CHE DAR PIÙ VI POSS’IO? Monteverdi Livro V
O verde multifacetado, já esmaecendo, domina a extensão que os olhos alcançam, num cenário que empurra o outono para longe e anuncia a rigidez do inverno. Já é possível ver a neve começando tingir o cume das montanhas. Apenas as retinas, o coração e alma piena podem guardar a visão através da janela do trem. A vontade é descer e dançar ao redor das oliveiras selvagens... mas seria uma dança curta porque as árvores logo estarão desnudas. A vida começará a hibernar para elas.
O trem está chegando ao seu destino. Só se conhece Roma se se deixar levar pelos ventos – frenéticos, voluntariosos, sem qualquer direção prévia! Quantas e tantas vezes se estiver aqui, tantas e quantas serão necessárias para desvendá-la, porque a cidade é definitiva! Imperativa! Incredibile! O presente refaz o passado a todo o momento. Tempos recorrentes. A existência fica sempre mais grávida de paixão
Desta vez estou determinado ao Aventino, tentado a buscar algum vestígio da passagem de Flória Emília e Aurélio Agostinho por lá. Tenho minhas suspeitas acerca de Vita Brevis, a suposta carta dela para ele. Mas sobre a paixão deles não tenho dúvidas. E isso me inspira a investigar, parar em cada canto da colina. Espiar por entre cada porta.
Fiz isso todo o tempo... e nenhum fio de cabelo sequer nem de um nem de outro; nenhum indício de Aurel e Flória. Nenhuma pegada dos amantes.
Mas a jornada pelo Aventino não ficaria impune. Fui para a Piazza dei Cavalieri di Malta, direto para a casa 3. Na porta da casa, acima da fechadura há um furo arquitetonicamente construído. Gosto de olhar através dele, a visão que se tem é alguma coisa elevada. Dizem que aquela construção é projeto de Da Vinci... é possível. Através daquele buraco vê-se uma alameda arborizada e... bem, é melhor não estragar a surpresa.
Deixo o Aventino porque tenho pouco tempo até o Termini. No caminho a Basílica de Santa Prassede. Quero passar depressa, mas não consigo. Através da porta entreaberta ouço sí, ch`io vorrei morire... ch`io vorrei morire. Arrisco entrar com cuidado e reconheço um coro madrigalista entoando Monteverdi. Alguma coisa curiosa nisso tudo: os versos de Maurizio Moro la bella bocca del mio amato core são lascivos, licenciosos ahi, car'e dolce língua datemi tant'humore... o profano de Monteverdi também conquistou a igreja? Mas isso é o que menos importa naquele momento só quero ouvir ahi, bocca ahi! baci ahi! lingua! Ando, quase sem ser percebido, para traz de uma majestosa coluna e fico imóvel porque é impossível deixar de viver isso ahi, lingua torn'a dire si, ch'io vorrei morire.
Aquele som provoca uma espécie de ressonância afetiva. O coro agora ensaia sfogava con le stelle un infermo d'amore. Apenas o corpo permanece parado, os sentidos, mais aguçados, movem-se em todas as direções. Fico intrigado porque a coluna a minha frente não acompanha a riqueza de detalhes e significados de toda a igreja. Há a pintura de um busto, sem nenhum acento cristão, que destoa de tudo: do arco do período carolíngeo, dos mosaicos coloridos, dos dourados e cores vivas de todas as outras representações.
Com che dar più vi poss’io? os madrigalistas terminam o ensaio e não há mais trem para eu voltar para casa. Mas isso não é importante, tenho cerca de quatro horas até o primeiro da madrugada, para gravar definitivamente dentro de mim, toda ventura do dia.
Em tempo: a pintura na coluna, o busto que me deixou intrigado, era uma espécie de assinatura, simplesmente o auto-retrato de Caravaggio.