A Ingratidão do Homem

A Ingratidão do Homem

A ingratidão do ser humano e a sua natureza ambiciosa de desejar sempre o melhor da vida para si foi objecto de desconfiança entre os seres do reino animal quando a fala era comum entre os animais, incluindo os humanos.

Assim, conta-se entre os habitantes do Chiumbo, (algures no Huambo, Angola) que numa bela manhã de sol aberto, um caçador saiu de casa, deixando sua mulher e seus cinco filhos para ir caçar pela mata fora. Levava consigo o seu kanyangulo (arma de caça) e três purrinhos. Quase ao meio da mata, cruzou com um coelho em velocidade, sem tempo para disparar, serviu-se de um dos purrinhos da cintura arremessou contra o animal mas não o acertou.

O caçador decidiu correr atrás da presa à toda velocidade, ignorando as precauções que a ocasião reclamava perante os obstáculos da floresta. O coelho desaparecera entre os arbustos mas o caçador continuava em correria, impulsionado pela ânsia de não voltar de mãos vazias à casa, onde a mulher, como de costume o esperava com o funge (pirão) em cima da mesa, sem conduto, a confiar no dom de caçador infalível do marido que fazia das caçadas, uma fonte inesgotável de carne para o sustento da família. Para o infortúnio do caçador, à escassa distancia, à frente dele havia uma profunda ravina. Distraído e com a mente ocupada pelos pensamentos, o homem não reparou no perigo que o aguardava e por isso, não pôde evitar a sua queda no precipício. O infeliz rolou em espiral e entre as paredes da cova. A queda durou algum tempo e antes de atingir o fundo, o homem perdeu o fôlego e a esperança de sobreviver a esse acidente.

Quanto menos esperava e com a mente desnorteada, o homem sentiu-se de repente, envolto entre duas estacas e um corpo fofo a invalidar-lhe o impacto da queda. Eram os dois braços do leão e o corpo do M’bandanjila, uma venenosa víbora bastante respeitada pela sua cor prateada e agilidade de movimentos. Ambos estavam empenhados em salvar a vida ao novo hóspede da casa obscura e subterrânea.

O homem, possuído de medo, não ousou em abrir a boca, mas os dois salvadores apressaram-se em contar-lhe a maneira como cada um deles fora parar naquele misterioso lugar:

- Vim empurrado pela mesma sorte quando fugia os ataques das formigas vermelhas que invadiam o meu buraco.

Justificou-se M’bandanjila que ao mesmo tempo encorajava o novo companheiro e o tranquilizava que ninguém o faria mal.

O leão por sua vez, contara, meio envergonhado ao homem:

- Vinha em alta velocidade atrás de um Mbambi (gazela, em umbundu, língua bantu do centro e sul de Angola), quando aconteceu-me o azar de cair neste precipício.

- História semelhante, a minha.

Admitiu pela primeira vez o homem caçador, meio arrependido por se ter decidido a caçar.

- O mais insuportável não é a prisão em que nos encontramos mas sim, a fome que nos enfraquece o corpo a cada minuto que passa e nós estamos nesta situação há mais de cinco dias.

Recordou o leão, acrescentando que se a situação prevalecesse por mais tempo não tardaria a chegar a inanição e por fim, a morte, de nada valendo a condição de se terem livrado do impacto da queda.

- É verdade.

Aquiesceu a cobra prateada argumentando que só o milagre seria capaz de os libertar daquela situação angustiante.

Passaram-se mais três dias, quando numa bela tarde, notaram à superfície, a presença de um vulto. Era um outro caçador, o Sacandumba que espreitava para o fundo da cova sem dar pelos três seres vivos que ali se encontravam. O leão, pressentido o desconhecimento do visitante, apressou-se a dar um rugido para despertar a atenção. Em seguida, os três infelizes pediam de joelhos, a Sacandumba que os ajudasse a sair daquela prisão.

Sacandumba hesitou perante o rogar lacrimoso dos três prisioneiros e dissera que antes preferia salvar o seu semelhante e deixar o leão e M’bandanjila à sua sorte, temendo maldade de que estes dois seriam capazes, depois de libertos, uma vez debilitados pela fome. Depois de muita insistência, Sacandumba acedeu e lançou na cova, uma forte e comprida corda com a qual se serviram os três viventes para escalar a parede até a superfície.

Vendo-se são e salvos, os três agradeceram longamente a prestativa caridade de Sacandumba. O seu semelhante e homólogo de profissão, após os agradecimentos, estendeu-lhe a mão e a outros companheiros em gesto de despedida. Dizia que tinha pressa de ir à aldeia para encontrar-se com a família e os amigos que já o teriam tomado por morto, durante os três dias de ausência.

O leão e M’bandanjila preferiram ficar mais um pouco em conversas com Sacandumba no intuito de aproximar as suas relações e conhecer um pouco mais a vida deste homem a quem coube o mistértio da sua salvação. Souberam então que Sacandumba residia numa cabana, no meio da floresta e levava uma vida de solteirão, sem mulher nem família, como se fosse uma pedra atirada à sorte por mão desconhecida.

Sentidos por essa confissão do libertador, os dois prometeram fazer uma visita de surpresa ao amigo e despediram-se.

A preocupação de Sacandumba de poder, a qualquer momento, receber seus amigos em casa fê-lo embrenhar-se em movimentos de arrumação e embelezamento da sua cabana e de intensificação das caçadas para aumentar as provisões para que em momento oportuno, não faltasse comida aos visitantes.

Passaram-se dois meses, quando numa fresca madrugada e estando Sacandumba a deleitar-se em belos sonhos, bateram-lhe a porta e foi com muito esforço que conseguiu acordar e dirigir-se a porta para abri-la.

No vão, Sacandumba reconheceu as faces dos amigos e apressou-se a convidá-los a entrar. M’bandanjila cumpriu imediatamente o convite porém, o leão ao invés de entrar chamou o amigo ao canto e pediu-lhe a ajudá-lo a tirar das costas, uma pesada bagagem que trouxeram para ofertar ao amigo. Além de ajudar o amigo a fazer descer a bagagem, Sacandumba apressou-se a desenrolar do pano, a anunciada oferta e foi grande o espanto, quando o homem deu com a bela face de uma rapariga cuja fisionomia denunciava ser filha de um dos reis das redondezas.

Apesar do primeiro encontro, a rapariga parecia gostar do Sacandumba e este baptizou-a por “Essanju” significando alegria. Logo a seguir instalou-se no seio do grupo, um clima festivo atiçado pela batucada e som de outros instrumentos musicais que atraíam a presença, pouco a pouco dos vizinhos e dos curiosos. Comeu-se e bebeu-se à farta durante dois dias até que os visitantes regressaram cada um à sua procedência acusando canseira, de tanto festejar.

Foi um banquete muito falado e os vizinhos que não o presenciaram atraía-lhes a ideia de visitar Sacandumba só pela curiosidade de ver a tão famosa mulher com quem se casara, avaliarem-lhe a beleza e poder relacioná-la com alguma família real.

Passaram-se muitos anos e em Chipaca, centro do reino do Bongo, o povo continuava a fazer buscas para ajudar o rei a quem desapareceu a filha quando esta se encontrava a lavar roupa num rio próximo já ao entardecer. Conta-se que algumas amigas ainda a avisaram que era hora de recolher porque nunca se sabia quando é que as feras podiam visitar o local para o abeberamento ou mesmo emboscar quem cruzasse o seu caminho.

Agora, o povo do Bongo já não vivia tranquilo porque Natchiwa desaparecera e deixara saudades por muito tempo. As buscas revelavam-se quase infrutíferas e em casa da família real já não se falava de Natchiwa para não trazer à memória, a imagem da bela rapariga. Foi sempre assim, até que um dos aldeões, o caçador salvo por Sacandumba resolve ir visitar o amigo. À chegada, foi a mulher quem o atendeu dando-lhe as boas vindas e a cadeira para se sentar. Seguidamente veio juntar-se Sacandumba que depois de saudá-lo, explicou tudo o que lhe acontecera ao longo dos quinze anos em que não se viam. Apresentou-lhe a mulher e os oito filhos e convidou-o a pernoitar em casa com a sua família, de tantas saudades.

O visitante, logo que reconheceu a mulher do amigo, franziu o sobrolho e começou a mostrar certo desapreço ao amigo, e este, longe de desconfiar, insistiu ao pedido sem lograr êxito, pois, o outro justificava-se que precisava de caminhar durante dois dias e duas noites para chegar a sua aldeia, quanto antes, e por isso, recusava-se a jantar com eles porque muitas tarefas o esperavam.

Sacandumba aceitou as desculpas do amigo e deixou-o embora. Decorridas duas semanas após a partida do amigo, Sacandumba e sua família viram invadida, numa manhã, invadida a sua casa por um grupo de soldados e milícias do Rei Bongo com ordens para amarrar e prender Sacandumba por crime de rapto de sua filha. Fechou-se a casa e toda a família fora levada para o tribunal do rei Bongo onde se aguardava o julgamento de Sacandumba. Mesmo com as explicações dadas pelo réu, o rei decidiu condená-lo a cinco anos de prisão.

A notícia chegou aos ouvidos de M’bandanjila e este comunicou-a ao leão. Ambos reuniram-se e arquitectaram um plano para salvar o amigo da prisão.

O plano atribuía a cobra, a missão de ir à embala (residência do rei) e localizar a cama deste para atingir-lhe ao pé com uma picada venenosa. O leão ocuparia-se em procurar o medicamento que sarasse a ferida do rei aberta pela picada, no entanto, tal medicamento seria entregue a Sacandumba na prisão a quem se atribuiria dom de cura para este male. O plano foi posto em prática. Após a picada, o rei mandou divulgar um anúncio prometendo pagar uma fortuna a quem soubesse curar-lhe a ferida da picada da cobra e Sacandumba foi achado como o único que sabia curar a picada de tamanha envergadura. Como recompensa, o rei deu aos seus milícias, ordem de soltura ao homem que afinal era seu genro e mandou organizar uma grande festa de casamento e reconhecimento de seus netos. À Sacandumba foi dada igualmente a liberdade de escolha do lugar onde preferia residir mas este preferiu voltar com a mulher e filhos para a sua cabana, no meio da Mata, para a alegria dos vizinhos e dos dois melhores amigos, o leão e M’bandanjila. Aquele que ele considerava seu semelhante e homólogo de profissão e a quem somente desejava retirar do precipício passou o resto da vida com a vergonha de ter sido o maior traidor e ingrato.

(Narrativa de transmissão oral recolhida na comunidade ovimdundu do Lubango-Angola; 2007, Jan.)