-se no espelho, depois comparou seu semblante atual com o de uma moldura gigantesca pendurado na parede atrás de si, na cabeceira de sua cama. Nem parecia a mesma mulher. Aquela mulher esplendorosa de outros tempos, que mantinha o poder em suas mãos. Que encantava e dominava a todos. Que reinava soberana e absoluta nas noites do Rio de Janeiro. Naqueles tempos, quando todos lhe paravam nas ruas para pedir uma foto ou um autógrafo. Para contarem que assistiram sua peça e acharam um máximo, para dizer que viram-na absoluta na televisão. Velhos e bons tempos, mas tão desperdiçados e jogados fora quanto o tempos atuais. Com uma única diferença, as rugas e as olheiras não existiam, o sorriso era mais constante e os cabelos não estavam quase todos brancos, não fosse a tintura que usava para disfarçar a presença dos indesejados.

Por um instante sentiu pena de si mesma, depois raiva e depois indiferença. Era assim com todo mundo, conformou-se. A vida era uma sucessão de tentativas que dão erradas. No fim sempre dá em alguma coisa patética e bizarra, como uma cinquentona apaixonada por um homem mais jovem, que lhe visita só nas madrugadas e quando bem entende aparecer. Absolutamente patético, como o amor geralmente é, concluiu.

Pegou a garrafa de whisky e bebeu mais duas doses bem servidas. Sem gelo, sem dó, sem misericórdia. Não havia calmante melhor. Dormiria a noite toda como se não houvesse vida. Sem sonhos, sem culpas, sem sentir pena de si mesma, sem chorar como uma adolescente apaixonada e romântica, que acredita que o amor lhe trará alguma vantagem. O amor jamais trás vantagem alguma, disso não tinha dúvidas. O amor sempre acaba em dor e sofrimento. E tirando a dor e o sofrimento, o que sobra? Nada, pois o amor acaba de qualquer forma, então não há jamais vantagem alguma nisso.

Antes de adormecer cogitou se deveria ou não ligar para ele só para verificar se realmente ainda não havia saído de casa. Talvez ainda viesse... não, não viria! Sabia que não. Desde aquela vez em que ligou e aquela voz feminina, suave e doce, atendera o telefone, as coisas- que já estavam de mal a pior- nunca mais foram as mesmas. Ele estava apaixonado por aquela menina dona daquela voz e era só uma questão de tempo para não aparecer nunca mais. Já não precisava de seu dinheiro para viver, a ajuda que lhe deu apresentando-o a grandes nomes do mundo da moda havia rendido frutos e hoje em dia ele conseguia se sustentar do esforço de seu trabalho. Não precisava mais dela e não estava mais disposto a continuar lhe oferecendo suas migalhas. Estava apaixonado, perdidamente apaixonado e ela já não lhe servia para nada.

Fechou os olhos e permitiu-se adormecer. Já não sentia pena de si mesma ou se revoltava com a ingratidão de todas as pessoas do mundo. Não o odiava, porque não era capaz. Continuaria devotadamente amando-o em silêncio e a distância. Na esperança ue quem sabe um dia ele retorna-se para vê-la. Quem sabe aquela menina daquela voz não se cansasse dele... quem sabe a necessidade não o trouxesse de volta, quando as portas começassem a se fechar para alguém ultrapassado para o mundo da moda? Quem sabe ele sentisse remorso por tê-la tratado com tamanha indiferença? Quem sabe ele descobrisse que não se vive só de amor... ou quem sabe sentisse saudades? Riu, de si mesma, entre o sono e a lucidez... quem sabe?

MAMagni
Enviado por MAMagni em 21/02/2015
Código do texto: T5144452
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