Sonhos

A vista lá de cima era soberba. A serra descia abrupta nalguns pontos e mostrava as pedras, enormes, como se fossem cuspidas de uma boca negra e verde, negra e branca, negra e cinzenta, de acordo com o rigor ou a maciez do tempo. Ele, Odmiro, pastor, há muitos anos que fazia aquele roteiro. Conhecia grutas e casebres e rodava por eles ao jeito do clima. Uma vezes só com a manta e o cajado, outras com o capote também. Quase quarenta anos de vida e muito tempo de solidão. Conversava com Deus, falava às ovelhas, inventava conversas. Depois que aprendeu a ler trazia sempre os bolsos com livros, revistas, jornais velhos e lia, e relia e, tantas vezes, não conseguia perceber o que vinha dito nas letras. Palavras estranhas, conceitos avançados, mistérios que ficaram à porta do seu entendimento simples. A sua sabedoria era a dos caminhos da Serra, o jeito das nuvens para chuva ou tempo seco, o cantar da água a despencar do alto e a rasgar caminho até ser, mansa e lisa, espelho onde se via, barba por cortar, acesos os olhos, sofrido o corpo que passava a pão escuro e leite, uma ou outra fruta e agora um vazio que lhe exigia mudança de vida. Queria trabalhar com mais gente, queria beber com os demais na tasca e, sobretudo, arranjar família. Queria a casa de xisto arrumada, a lareira acesa e cheiro do caldo quando chegasse. Queria filhos, mulher, terra para amanhar e ia sentindo que, para tantos sonhos, se fazia tarde. Depois soube que Amélia ficara viúva. Sempre a estimara, sempre idealizara coisas com ela e agora talvez fosse a sua vez. Uns meses haveria de nojo mas tão logo ela aligeirasse a roupa do luto, ele entregaria o rebanho ao dono e correria pela encosta da Serra até à aldeia. Seria primavera e correndo, faria o ramo com flores do campo para esbaforido lhe dizer: colhi-as para ti. A meu ver mais ninguém as merece. E ela haveria de sorrir, corar, agradecer. Haveria de, só com os olhos, prometer outros carinhos e, talvez, marcar encontro onde ninguém os visse. Talvez de noite atrás da capela e, se escândalo houvesse, casaria.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 14/02/2015
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