Alguém

I

Não é fácil ser alguém entre tantos alguéns. As pessoas se vestem diferente e acham que isso as torna diferente. E usam piercings, bolsa Louis Vitton e camiseta do Che. Camiseta do Che! Não é fácil ser alguém usando uma camiseta do Che. Pelo menos não em porto Alegre. Mas elas insistem nessa prerrogativa. E eu, de minha parte, insisto em me irritar com ela. Canso de ver os alguéns passando por mim com camiseta do Che e me olhando como se eu não fosse um alguém. Bem, sou um alguém. Alguém que não usa camiseta do Che. Nem nunca usará.

É difícil querer ser alguém em Porto Alegre não sendo uma pessoa engajada. Em qualquer coisa. O importante é ser engajado e defender isso com unhas, dentes e porres. Engajamento se discute com porres. Discussão sempre perdida para os não engajados. Sou um não-engajado em Porto Alegre. Sei do que estou falando.

Para ser alguém em Porto Alegre, em primeiro lugar você tem que necessariamente ser alguém. Alguém místico, alguém paty, alguém mendigo famoso, alguém petista, alguém do surf, alguém poeta, alguém burguês, alguém que fala inglês, alguém underground, alguém pseudo-intelectual, alguém de camiseta do Che. Como você vai caminhar no Parcão, beber na República ou pegar a free-way sem ser alguém “alguém”? Impossível. Totalmente fora de cogitação. Você só pode estar definitivamente louco.

São 24 anos padecendo em Porto Alegre. Meus amigos, hum, são todos alguém. Eu, para eles, sou uma lástima, um desperdício de alguemmismo, um insano sem razão de ser. Não ando em turma, não uso barba, não tomo ceva antes das seis. Deus, eu nem mesmo preciso de óculos. Tenho um cachorro e não converso com ele. Ápice anti-alguemista: minhas roupas não expressam nada. Nada. São roupas e só. Combino cores dentro do normal. Uso-as limpas, sempre que possível. E quase sempre é.

Caminhando sozinho pela Oswaldo Aranha, me aproximo da Redenção. Calor infernal faz aqui. O asfalto solta fumaça que entra pelos meus sapatos e queima meus pés. Suo. Muito. Tudo de mim se esvai em suor. Tudo. Meu cansaço, meu desencanto, minha falta de vontade para caminhar. A Redenção se estende linda ao meu olhar. Suas árvores, seus caminhos, sua paz. Procuro uma sombra para mim. Nunca faço isso. Sempre quero, mas nunca faço. A Redenção é um lugar repleto de alguéns. Dia e noite povoada de alguéns. E eu passo, nunca fico. Mas hoje sinto que a Redenção é um pouco minha. Sinto-a me chamar. Balança suas folhas e me chama. Vem, ela diz, displicente. Vou, respondo, como quem não quer nada.

Encontro a sombra perfeita. Muitas me pareceram antes dela, quase parei, mas não, tinha que ser esta. Esta sombra é para mim. Deito. Na grama mesmo. Como é bom. Penso um pouco e resolvo tirar a camisa. Há quanto tempo não sinto em mim a Natureza? Há quanto tempo meu corpo não toca o que é original? Deito e minha pele se arrepia. A grama pinica minhas costas. Não ligo. É natural. Tiro os sapatos e as meias, de qualquer jeito, deixo-os espalhados ao redor de mim. Estendo bem braços e pernas. Me espreguiço longamente. Há alguns alguéns por aqui. Não ligo. Eles não ligam para mim. Me enrolo no início, no que é o início, me envolvo do cheiro verde que corre abaixo de mim. Fico assim por um longo tempo. O sol acalma, mas não sai. É horário de verão e nunca será tarde para se estar ali. Mesmo não sendo alguém, há um pedacinho de Redenção para mim. E é só o que quero.

Alguém se aproxima. Alguém “alguém”. Sei pelo jeito de caminhar. Pelo sorriso. A forma pronta que sorri. Nem por isso falsa, apenas pronta. Sabendo sorrir. Ela vem vindo para o meu lado. É uma garota. Bonita. Claro que é bonita, senão não sorriria assim. Ela é alguém bonita. Me observa longamente. Movo minha cabeça para o seu lado. Ela sorri um pouco mais. Estende sua canga ao meu lado. Não junto, perto. Ela sabe o que fazer.

- É bom esse solzinho do fim de tarde, né?

Ela fala comigo. Fala e sorri. Será que ela me acha alguém?

- Tava muito quente hoje. Um inferno.

O que ela deve saber do inferno? A cor, talvez, porque usa.

- Tava louca pra vir tomar um chima. Adoro. Moro aqui do lado, venho todo dia.

Acho que sei o que é. É o meu jeito, assim, deitado. Sem camisa, sem sapatos, sem meias. Alguém que não agüenta o trabalho, que se sente preso, oprimido, que sonha com a liberdade da Redenção. Me achou interessante assim, deitado. Assim, sem camisa. Ela olha minha cicatriz na barriga. Sorri. Deve achar que é algo interessante como eu, algo de alguém. E foi só uma traquinagem de criança. Só.

- Quer um?

Me ofereceu o chimarrão! O que está acontecendo? Será que eu, quieto, sôo misterioso? É quase divertido observá-la me observando. Sorri de inúmeras maneiras, me devora em olhares sem fim. Lânguida, brinca com as pernas. Arranca grama com os dedos do pé. Faço sinal que não, não quero. Um movimento seria fatal.

- Tomo uma térmica inteira sozinha. Todos os dias. Amo.

Não respondo, não comento. Ela se delicia com tanto mistério.

- Gosto de erva. Todas.

Sorri, com malícia. Ficou pequena, de repente. Com certeza, ela é alguém.

- Tu curte?

Sorrio, finalmente. Mais por desabafo que por graça. Ela acha que me ganhou.

- Posso fechar um pra gente. Tenho aqui. Quer?

Segundos fatais. Para mim, certamente, os finais.

- Não.

- Não?

- Não.

Ela titubeia. Só um pouco. Logo, seu sorriso se ilumina. É um novo sorriso. Diferente de todos os outros. Ela não tem mais dúvida de que eu sou alguém. Tira da bolsa o saquinho. Começa a fechar seu baseado. Naturalmente. Como se eu realmente fosse alguém. Seus cabelos são longos, mas não muito. Não usa camiseta do Che. Ela superou isso, ela é mais do que alguém. Ela é um super alguém. Anda sozinha, fuma sozinha. Busca sozinha alguém interessante sozinho. Não fundamentalmente solteiro, pois ela não se importa em ser amante. Sua vida é à parte do amor. Quer seduzir alguéns interessantes e ter sexos interessantes. Um diferente do outro, como os seus sorrisos. Ela está no segundo patamar dos alguéns de Porto Alegre. Ela sabe que é alguém.

Fuma lentamente sua maconha. Em baforadas longas e fortes expulsa a fumaça de dentro de si. Fecha os olhos sob o sol. É como se eu não estivesse ali, ou melhor, como se ela quisesse que eu pensasse isso. São minutos intermináveis. Não sei o que virá depois. Meu coração fica em suspenso até o fim. Ela abre os olhos, torna o rosto para mim. Sorri. Seus olhos agora são vermelhos. Ela sabe bem a cor do inferno. E se esbalda. Deita sobre a canga estendida. Estica braços e pernas, como eu. Fecha os olhos novamente e parte para a viajem que supõe eu estar também. Levanto após alguns instantes. Recolho minhas coisas. Ela abre os olhos. Sorri, é claro.

- Pra onde você vai?

- Pra casa.

- Vou também.

- Pra minha?!

Ela agora gargalha.

- Não, pra minha. Tá achando que eu sou o quê?

Abandono a Redenção em passos lentos. Uma vez lá, não quero sair. Não quero mesmo. O gosto dela é muito bom.

II

No outro dia, o mesmo caminho. Saio normalmente do meu trabalho normal. Não saio estressado nem cansado, muito menos satisfeito. Saio da mesma maneira que saí todos os dias desde que estou lá. Eu não sou alguém para ter reações. Pelo menos, não as fora do normal.

Vislumbro, ao longe, a Redenção. Oásis em meio ao deserto seco e ardente. E eu, pela primeira vez, tenho sede. Salivando, não hesito, vou até ela.

Já não me demoro pelas sombras, sei qual é a minha. Tenho a impressão de que, na Redenção, todos têm a sua. Não há disputa, é um incrível fenômeno: os que estão lá sabem que têm direito e por isso é que estão lá. Não há dúvidas sobre isso. A mistura de gente, não é à toa. A profusão de alguéns, não é aleatória. Há um motivo. E eles sabem.

Minha sombra está lá. Me espera. Tento alcançar exatamente a mesma posição de ontem. Sapatos e meias espalhados. Peito nu. Olhos fechados. Me transformo em alguém e não noto. É inconsciente e irreversível. Não há volta.

Escuto os seus passos sobre a grama. Ela vem de saia solta e blusa branca. No pescoço, um lencinho. Vermelho. Na bolsa, um broche. Do Che. Agora sou eu quem sorri. Ela gosta. Ela sabe que sou dela. Ela só não sabe ainda, que eu ainda não sou alguém.

- Oi.

Ela diz. Nem preciso dizer que sorri. Arruma os óculos sobre o nariz. São modernos, vermelhos. Enxergo bem suas feições. Seu rosto pequeno, seu cabelo. Sorrio de novo, agora sem temor. Seu cabelo também tem um tom vermelho. No sol, é fogo. E o inferno se revela para mim bem no meio da Redenção. Ela estende sua canga muito perto de mim. Eu sei o que ela quer, não sou alguém como ela, mas observo os alguéns e sei como são. Meus olhos ardem em vê-la. Para ela, eu sou alguém. Alguém que a quer.

Agora eu entendi.

III

Fomos para a casa dela. Apê antigo, grande, janelão. Muitos livros bem escolhidos, pôsteres de bandas bacanas, CDS variados. Muitos vinis espalhados displicentemente ou, quem sabe, propositadamente. O barulhão da Oswaldo entra pelas janelas todas, invadindo a sala, assim como sua fumaça e seu cheiro de metrópole que arde sob o sol. E a fumaça e o cheiro de fora se misturavam com a fumaça e o cheiro de dentro. Cheiro dos cigarros fumados. Fumaça do incenso aceso. Sou envolvido de supetão. Sento no sofá de um jeito que nunca fiz na casa de um estranho. Estou surpreendentemente à vontade. Ela não tira o sorriso dos lábios e o que é aquele sorriso? Nunca vi nada igual. Ele dança pelo seu rosto e sorri sozinho, mesmo quando ela não sorri. Sozinho sim, mas nunca sem ela saber. É um acordo entre ambas as partes. Ele sorri enquanto ela faz o resto. Ele sorri enquanto ela escolhe um som para nós. Ela escolhe “Me and Bob Macguee”. Joplin, é claro. Perfeito, sofisticado e ordinário. Tão clichê quanto bom. Ela abre uma caixinha de madeira, toda trabalhada. Um troço meio indiano. É claro que tem erva lá dentro. Ela senta ao meu lado e começa a fechar, num ritual sem pressa, sem tempo para acabar. É um prazer para ela esmagar aquilo, senti-lo nas mãos, absorver pela pele dos dedos o seu cheiro. Quase acredito no seu vício. Talvez chegue até a acreditar na beleza dele. Ela é alguém e sabe tudo o que é bonito. Não, eu me engano. Ela é mais que alguém e sabe como tornar tudo bonito. Qualquer coisa, o que ela fizer, será bonito. E todos irão fazer também. É a velha regra dos alguéns.

O baseado é aceso. Ela oferece a mim, numa mesura de cavalheiro. Sorri com a própria brincadeira. Eu correspondo. É tudo mesmo uma grande brincadeira, até ela descobrir a verdade. Eu não sou alguém e isso não sai da minha cabeça um instante. O que estou fazendo aqui, o que ela está fazendo aqui? Nem quero mais saber. Eu estou aqui. Por enquanto, basta. Descubro o que é um pega e puxo o meu primeiro. É fácil. Desce rolando, suave e excitante. É de novo a primeira vez. Ela toma o cigarro de volta, puxa e me entrega. São minutos deliciosos de idas e vindas das nossas mãos. As fumaças que saem de nós se misturam no ar. Respiramos aquele ar. Ela fala enquanto fuma. Eu silencio. A seduzo com minha falta de saber o que fazer. Ela acha que tudo o que eu sei é o que fazer. Levanto e vou até a janela. A Redenção está ali. Agora mais perto do que nunca. Posso mergulhar na Redenção e fazer parte dela para sempre. Eu sei que posso. Sinto as mãos dela ao redor dos meus ombros. Me abraça, beija meu pescoço. Seus lábios são úmidos e eu esqueço que não sou alguém, que ela é alguém, que estamos vivendo algo. Dou as costas à Redenção. Ela sorri. Eu também. Agora, eu sei o que fazer. Hum. E faço muito bem.

IV

Saio do trabalho um pouco antes que o normal. Já não agüento o dia, as horas pesam em meus ombros e eu as carrego como posso. Hoje sim, o calor explodiu e ninguém é capaz de suportar. Caminhamos todos tontos pela Avenida Oswaldo Aranha, como cegos nada vemos ao nosso redor, nem uns aos outros, nem a nós mesmos. Queremos todos chegar a algum lugar, um lugar onde o calor continue, mas não tenhamos mais que caminhar e enxergar.

Eu me sinto distante de tudo isso. Muito distante. Eu não faço parte. Eu caminho com a cabeça erguida, com os olhos firmes, com os passos leves. Eu sei aonde ir e sei o que me espera. Por mais que os outros também saibam e eu sei que sabem, eu vou ao que é novo e, para lá, ninguém mais vai. Só eu.

Vou distraído, apesar do calor. Meu corpo dança ao ritmo da cidade. Porto Alegre me espreita e me recebe. E ao fim do caminho está a Redenção.

Tudo em mim dá sinais da noite de ontem. Vimos o sol desaparecer pelo janelão do apê e isso que estamos no horário de verão. Tenho as marcas em lugares distintos e insólitos. Deixei marcas em lugares que talvez nem saiba mais como voltar. Talvez, se tiver outra chance, usarei como pistas os piercings cuidadosamente espalhados pela pele branca. O verde brilha ao sol. Como é linda a Redenção.

Hoje não deito na sombra. Quero algo diferente, diferente do que fui ontem. E olha que ontem fui de todos os jeitos. Todos que alguém poderia ser. E foram todos os pés e dedos, todas as mãos e dedos, todos os lábios e dedos. Ela dava e sorria, eu comia e comia e comia um pouco mais, porque eu entendia tudo e sabia que era pra isso que eu estava lá. Ela se estendia toda, se dobrava toda, se fazia toda pra me agradar. E eu dançava em cima dela e embaixo e do lado e onde mais ela deixasse, totalmente agradado do seu jeito certo e programado, totalmente vencido pelo gozo fácil que não parava nunca de gozar. E ela não poupava gritos e gemidos, era toda o seu tesão. E eu que nunca vi alguém gozar assim, que nunca vi alguém gozar, gozava ainda mais só de pensar. E consciente, mas sem perceber, a osmose acontecia e o que era dela vinha a mim e o que era meu jorrava pelo ar. De repente, eu estava livre. De repente, não havia regras a serem seguidas, regras de manuais lidos, de filmes vistos, de relatos ouvidos. Tudo vinha em instinto. Tudo parecia ser meu. Meu gozo formou desenhos no lençol vermelho. E o inferno, assim manchado, não me parecia tão mau.

Agora sento e espero alguém.

Espero.

Espero.

Me estico.

Me viro.

Espero.

Sem camisa, com camisa, sem meias, com meias.

Deitado, sentado, em pé.

O sol vai baixando, se escondendo atrás das árvores, que já não brilham, são vermelhas, da cor da terra da Redenção. E as nuvens, densas, baixas, tem o mesmo tom das árvores, da terra, do céu inteiro, dos cabelos, do lenço no pescoço, dos óculos modernos, dos lençóis manchados, da guerrilha, do partido, do sangue que um dia saiu da cicatriz, da paixão que ontem se irradiou, do meu medo de não ser alguém, é o vermelho que se mostra todo, até onde meus olhos podem alcançar, que invade meu corpo e minha alma somente para me trazer aonde eu sempre quis estar e não sabia e agora que estou, continuo a não saber.

É óbvio que ela não vem. Por que diabos ela iria querer alguém? Ela sonha com alguém diferente e eu, sou apenas um alguém, como tantos outros por aí.

Levanto e sigo o meu caminho, pensando em, quem sabe, fazer uma tatuagem. No braço me parece bom. Muito bom. Talvez eu tatue o Che tremulando na bandeira rubra. Dou uma olhada para a menina que vem passando com seu basset pela coleira. Ela sorri e desvia os olhos rapidamente. Eu mudo meu rumo e a acompanho de perto. Fica bonita assim, com esse fundo vermelho. Digo “oi”. Ela sorri outra vez e me olha, agora por um pouco mais de tempo.

Mergulho no inferno e encontro minha Redenção.

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Mulher de Sardas
Enviado por Mulher de Sardas em 25/02/2005
Reeditado em 17/03/2005
Código do texto: T5139