VALENTIM
VALENTIM
Não é possível perpetuar nossos melhores momentos. Suas lembranças nos bafejam a memória: trazem aos nossos ouvidos, ecos dissonantes, aos nossos olhos, reflexos inquietantes. Em nossos membros entorpecidos roçam e nos afagam as asas do anjo da saudade.
Conheci Valentim numa tarde ventosa, quando um tênue brilho de sol se derramava de um céu muito azul. Buscando um taxi fui ao seu ponto de partida, onde, não os encontrei. Permaneci na esquina deserta sem outro recurso senão de esperar. O vento soprava, sacudindo as árvores, revolucionando folhas esparsas pelo chão; envolvendo-me de súbito, arrancou-me dos ombros um delicado xale que eu trazia.
Vi a sedosa manta erguer-se enfunada, enleada pelo vento, e enfim, prender-se a um frágil ramo de árvore, onde ficou tremulando, longe do meu alcance.
Meus olhos aflitos percorreram aquele cruzamento de ruas na esperança de encontrar alguém que me socorresse. Casas próximas pareciam fortalezas, por detrás de seus muros. Defronte, o quarteirão era ocupado por uma escola e seus portões fechados mostravam que já se encerrara a entrada dos alunos. O sopro do vento ameaçava arrebatar, levando para longe, meu xale, e eu não queria perde-lo.
Olhando uma vez mais o extenso muro da escola, vislumbrei, sentado num batente entre duas colunas, um menino que lia um caderno aberto sobre os joelhos.
“Menininho, menininho”,- chamei-o, - mas a distância e o sopro do vento opunham-se ao som da minha voz.
Temendo afastar-me de onde podia acompanhar a dança do meu xale preso ao ramo, avancei alguns passos para a beira da calçada, repetindo o chamado: “Menininho, menininho...” Ele ergueu os olhos, fitando-me. Eu acenei: “Menininho, venha aqui, por favor!” Pondo-se de pé, ele juntou seus pertences de sobre o batente e veio ao meu encontro: ”Senhora?” Tinha olhos verdes, cabelos ruivos e faces pintalgadas de sardas.
“Menininho, pedi: seria capaz de me ajudar?”
(apontei o xale esvoaçante) O vento soprou meu xale lá para cima, está vendo? (eu queria pedi-lo que fosse buscar auxílio na escola, mas ele se antecipou). Colocando no chão os objetos que trazia, aproximou-se da árvore: “Vou apanhá-lo para a senhora,” disse, abraçando-se ao tronco da árvore, galgando-o.
“Espere, espere... eu o adverti: não suba, por favor, você pode cair!...”
“Não caio não”, respondeu, escalando o tronco acima.
Assustei-me: ele, um menino frágil, magrinho; com aquele vento soprando, podia, de repente, desabar no chão; e eu seria a responsável pelas consequências do seu gesto imprevisto.
E ele ia avançando tronco acima: braços, mãos, joelhos, pés, indiferente aos meus apelos. Chegando à altura do galho ao qual se prendia o xale, mantendo-se seguro por apenas uma das mãos, inclinou-se, estendeu o braço livre para alcançá-lo. Sua audaciosa manobra fez-me vislumbrar o perigo que ele corria. Mas o menino manteve-se firme; tocou habilmente o xale, desprendeu-o com delicadeza da aresta que o prendia e escorregou tronco abaixo. Vendo-o de volta ao chão, suspirei aliviada. Entregando-me o xale com um sorriso, comentou simplesmente: “ Puxa, mas que pano macio!”
Senti ímpetos de abraça-lo. A euforia invadiu-me e eu quase me vi rodopiando com aquela criança nos braços, entre as rajadas do vento.
Ele continuou a meu lado parecendo, no entanto, desligado da minha presença. Seus olhos perscrutavam a rua que se estendia à frente. Lembrei-me de que eu devia recompensá-lo, mas, ao mesmo tempo ocorreu-me não dispor de dinheiro trocado no momento. Pensando numa solução toquei de leve seus cabelos: “Menininho, você nem pode imaginar o favor que lhe devo! Como se chama?”
Ele aprumou os ombros num movimento que exprimia certa altivez. “Eu me chamo Valentim Soares, e a senhora, como é seu nome?”
Admirando sua postura, e ainda tocada por aquele inexprimível contentamento, empertiguei-me como ele fizera. “Meu nome é Maria Izabel Soares; pode chamar-me Bebel, Valentim, seremos parentes?
Ele me avaliou com seus olhos vivazes: “Parentes...?” perguntou duvidoso, “Seremos parentes?”
“Como não, Valentim? Famílias se dispersam por esse vasto mundo, multiplicando-se, e há parentes aos quais desconhecemos, não sabia?”
( Ele pela primeira vez usou a expressão, ouvida dele, depois, tantas vezes, que aprendi a avalia-la: conforme as circunstâncias, podia manifestar dúvida, admiração, contentamento, esperança...)
“Verdade”? Perguntou, sorrindo.
“Sim, pode ser verdade,” afirmei, percebendo que se distraíra de novo, olhando à distância.
Ainda que pouco afeita ao convívio com crianças, intui que as súbitas distrações daquele menino eram manifestações de ansiedade, como se expectativas o pungissem.
Que preocupações pesariam em sua mente, tornando-o alheio e pensativo?
Observei-o enquanto ele perscrutava a rua: Vestia o uniforme da escola em cuja porta estivera; constatei que ele trazia: um par de sandálias, o caderno que estivera lendo, uma bolsa de lona que conteria material escolar.
“Valentim, chamei-o, tirando-o de sua abstração, o que fazia sentado à porta da escola? Perdeu seu horário, ou estava matando aula?”
Seus olhos relampejaram. Aprumou-se como já fizera. “Nunca perco meu horário, nem mato as aulas”, afirmou “Estava esperando uma professora...”, interrompeu-se.
“Porque esperava por ela, insisti”.
“... Sabe? eu ajudei a levar a caixa com os livros para a biblioteca. Ela me prometeu uma gorjeta... e disse que ia buscar em casa aqui por perto...”
“Na certa ela virá procurá-lo amanhã, tentei explicar, (pensando no pouco interesse que têm as pessoas em cumprir promessas) e logo emendei: O que Valentim Soares faria com essa gorjeta?”
“Ah..., dona Bebel, eu tenho uma irmãzinha, assim desse tamanho, – e ele estendeu a mão mostrando a altura – ela é doentinha. Quando ganho uma gorjeta compro uns biscoitos que ela adora... as samantilhas... conhece?”
“Sim, conheço, respondi, uns biscoitinhos leves e doces!”
“Ah... são tão gostosos! Mas eu sempre dou para Lise, Lise é o nome da minha irmãzinha.”
Emocionei-me com a atitude daquele garoto sacrificando seu prazer para agradar à irmã doente. “Que idade tem sua irmãzinha, e você, quantos anos tem?”
“Lise tem três anos, eu já fiz oito, por isso posso cuidar um pouco dela...”.
“Onde mora, Valentim? Vive com seus pais?”
“Moramos, eu e minha irmã, com nossa mãe aqui perto, na Vila Amélia, conhece?”
“Não... não conheço... Valentim”
(Notei então que o vento amainara; um taxi acabava de estacionar na esquina; pessoas surgiam cruzando as ruas.)
Consultando o relógio constatei meu atraso para o encontro marcado com amigos. Mas antes eu deveria cumprir meu dever de gratidão para com o menino.
“Venha, Valentim, vamos ao supermercado comprar samantilhas, convidei, acenando para o taxi.”
O menino olhou-me surpreso: “O supermercado não é longe, podemos ir andando”, ele sugeriu.
Mas eu tinha pressa; meus planos para aquela tarde haviam sido interrompidos; eu desejava recuperar o tempo perdido.
O taxi aproximou-se. “Vamos, Valentim, insisti”. Ele apanhou seus objetos e acompanhou-me.
Continuava descalço embora carregasse o par de sandálias.
“Por que não se calça?”
“Uma sandália arrebentou”, respondeu.
“Se não prestam mais, por que não as joga fora?”
Ele respondeu confiante: “Minha mãe sempre pode dar um jeito.”
Examinei com tristeza as sandálias que ele carregava. Eu desconhecia as necessidades daqueles que viviam na pobreza. Nunca havia pensado nas dificuldades que assombram a vida de alguns, que precisam contar tostões para sobreviver. Nada sabia do dia- a- dia de quem tenta fazer render o pouco que hoje tem, com os olhos nas precisões do amanhã.
Favorecida pelos rendosos proventos da fortuna familiar, eu jamais fora tocada por preocupações relacionadas à economia ou poupança.
Na curta viagem até o supermercado permanecemos em silêncio. Chegando, pedi ao motorista que nos aguardasse.
“Vamos às compras, Valentim”, convidei. “Deixe seus objetos no carro, pois ele nos levará de volta”.
Valentim seguiu-me. Passando por um expositor de sandálias, lembrando-me daquelas que o menino tão ciosamente carregava, ofereci: “Escolha um novo par de sandálias, Valentim, enquanto vou comprar samantilhas...”
Ficou indeciso, diante da gôndola.
“Que número calça”, perguntei, tentando ajudar.
“Trinta e quatro”, disse, olhando relutante para as sandálias
“Pegue a que gostar mais”, completei, afastando-me para buscar as samantilhas. Pedi uma generosa quantidade delas, uma porção de bolo recheado, uns tentadores pãezinhos cobertos com creme. Lembrei-me de que crianças tomam leite e gostam de yogurt; assim os acrescentei à compra.
Fui encontrar Valentim ainda na tentativa de escolher uma sandália.
Deduzi que para aquela criança, não era fato comum ter preferências. Para a compra de qualquer objeto prevaleceria, depois da necessidade e da urgência, a parcimônia. Tentando estimula-lo, tomando três das melhores sandálias da mostra, incentivei-o a escolher a que mais gostasse.
Ele se decidiu, não antes de perguntar timidamente: “Pode ser esta, D. Bebel?”
“Sem dúvida, Valentim, respondi, apontando as compras que havia feito: são para você e sua irmãzinha!”
O menino olhou-me com uma expressão aflita, e, em voz baixa revelou seus temores: “Não posso aceitar, D. Bebel... Como vou contar para minha mãe que ganhei tanta coisa?... Ela vai se zangar...”
Vi-me diante de um impasse. Presentear Valentim fora um ato espontâneo, inspirado pela gratidão. Mas a justificativa do meu procedimento seria exigida daquele menino aguardado em casa por uma mãe zelosa, pronta a questioná-lo. Eu não poderia despedir-me de Valentim, abandonando-o simplesmente à censura de sua mãe. Meu dever era acompanha-lo à sua presença e esclarecer o motivo pelo qual eu o presenteara com um par de sandálias, leite, yogurt, e um punhado de guloseimas.
Comuniquei aos meus amigos o motivo de meu atraso, liberando-os para prosseguir sem mim, o programa combinado.
Tranquilizei Valentim prometendo acompanha-lo até a sua casa e conhecer sua mãe.
“Dona Bebel, posso dizer outra coisa?”
“Decerto, diga, Valentim!”
“Dona Bebel, é errado mentir, minha mãe sempre diz.”
“É verdade, Valentim e sua mãe tem razão.”
“Então a senhora contará a ela a verdade sobre nosso encontro?”
“Certamente... que mal há nisso?”
Titubeante ele esclareceu: “É que eu subi naquela árvore. Ela não vai gostar...”
A aflição do menino era comovente.
“Então é isso: se eu contar a sua mãe sobre nosso encontro, não devo dizer que você subiu numa árvore para salvar meu xale?”
Ele sacudiu a cabeça, aquiescendo.
“Ouça, Valentim, expliquei: sem que eu diga qualquer mentira, sua mãe jamais ouvirá de mim que você subiu naquela árvore, combinado?”
Ele me olhou intrigado.
“Verdade?” Interrogou, parecendo aliviado. Sem esperar por minha resposta, tomou as compras: “Podemos ir, dona Bebel ?” Partimos e pedi que ele explicasse ao motorista a localização de Vila Amélia.
Ali chegando constatei que Vila Amélia era um conjunto de moradias simples, recuado da rua, protegido por um muro alto. Sua entrada era um portão de grades, onde, num arco, destacava-se o nome da vila.
Valentim desceu do carro levando as compras; pedi ao taxista que aguardasse alguns minutos.
“Aqui estamos, Valentim, eu disse. Pode chamar sua mãe para que eu me entenda com ela.”
Colocando-se na ponta dos pés Valentim acionou uma das campainhas fixadas no muro; e, com esse gesto fundamentou mudanças que ocorreriam nos meus valores e atitudes.
Da porta de uma das moradias assomou uma mulher que transpôs apressada o caminho até o portão: era jovem e esbelta; trazia os longos cabelos ruivos presos numa travessa. Espreitou entre as grades do portão e vendo Valentim destrancou-o: “O que houve Valentim, para demorar-se tanto?”, admoestou o filho, em voz baixa, embora num tom severo.
“Mãe, esta é dona Bebel que veio comigo para falar com você...”
Adiantei-me, cumprimentando-a. Ela correspondeu ao meu cumprimento. “Meu nome é Roselys, disse delicadamente, vamos entrar...”
Compreendi que para aquela mulher não bastariam meia dúzia de palavras como explicação, portanto, acertei o custo da corrida com o taxista e dispensei-o.
Acompanhei Roselys pelo caminho de pedras: sua casa era a terceira da ala direita. Um canteiro plantado com gladíolos floridos enfeitava a entrada. Dois degraus levavam à porta.
Roselys fez-me entrar, oferecendo-me lugar onde sentar. Valentim que nos acompanhava, passou para outro cômodo levando os pacotes com as compras.
“Não repreenda Valentim por haver-se atrasado, pedi, pois sou eu a responsável pelo acontecimento, razão porque o acompanhei até aqui para torna-la ciente do fato”.
Roselys manteve-se em silêncio, ouvindo-me com uma expressão atenta.
“Seu filho é um garoto inteligente e prestimoso. Ainda há pouco uma forte ventania arrebatou-me uma mantilha que eu trazia nos ombros, levando-a para uma distância onde eu não a poderia alcançar. Valentim estando por perto, agiu com rapidez e recuperou-a.”
(Abrindo minha bolsa retirei o xale que ali havia guardado, mostrando-o a Roselys.) Ela o tomou das minhas mãos, alisou-o delicadamente e o devolveu comentando: (é uma peça preciosa, trata-se de seda chinesa, não é?)
“Certamente, confirmei. Sem o auxílio prestado por Valentim, ele estaria perdido. Seu valor para mim é expressivo, por haver pertencido à minha mãe; quando mocinha, estudando num convento na Espanha, cobria-se com ele em suas orações. Tenho profundos sentimentos relacionados a essa lembrança de minha mãe, por isso, a ajuda de Valentim deixou-me muito grata”.
Ouvi um leve ruído vindo do cômodo adjacente, o que me fez presumir que Valentim permanecia atento à nossa conversação. Assim, elevei ligeiramente a voz concluindo: “Dialogando com Valentim, descobri seu gosto em satisfazer à irmã oferecendo-lhe certos biscoitos. Comprei então um pouco deles, acrescentando algumas guloseimas, que acredito serem do agrado das crianças. Dei-lhe também uma sandália nova para substituir a que arrebentou”.
Roselys deixou escapar um leve sorriso. “Fico-lhe agradecida pela consideração, vindo procurar-me, justificando comportamento de Valentim, assim como agradeço a gentileza dos presentes que lhe ofereceu, mas sempre ensino a meu filho que não se cobra por favores prestados...”
“Ele nada cobrou de mim, redargui, pode ter certeza. Tive mesmo que insistir para que aceitasse...”
Ela fez um gesto de aquiescência, levantou-se, pediu licença e dirigiu-se ao cômodo onde Valentim se encontrava. Observei então a sala. Apesar da simplicidade do recinto havia bom gosto e refinamento na sua disposição: o conjunto de móveis em estilo rústico era autêntico; a poltrona onde eu me sentava revestia-se com um tecido de boa qualidade, estamparia discreta; desse mesmo tecido eram forradas as almofadas das cadeiras. A bela estante mostrava porta retratos e compoteiras antigas, revistas de decoração. E o que mais se destacava naquele recinto eram limpeza e organização: o piso branco parecia recém-lavado. A estante, em suas prateleiras, não tinha qualquer resquício de poeira; a pequena escrivaninha no mesmo estilo, em uma das paredes laterais, tinha sobre ela cadernos, porta – lápis, agenda. Na mesma parede, acima da escrivaninha, um relógio tiquetaqueava e assustei-me quando seu carrilhão badalou às 15 horas. (O tempo transcorrera despercebido desde que eu ali chegara. O programa planejado para aquela tarde com amigos, eu o desfizera, assim como o almoço, combinado num restaurante recém-inaugurado). Eu havia cumprido meu dever de gratidão para com Valentim; já me desincumbira da promessa de justifica-lo perante a mãe; podia despedir-me e partir.
Nesse momento Valentim voltou à sala. Devia ter-se banhado: tinha os cabelos ainda úmidos, vestia um short limpo, calçava as sandálias novas que eu lhe dera. Sentou-se na poltrona, a meu lado, cruzando as pernas sardentas como um hindu rubicundo.
“Mamãe vai oferecer-lhe um café, dona Bebel, a senhora aceita, não é?”
“Aceito com prazer”, eu disse. Embora habituada a almoços tardios, naquele momento o aroma do café despertou-me o apetite. Roselys aproximou-se trazendo uma bandeja de porcelana pintada com pequenas violetas; o serviço de café tinha o mesmo padrão delicado; reconheci tratar-se de louça fina, antiga. Valentim foi à cozinha, de onde veio trazendo duas cestinhas, forradas com guardanapos bordados à mão, cheias com samantilhas.
“Desculpe-me servir-lhe os biscoitos que trouxe”, disse Roselys, amavelmente, enquanto deitava nas belas xícaras o café fumegante. Seus gestos eram delicados e atentos. Valentim sorria observando-a estender-me a xícara com o café, oferecendo-me as samantilhas. Então constatei minha satisfação em estar ali; questionei-me por sentir-me tão bem junto àquela mulher a quem tão pouco conhecia, mas que era, ao mesmo tempo, simples e primorosa. Sua amabilidade era espontânea, e havia nela um natural encanto; acompanhava-me seu olhar tranquilo enquanto eu degustava com prazer a revigorante bebida, compartilhando os biscoitinhos destinados às crianças.
Roselys serviu-se do café, lançando um olhar a Valentim. Ele voltou à cozinha, trazendo uma caneca de louça contendo leite. A mãe completou-a com café, adoçou-a; ele foi bebericando, mordiscando as samantilhas.
“Valentim”, uma voz de criança chamou de um quarto próximo.
“Lise, acordou, mãe” disse o menino, levantando-se para atender ao chamado.
“Deixe... eu vou busca-la...” Roselys dirigiu-se ao quarto e depois de alguns minutos retornou trazendo a menina sentada numa cadeirinha. Lise não era ruiva como a mãe e o irmão: Seus abundantes cabelos eram de um castanho dourado; os olhos cinzentos mostravam lampejos azulados, a pele era clara, sem nenhuma sarda. Uma beleza para ser apreciada. Seus bracinhos roliços logo se estenderam para Valentim. Sorridente, repetia o nome do irmão. Valentim junto dela deixava-se acarinhar.
Lembrei-me que Valentim me dissera que a irmã era doentinha, mas a garota parecia sadia.
Roselys envolvia os filhos com o olhar. “Valentim contou-lhe que Lise é doente?”, perguntou.
“Sim, ele me disse... mas nada notei...”
Ela apontou as pernas da menina: “Ela não caminha”, disse, em voz baixa.
A revelação condoeu-me; fiquei em silêncio. Valentim brincava com Lise, e lhe dava samantilhas aos pedacinhos.
Roselys lançou um rápido olhar para o relógio. “É hora de servir a ela um alimento”, buscou uma tigelinha com uma papa de banana e aveia. Valentim tomando a tigela começou a oferecer a papinha à irmã.
“O que sofre essa criança?” perguntei.
Roselys guardou silêncio por algum tempo. Observei lágrimas contidas nos seus olhos pousados na garotinha, a quem Valentim alimentava carinhosamente. Dominando a emoção ela se voltou para mim: “vou contar-lhe o problema que estou vivendo... mas antes vou renovar o café que está frio”. Retirou-se para a cozinha onde preparou um novo bule de café.
“Lise hoje tem três anos completos, ela explicou: desde o nascimento foi perfeita, mas de um dia para outro começou a andar com passos incertos e cambaleantes. Levada ao pediatra esse receitou uma medicação tônica e aconselhou massagens, terapêutica que demonstrou ser inútil. Um ortopedista consultado, à primeira observação, com certa reserva, levantou a hipótese de ser hipertrofia muscular, mas aconselhou a procura por outro especialista que mediante a aplicação de testes específicos, esclareceria a verdadeira natureza da doença. Considerou-se a possibilidade de ser hipertrofia Duchenne, mas essa doença é transmitida pela mãe ao filho do sexo masculino. Mulheres não apresentam sinais clínicos da doença muscular, ainda que possam herdar o gene. Eu deveria, por consequência, sujeitar-me a exames que comprovassem a possiblidade de ser a transmissora, visto não haver em minha família quadro clínico semelhante”.
Sua narrativa foi interrompida por uma batida na porta. Uma das vizinhas chamava Roselys para atender a uma chamada telefônica. Pedindo-me desculpas ela a acompanhou. Valentim que já terminara de servir a papinha à Lise aproximou o carrinho da irmã, sentando-se a meu lado. Acariciando o lindo rostinho da menina, exprimi minha admiração por sua beleza. Valentim concordou comigo, entusiasmado. Pela porta da sala que ficara aberta, revendo o canteiro onde floriam os gladíolos, comentei como me agradavam aquelas flores assim frescas e perfumadas. E Valentim contou-me que ele mesmo havia plantado os bulbos a ele oferecidos pelo marido de uma das clientes de sua mãe. “Esse senhor, Valentim explicou: entende tudo de flores e plantas; a profissão dele é desenhar e criar jardins... ele é... eu agora esqueci o nome...” “A profissão se chama paisagista, Valentim, lembrei”.
“É isso mesmo, dona Bebel, ele é um paisagista, Valentim aquiesceu; um dia ele me levou ao lugar onde escolhe as plantas para os seus jardins, e gostei muito dos gladíolos que eu chamava Palmas de Santa Rita. Ele então me explicou que gladíolo é o nome científico das palmas, deu-me as batatas, ( ensinou que são bulbos) me disse como plantar e cuidar das mudas. Sabe, dona Bebel, ele mandou até um auxiliar vir aqui fazer o canteiro, adubar a terra e ajudar-me a plantar... levou tempo para nascerem as flores, mas valeu a pena, a senhora não acha? São tão lindas... cada vez gosto mais delas... Sei também que cada uma das flores tem o seu próprio nome. Isso também o... o paisagista me ensinou! E Valentim, apontando as flores, foi declinando seus nomes como lhe fora ensinado: este é Jester , aquele Gold Field; ali no canto, são os Priscila, os do meio Rose Suprema. Ainda vão florir os White Godess, e os Verência... Repare nesses roxinhos, D. Bebel, minha mãe gosta muito deles, são os Lavender”.
Aquele menino era simplesmente singular. Expressava-se com naturalidade sobre as plantas, informando sobre elas, não como um aluno treinado, repetindo uma lição decorada, mas de uma maneira muito especial, demonstrando emoção por conhecer o assunto e alegria em falar sobre ele. Sua alma harmonizava-se com o encanto emanado daquelas flores em cujas pétalas ele tocava delicadamente.
Roselys voltando apressada encontrou-nos falando sobre jardins..., daqueles que Valentim sonhava ter..., dos meus jardins, que em minha casa eram largos espaços cultivados com arbustos, flores e gramados. Eu já me comprometera com Valentim a leva-lo para conhece-los.
Embora não soubesse com detalhes todo o drama vivido por Roselys, eu intuíra que não eram poucas suas dificuldades.
Estre as pessoas do meu relacionamento, um médico destacava-se por seu espírito humanitário. Estava sempre realizando manobras para ajudar aos necessitados que a ele procuravam ou lhes eram recomendados. Fazia um trabalho social em toda a sua extensão mostrando preocupação incontestável pela humanidade sofredora. Nomeado certa ocasião para Secretário de Saúde realizou em sua gestão atividades humanísticas, com dedicação e altruísmo; enfrentou com denodo a politicagem e o descaso do sistema; era um idealista inconformado com a injustiça social. Por esse traço marcante em seu caráter levava a alcunha de “socorrista”. Pensei que esse amigo seria útil para um aconselhamento no caso de Lise.
Naquele tarde, ao partir, deixei com Roselys a promessa de tentar trazer alguma esperança para o tratamento da menina.
O meu amigo “socorrista” interessou-se pelo problema de Lise, dando os passos necessários para consultas e exames.
Foi assim que eu, afeiçoada a Valentim, admirando-o por sua inteligência e vivacidade, aproximei-me de sua mãe, uma mulher, corajosa, paciente diante da adversidade que a vida lhe impusera; decidida, segura de seus atos, íntegra; sem sentir-se infelicitada, aceitava bravamente o sacrifício de sua existência. Formada em artes plásticas, desenho e decoração, fizera uma sociedade com dois amigos, estabelecendo uma empresa de decoração e um antiquário na cidade interiorana onde antes morava. Decorridos dois anos o árduo trabalho conjunto mostrou seus frutos: as obrigações financeiras estavam bem providas; os primeiros lucros acenavam para um futuro promissor. Casara-se cedo; por ocasião da instalação da empresa Valentim já era nascido. Seu marido, funcionário concursado de um órgão estatal, cursava direito em faculdade particular. O nascimento de Lise acrescentou-lhes renovadas alegrias. Manifestando-se a doença na menina suas vidas sofreram uma transformação radical. A incerteza do diagnóstico, os recursos médicos ineficientes, levaram Roselys a tomar uma atitude drástica: vir com a filha para a Capital, procurar por procedimentos mais eficazes. Afastada do seu trabalho na Empresa, com reduzidos recursos, tentava sobreviver exercendo esporadicamente alguma atividade ligada à sua formação. Os antigos sócios apoiavam-na, o marido mantinha parte das despesas, entretanto as dificuldades avolumavam-se: o tratamento de Lise nem sequer tivera início; a mãe temia por Valentim vivendo afastado da convivência e do amor pai. “Minha sorte, disse-me ela, é que o menino parece compreender nossa mudança de vida, tem muito afeto pela irmã, por isso a tudo aceita, contando com seu restabelecimento. Preocupo-me por ele prestar pequenos favores na escola em troca de gorjetas. Sei que com isso pensa ajudar-me, comprando guloseimas que estão nos meus planos de despesas.”
Eu buscava maneiras de ajuda-la sem lhe ferir a dignidade. Depois de apresentar-lhe meu amigo “socorrista”, que a conduziu ao caminho certo para o tratamento de Lise, procurei como facilitar suas idas e vindas à instituição, onde deveria levar a menina para acolhimentos frequentes. Por escolha pessoal eu não possuía carro, não dirigia, preferindo sempre utilizar-me de taxis para minha locomoção. Portanto, para auxilia-la, obtinha os favores de amigas que desfrutavam de automóveis com motoristas. Nos momentos em que essa facilidade lhes era prescindível, essas amigas me ofereciam o serviço que eu transferia a Roselys, que jamais aceitaria que eu lhe pagasse corridas de taxis, o transporte do qual eu me servia pessoalmente. Assim com tato e delicadeza eu manobrava meios para tornar mais amenas suas dificuldades. Ofereci ficar com Valentim em minha casa, acompanhando-o em seus deveres escolares, colocando ao seu dispor o computador e a internet para pesquisa, ferramentas das quais ele se utilizava com mestria. Ele mostrou-se um estudante atento, curioso, dedicado, proficiente; assim, a tarefa de ensina-lo a que me propusera tornou-se um renovado prazer. Com o tempo desvendei em Valentim tendência para o desenho, gosto por artes plásticas, pintura, qualidades prematuras para sua idade. Descobria-o folheando catálogos e livros que tratavam do assunto. Ele perguntava sobre os diferentes estilos, queria entender as diversidades da arte pictórica; mostrava-se encantado com paisagens, naturezas mortas... Amava o colorido vivo, as nuances cambiantes vistas nas telas, que ele procurava imitar nos seus próprios desenhos, usando os poucos recursos oferecidos por seus lápis de cor. Ia comentar com Roselys as minhas descobertas, queria ajudar Valentim em suas criações, presenteá-lo com materiais apropriados. Roselys, sorrindo, detinha-me: “Por favor, não o mime com presentes caros. Ele nem completou nove anos, deixe-o experimentar com aquilo que tem...” Eu reconhecia sua sabedoria, seu bom senso educando o filho com simplicidade, sem arrogância ou excessivos louvores; segurava meus arroubos de mulher rica movida a caprichos.
Vinda de dois casamentos desfeitos que não me haviam deixado filhos, meus contatos com crianças eram superficiais. Relacionando-me com Valentim conheci surpresa e curiosidade por comportamentos e atitudes infantis que eu desconhecia. O garoto era afetivo, espontâneo, surpreendente. “Dona Bebel, disse-me certa vez, enquanto percorríamos meus jardins, que ele tanto admirava: minha mãe está fazendo um trabalho para a esposa daquele senhor, o paisagista, a senhora se lembra? Contei a ele que conheço uma pessoa que tem lindos jardins; pedi que ele arranjasse uns bulbos de gladíolos, para eu presentear essa amiga. Quando ele me der os bulbos, a senhora e o jardineiro escolhem um lugar para planta-los; eu quero ajudar a fazer isso, a senhora permite?”
Eu tudo permitiria àquele menininho sensível, sempre pronto a proporcionar-me alegrias: surpreendia-me deixando-me um dos seus desenhos caprichados, imitando aquarelas, acompanhados de uma frase carinhosa; certa vez chegou trazendo botões de rosas envoltos em papel de seda e enlaçados com delicada fita. Preocupei-me, desconfiando que ele prestasse favores para ganhar gorjetas com intuito de presentear-me. Embora me sentisse comovida e grata por seu gesto, não pude deixar de adverti-lo quanto a esse comportamento. Ele me tranquilizou afirmando que o pai lhe dera, em sua última visita, um dinheirinho para gastar como quisesse.
Ah! Como eu gostaria de “mima-lo”, como dizia Roselys. Desejava presentear-lhe agrados melhores do que revistinhas e livros de história! Tudo o que eu lhe oferecia passava pelo crivo severo de sua mãe, que não aprovava nada que representasse uma despesa superior a alguns poucos reais. Aproveitando a data do seu aniversário pude enfim brinda-lo com alguns jogos modernos que eram a loucura da meninada. Convenci a Roselys também permitir que eu oferecesse uma pequena recepção em meus jardins, onde Valentim recebeu seus convidados. Como ele estava feliz naquele dia usando um traje novo, cercado de coleguinhas aos quais, cheio de orgulho, apresentava os pais, alguns amigos vindos do interior: os padrinhos dele e de Lise, os sócios de Roselys, um casal de tios... Naquela tarde, hoje tão distante, meus jardins, vibraram com a genuína presença da alegria. Com o buffet contratado veio também uma banda composta por gente jovem e moderna com um repertório de variedades; uma dupla de “clowns” animava a turma com mil brincadeiras. Na pérgula uma grande mesa oferecia o que havia de mais tentador em guloseimas e gelados. A meu ver aquela foi uma tarde perfeita: tocou-me um contentamento até então desconhecido. A espontaneidade fluindo daquela reunião informal descortinou-me no íntimo um sentimento até então ignorado: o prazer de participar de uma celebração descomprometida com a opulência, livre dos olhares da crítica mundana, sem a curiosidade das câmeras, afastada da apreciação da mídia. O que podia haver de mais importante do que o contentamento daquele menino completando nove anos?! “Ah, Dona Bebel, nunca tive uma festa tão linda”, disse Valentim, agradecendo-me, quando todos se despediram.
Entretanto, era eu quem deveria manifestar gratidão. Naquela tarde, apartada da sociedade na qual me integrava, circulando entre as crianças e seus alegres folguedos, ouvindo, aprendendo e acompanhando-os em suas canções; lambuzando os dedos com os docinhos da festa, assim como eles faziam, sentia-me livre... Foi um momento em que pude ser tão somente Bebel, parceira de uma alegria espontânea, sincera da qual desfrutei sem preocupações.
(Naquela tarde Maria Izabel Soares cuja presença era comum nos espetáculos da Broadway ou nos teatros em Milão. Maria Izabel Soares sempre vista nos desfiles de modas em Paris ou veraneando nas praias de Ibiza, não existiu. Por uma tarde fui outra pessoa que não Maria Izabel Soares, fotografada, comentada pelos cronistas sociais, visada pela acrimônia de suas críticas ou bajulada por suas reverências. Naquela tarde, Maria Izabel Soares despiu-se da importância que lhe era imposta e, sem repressões de qualquer espécie, pode ser apenas Bebel.)
Para Valentim e seu pequeno núcleo familiar, sempre procurei ser simplesmente Bebel, participando das suas vidas com discrição, buscando auxilia-los sem corromper seus conceitos de dignidade e respeito. Encontrei para Roselys meios para exercer seu trabalho eventualmente, permitindo que à Lise não faltasse sua presença de mãe, tão necessária. As portas de minha casa estavam abertas a Valentim, estivesse eu presente ou não. Minha vida em sociedade não me impedia de fruir a companhia daquela família com quem eu me sentia tão inexplicavelmente isenta e feliz. Intimamente planejava: imaginava um futuro para Valentim que eu pudesse amadrinhar, oferecendo-lhe bases seguras. A compreensão ainda não estava clara em minha mente, entretanto pressentia, de forma ainda obscura, que mudanças ocorreriam em minha vida, e que tais mudanças estariam ligadas a Valentim.
Naquele ano, anunciada em Paris a temporada dos desfiles, eu e o grupo envolvido com a moda viajamos para assistir ao evento.
Com toda a movimentação do acontecimento, com os constantes programas que nos tomavam quase todo o tempo, sempre achei momentos para buscar nas pequenas lojas de variedades, lembranças para presentear aos amigos. Encontrei numa delas o presente ideal para Valentim: um grande estojo de tintas para aquarelas; pinceis e papel apropriados para a pintura; uma reprodução em tela dos Girassóis de Van Gogh, trabalho que ele havia admirado vendo-o representado no livro sobre a vida e obra do pintor. Mandei emoldura-la imaginando seu contentamento recebendo-a pronta para enfeitar a parede de seu quarto.
(Decerto eu ouviria de Roselys as admoestações habituais com referencia aos presentes que eu ofereceria ao garoto.)
Finda a temporada dos desfiles retornaríamos com o conhecimento das tendências, cores, tecidos, novas técnicas e novos conceitos e designers; a surpreendente volatilidade da moda europeia com suas edições do clássico com toques contemporâneos era um leque para criações em nosso país, todas leves, sensuais, descontraídas...
Todavia, apesar de todo o entusiasmo do grupo, eu, sentia-me incapaz, isolada; levada por aquele desânimo, resolvi antecipar meu regresso, enquanto os outros partiram para Lisboa.
XXXXX
Aeroporto Charles De Gaulle: A tarde cinzenta e nublada prometia uma noite fria. O terminal 1 abrigava no seu saguão climatizado todos aqueles que aguardavam o momento de partirem, rumo a seus destinos. Inexplicavelmente ansiosa eu aguardava o horário previsto para o meu voo. Dentro de alguns minutos seria chamada para os últimos trâmites do embarque; inquieta, nutria um sentimento de urgência que me fazia desejar já estar voando acima do pesado colchão de nuvens sombrias. Procurava distrair-me observando o movimento de pessoas em torno. Assim deparei com um grupo de brasileiros comentando as sensações experimentadas durante a sua permanência em Paris. Supus que eles seriam meus companheiros no próximo voo. Enquanto me distraia ouvindo seus gracejos, aproximou-se uma jovem que se juntaria a eles: (Uma bela morena, vestindo top escuro, saia florida, calçando sandálias de salto alto). À sua chegada adiantou-se um dos rapazes do grupo, admoestando-a: “Por Dios, Petra, donde has estado? No quiero que a todo momento te vayas lejos de nosotros. Calma-te. ahora vamos ir... “ (Agitando os longos e negros cabelos, ela respondeu com um largo sorriso: “Perdona-me mi amor, não me alejaré mas de ti.” Fazendo um trejeito, ele a envolveu pela cintura, segredando-lhe algo. Ela arrepanhou a saia, ensaiou passos de dança diante dele, e, sensualmente, se pôs a beija-lo sem reservas.
Duas outras moças do mesmo grupo, observando-os, comentaram “Rodrigo arranjou-se bem com essa espanhola, parece encantado...” “E ele que se cuide... vê-se que para ela não existem meias medidas!” Feita a chamada para o embarque, na aeronave, o alegre grupo de brasileiros, foi conduzido à classe turística. Com isso perdi de vista a bela espanhola e seu namorado. Mas a expressão: “meias medidas” que ouvira um pouco antes remeteu-me à lembranças antigas e felizes, trazendo um pequeno alívio à ansiedade que me pungia. (Minha mãe, era aficionada em fazer bolos, fazia-os de todos os sabores, recheados com frutas e cremes, recobertos de glacê e chocolate; suas incríveis fantasias na confecção da guloseima, sempre nos surpreendiam, e, de fato, os bolos servidos em nossa casa nunca foram fornecidos por bufês, confeitarias ou preparados pelas empregadas que ali em casa trabalhavam. Ao inspirar-se para fazer um bolo, minha mãe recomendava a uma das serviçais que colocasse sobre a grande mesa da cozinha: ingredientes, medidores, formas e tudo mais de que precisasse e punha-se a trabalhar. Eu ficava por perto apreciando seus movimentos, as vezes folheando o livro de receitas que ela nem sempre usava, tentando compreende-los. “Mãe, perguntei, certo dia, o que são meias medidas? “São as medidas grandes repartidas por dois, respondeu.” “Veja, Maria Izabel, disse ela apontando entre os medidores, um deles, menor: essa é a meia medida”. Eu era uma criança com menos de sete anos, curiosa, desejando aprender, fazendo perguntas, memorizando, observando... “Mãe, hoje não vai usar a meia medida?” “Não, explicou: hoje usarei as medidas cheias, fartas; saiba Maria Izabel, o que é abundante sempre me satisfaz.” Com o tempo e a experiência compreendi que a abundância foi a tônica com que minha mãe norteou sua vida; não teve meias medidas para exprimir seus sentimentos: alegrias, pesares, afetos... Tudo nela foi copioso: dedicação, generosidade, amor... Seu senso de justiça tornava-a implacável e levava-a aos paroxismos da ira. Foi essa a virtude essencial de minha mãe: ser inteira! )
Essas lembranças embalaram-me levando-me ao sono e ao fugaz distanciamento da inexplicável aflição que me acompanhava.
Antes da minha partida, como de hábito, avisara a algumas pessoas os horários de saída do voo e da provável chegada ao Brasil. Esse aviso era pura rotina, não a expectativa de ser aguardada no desembarque. Assim, estranhei que meu amigo Leon, “o socorrista”, ali se encontrasse. Ajudando-me agilmente no desembaraço da bagagem, conduziu-me ao seu automóvel, mantendo um silêncio constrangedor diante das minhas perguntas. Acomodou-me no veículo e após colocar-se ao volante, mantendo o carro ainda desligado, fitou-me com um olhar abatido, e murmurou com voz estrangulada: “Valentim.”
Um frio desespero espancou-me. Lutei contra a contração na garganta que me obstruía a fala: “O que aconteceu a Valentim, diga-me Leon?”, consegui exprimir, quase sem fôlego, agarrando meu amigo pelos braços com mãos convulsas.
“Meningite”, disse Leon, mergulhando nos meus olhos, os seus, cheios de tristeza. “Transferi-o do hospital público onde se achava para a minha clinica, assim que fui avisado de sua doença; isso um pouco tarde; apesar de todo o cuidado que lhe é dispensado, temos poucas esperanças...” “Vamos, Leon, supliquei, leve-me até ele, depressa”, desatada em pranto.
Na clinica aguardava-me um panorama de dor e desesperança: Roselys, pálida e desfeita, abraçava o marido, que, chamado às pressas acabara de chegar. Alguns amigos os acompanhavam solícitos na tentativa de prestar conforto.
(Nada sufoca nossa angústia ao reconhecermos o irremediável. Nenhuma palavra, nenhum gesto logra atingir e afastar a sombra que nos obscurece, ou calar a dor que nos oprime.)
Sem palavras abracei-me aos pais de Valentim e choramos juntos.
Levaram-me até Valentim. Consumido pela febre, estertorava. Sua pequena figura pálida, encolhida sob os lençóis, não reagia a qualquer estímulo, e dele a vida se esvaia inapelavelmente. Meu pequenino amigo estava além de qualquer socorro ou esperança.
Mais tarde, quando Leon, compadecido, comunicou-nos o desenlace, o silêncio caiu sobre nos, medonho, implacável.
Mas diante da morte a vida perdura, sugerindo os atos que devemos praticar, mesmo que tolhidos pelo atordoamento. Era mister encarar as providências para o enterro de Valentim. Vi seus pais, ainda que assoberbados pela imensa dor, tentando buscar aconselhamento por onde começar.
Pedi a Leon que os tranquilizasse, informando-os que eu mesma cuidaria do funeral. Parti para o cemitério onde se encontrava o mausoléu da família Soares com todo o seu fúnebre esplendor. Pousado sobre sua base de pedra lembrava uma capela: colunas em granito cinza sustentadas por anjos esculpidos em mármore. Via-se através da larga porta envidraçada, o oratório, o altar adornado com dourados castiçais e preciosos jarrões guarnecidos com flores frescas. Fora erigido pelos primeiros Soares chegados ao país, trazendo suas fortunas; os barões venturosos de vida nababesca, que não dispensavam mostrar sua grandeza nem mesmo após a morte. E cada um deles ali repousava; seus nomes inscritos no granito lembravam a longa ascendência da família Soares. Percorri com os olhos nomes de homens e mulheres, para mim desconhecidos, vividos antes do meu nascimento, e, que mortos, ali tinham sido sepultados. Encontrei os nomes de meu bisavô, de suas duas esposas, de seu único filho, meu avô, de minha avó e toda a sua linhagem até meus pais e meus irmãos. A estirpe dos Soares em mim terminaria. Mas antes que meu nome ali figurasse, Valentim Soares, eleito por mim como um parente muito especial, seria naquela pedra eternizado.
Na administração do cemitério atendeu-me o responsável pelo preparo dos funerais. Era meu conhecido desde o funeral minha mãe, e por ele também fora atendida quando ao enterro de meus irmãos gêmeos mortos na queda de seu avião sobre o mar do Caribe; após o resgate os corpos foram trazidos para o velório em caixões fechados. O velho administrador reconhecendo-me, deferentemente, anotou minha solicitação para o cerimonial do velório e sepultamento de Valentim, assim como a inscrição a ser feita na pedra do túmulo. Tomada essa atitude retornei ao hospital, onde já se formalizara a remoção do corpo. Acompanhando seus pais nesse trâmite, observei o desnovelar de sua dor silenciosa, profunda, inconsolável. Vi-os apegarem-se desesperadamente a Lize, a quem não sabiam explicar a ausência do irmão.
Assisti ao lento e doloroso transcorrer de seu luto, á sua busca de explicação para aquele infortúnio inaceitável, esmagador, inexaurível. Não havia respostas para sua indagação nem consolo para seu pranto.
Eu mesma, no breve período de convivência por pouco mais de um ano, havia-me acostumado à presença do pequeno Valentim, inteligente, meigo, alegre, curioso, estimável. E tristemente sofri a ausência de sua alacridade ao meu redor, indagando-me sobre tudo o que lhe atraia a atenção, percorrendo comigo os jardins, comentando sobre suas flores favoritas; lembrava-me dele apresentando-me suas pequenas criações artísticas, buscando incentivos, sempre pronto a aprender, tão grato, tão ardoroso, tão extremamente encantado com a vida.
Como prometera, ele levara à minha casa os bulbos de gladíolo, durante minha ausência, dias antes que o acometesse a doença que o vitimou.
Com profunda lástima, recordando sua promessa de estar presente naquele momento, acompanhei meu jardineiro, fiz a escolha do local onde seriam plantados os bulbos, que hoje florescem e se multiplicam; imagino Valentim podendo vê-los agora e aprecia-los. Ele os apontaria nomeando-os: White Godess... Lavender... Priscila... e tantos outros, tocando-os delicadamente com a ponta dos dedos...
Sobre minha mesa no estúdio permaneciam a caixa de tintas para aquarelas e a reprodução dos Girassois de VanGogh, presentes que eu esperara oferecer a Valentim, despertando-lhe o contentamento. Passei a vê-los como coisas deslocadas, cujo sentido de ali estarem estava perdido. Entretanto de alguma maneira aqueles objetos, embora obscuramente, inflavam-me um propósito de missão. “Porque não os oferece a outra criança?” interpelou-me uma amiga. “Já pensei nisso, respondi, mas eu gostaria de presentear a alguém que tivesse os talentos de Valentim.” Desse diálogo simples, procurando informações, descobrimos: havia crianças que além de talentosas careciam de auxílio; assim nasceu a ideia de criar A Casa de Valentim, que se tornou o empreendimento primordial da minha vida. Eu possuía os meios pecuniários para realiza-lo, conhecia pessoas aptas para o trabalho; tomada dessa inspiração empenhei-me em efetiva-la. A antiga mansão de meus pais com reformas e adaptações preencheria os primeiros requisitos. Meus advogados incumbiram-se das providências legais. No transcorrer da execução das obras e a aprovação da papelada, surgiram crianças candidatas a frequentar gratuitamente A Casa de Valentim.
Atualmente são muitos os que se beneficiam com aulas de desenho, pintura, modelagem... São discípulos dando os primeiros passos, conduzidos pela equipe de professores, alguns voluntários, outros contratados, todos tomados pelo entusiasmo de servir, ensinar, amparar, levando à frente nossa Casa de Apoio ao Pequeno Aprendiz. Entre nossos colaboradores, Roselys se destaca pela alegria de ensinar. Lize com sete anos após o tratamento intensivo, já se recuperou quase inteiramente. Diferente de Valentim nem pensa em qualquer arte; apenas se diverte com jogos e folguedos; faz suas lições com capricho; é muito apegada ao pai que exerce com sucesso, sua profissão de advogado.
A Casa de Valentim é hoje meu estímulo, minha alegria, minha homenagem viva ao doce garotinho ruivo que conheci no passado, numa tarde ventosa.
Muitas vezes convido uma das nossas crianças para conversar. Gosto de avaliar pessoalmente seu aprendizado, atenção às tarefas, empenho, curiosidade em experimentar, criar...
Não é raro nessas prosas informais um deles perguntar quem foi Valentim Soares, cujo nome foi dado à escola. Então eu conto a história do garoto que tinha o olhar voltado para a beleza e a esperança de vir a expressar-se artisticamente através desse olhar. E lhes respondo, ao perguntarem se Valentim Soares foi meu filho ou sobrinho: “Valentim Soares não foi um parente, mas para mim, era tão próximo e querido como se o fosse.”
E, nesses momentos, quando a emoção transporta-me ao passado, revejo com saudade, o menino franzino, de ruivos cabelos encaracolados e rosto sarapintado de sardas, que na tarde do nosso primeiro encontro, ouvindo meu gracejo de que talvez fossemos parentes, erguendo para mim seus verdes olhos iluminados, sorrindo interrogou: “Verdade?...”