658-SEM BALÃO NA NOITE DE SÃO JOÃO - Memórias

— Tonico, corre na venda do seu Zito e compra umas lasquinhas de canela para por no bolo. Depressa, que a massa já quase pronta.

Peguei a caderneta do empório e corri. Voltei com um pequeno embrulho com quatro ou cinco pedaços de canela, anotadas na caderneta como “canela em rama”. Já sentia o cheiro gostoso do bolo que mamãe mexia numa tigela de louça. Fiquei por ali, esperando a massa ser colocada na bandeja de alumínio para ir ao forno. Por mais que fosse raspada, na tigela sempre ficava um resto da massa crua, que eu rapava com o dedo e lambia.

— Vai te dar dor de barriga, mamãe dizia. — E depois, você não almoça.

— Tá gostoso, eu respondia, continuando a lambança e as lambidelas. .

O bolo era para a festa de São João, no sítio de Tio Alpineu. Cada família levava um quitute, um bolo, uma travessa com quitandas ou sacolas de biscoitos.

Fomos para o sítio pelas quatro horas. Mamãe, eu e Artur, meu irmão, levávamos sacolas e bandejas com bolos e biscoitos. Papai levava um embrulho grande, com bombinhas, traques, foguetinhos, fitas de pipocas de pólvora e alguns fogos de artifício.

— Anda, meninos. Vamos mais cedo para ajudar na arrumação da festa.

O sítio distava de nossa casa apenas meia hora de caminhada. Ao chegarmos, já vimos a lenha empilhada para a fogueira. Tio Alpineu era hábil no arranjo das achas em forma de pirâmide, que atingia uns dois metros de altura. Também já estava hasteada a bandeira de São João, no topo de um bambu muito alto.

Anoiteceu e foi chegando gente. Na cozinha, a mesa posta era pequena para a fartura das quitandas doces ou salgadas, o quentão para os adultos numa enorme chaleira e o refresco de vinho doce para as crianças numa jarra também de tamanho descomunal.

A fogueira foi acesa e logo rodeada pelas crianças e pelos homens. As mulheres se reuniram ao pé do mastro e começaram a reza. Vovó Bia “puxava” o terço, as outras mulheres respondiam.

— Fiquem quietos! — Alguém ordenou, inutilmente, às crianças, às meninas e aos moleques. — Tá na hora de rezar.

Nós continuamos ao redor do fogo, fascinados pelas labaredas.

Não demorou muito e terminaram a reza. Alguns homens estavam lá rezando também: os maridos mais carolas.

Uns foram pra dentro de casa, outros rodearam a fogueira.

— Crianças, venham! As quitandas estão esperando vocês.

Corremos para a cozinha. Carlinhos e outros já haviam surrupiado, antes da hora, quitandas e pedaços de bolo. Cada um pegava o que queria, havia muita variedade e em quantidade. Mamãe me deu um copo do refresco de vinho, doce e com leve gosto de uva.

— Cuidado com o copo. Toma aqui dentro, não leva prá fora, senão pode quebrar.

Mas a gente fazia que não ouvia.

Papai e alguns tios distribuíam as bombinhas e os foguetinhos para as crianças. Os rojões e fogos de artifícios eram acesos pelos adultos, pois “eram perigosos”.

A meninada corria prá cá e prá lá. Zé Pina, agregado do sítio, apareceu com uma cesta com batata doce e foi colocando-as com jeito numa beirada da fogueira, onde o braseiro se formara.

— Espera um pouco que vamos ter batata assada.

As mulheres incentivavam as meninas a cantar uma musica que era mais ou menos assim:

Cai cai balão

Cai cai balão, cai cai balão

Na rua do sabão

Não Cai não, não cai não, não cai não

Cai aqui na minha mão !

Cai cai balão, cai cai balão

Aqui na minha mão

Não vou lá, não vou lá, não vou lá

Tenho medo de apanhar !

O fogo esquentava a área do terreiro. As mulheres vigiavam as crianças, gritando avisos:

— Zequinha, sai de perto do fogo!

— Dirce, cuidado com as bombinhas!

Algumas meninas eram afoitas, se misturavam com o moleques e os imitavam.

Tio Alfredo chegou mais tarde, a festa estava animada, e trazia um pacote grande. Depois de cumprimentar todos, começou a desamarrar o pacote, no pátio, não muito longe da fogueira. Nós rodeamos, curiosos.

Á medida que ele foi abrindo o pacote, desdobrou-se o balão, que surpreendeu a todos.

— É um balão! Tio Alfredo trouxe um balão! — gritamos.

Os outros tios se aproximaram, bem como algumas mulheres. Tio Alfredo foi puxando as pontas do balão e pediu aos garotos que o ajudassem. Logo, meia dúzia de nós segurava o balão, colocando-o em posição de acender a mecha.

Foi quando apareceu Tio Armando.

— Onde é que você ta com a cabeça, Alfredo? Soltar balão é um perigo!

Naquele tempo, soltar balão era normal. Apesar de se ter notícias de pastos que pegavam fogo quando os balões caíam, ninguém se importava. Mas tio Armando, que lia Seleções e sabia de muitas coisas que nós nem imaginávamos, achava que era perigoso.

Tio Alfredo não ouviu, ou fingiu que não ouviu. Foi até a fogueira e trouxe um tição com fogo. Já estava quase pondo fogo na mecha, na boca do balão, quando Tio Alpineu falou alto:

— Pare, Alfredo! Aqui ninguém vai soltar balão, não senhor!

Tio Alfredo estacou.Parecia assustado.

— Mas o que é que tem? Não tem perigo nenhum.

— Tá louco? Você não se lembra do ano passado? A serraria do Nequinha da Mata pegou fogo por causa de um balão que caiu lá.

Eu sabia daquela história porque era colega da Neuza, filha do seu Nequinha. A gente freqüentava a mesma classe. Ela era uma garota esperta, inteligente, tirava boas notas. Morreu no incêndio da serraria do pai.

— Ara, Alpineu, deixa de bobagem. Aquilo foi uma fatalidade. — Respondeu tio Alfredo.

— Fatalidade ou não, foi por causa de um balão. E aqui na nossa festa ninguém vai soltar balão, não senhor.

Tio Alpineu falou com a autoridade de dono da festa.

Tio Alfredo jogou o tição na fogueira e saiu, sem falar mais nada, rumo à porteira, o vulto sumindo na escuridão.

Nós, os garotos que seguravam o balão, ficamos ali, com cara de tacho, sem saber o que fazer.

Papai foi quem falou primeiro:

— Voltem para as brincadeiras. Já tem batata assada e logo vamos soltar os rojões.

Aquela discussão entre nossos tios foi um banho de água fria na festa. Logo o pessoal estava se despedindo e voltando para a cidade.

— Queria pular a fogueira! — Eu disse,

— Que pular a fogueira, que nada! — Disse mamãe, nervosa. — Vamos embora, amanhã cê tem de acordar cedo pra ir pra escola. Vamos, anda depressa.

E lá fomos nós, de volta à casa, a estrada escura, a noite sem lua.

Olhando para cima, misturados com as estrelas, podiam ser vistos, aqui e ali, alguns balões brilhantes que se elevavam para o céu, em silenciosa suavidade.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 16 de março de 2010

Conto # 657 da SERIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 20/02/2015
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