Só temos o que usamos
Quando em vez do triciclo obtive, pelo Natal, um tambor de lata e duas baquetas de madeira aprendi a deceção da forma mais cruel. Guardei o presente para o preservar das mãos dos outros meninos como se, íntegro, ele ainda pudesse valer-me um pedaço de alegria. Quando o faziam soar corria para o defender e metia-o, de novo, na caixa em que veio. Muito depois, já homem feito, dei comigo a garantir que nunca tinha tido um tambor de lata. Na verdade, o que não usamos não se tem. Também nunca tive o guindaste que o meu padrinho me ofereceu para seu deleite pessoal nem, muito menos, a Diamond de baquelite que era frágil demais para poder valer na minha vontade de a carregar de areia e pedras, de a arrastar pelas ruas do faz de conta onde, à falta de melhor, as latas de sardinha serviam à maravilha. No mundo das crianças o que marca é a força do sonho e não o que os adultos gastam para alegrar os pequenos. “Não é qualquer oferta que responde à minha necessidade”, disse-me, cheio de razão, o homem que tinha na minha frente. Preciso de um casaco quente que me sirva e não de pão com queijo ou um euro. O senhor tem um para me dar hoje? - Veremos, respondi. Veja este ou este. Que tal o azul claro? Quero que fique com o que mais lhe agradar e que o use com prazer. E o pedinte escolheu entre os vários agasalhos que tinha. Vestiu-o, verificou os bolsos, mirou-se nos vidros da porta e decidiu: - Fico com este. É bem quentinho. Senti que fazia por ele o que nunca fizeram comigo no tempo em que pedia as coisas que queria, que precisava. Vi-me de novo menino e, agora, a andar de triciclo.