“O AMOR É QUANDO A GENTE MORA UM NO OUTRO” título emprestado de Mário Quintana
Da rua vinha uma claridade que reforçava a luz indireta, estrategicamente colocada em cima de um móvel ao lado de pequenas lembranças. O prosecco mantinha-se dentro de um balde com gelo. O perfume que inundava a sala era de um jasmineiro plantado perto da janela. Um vaso de antúrio em um canto e uma orquídea, entregue pela manhã. Na mesinha, taças, cinzeiro, bolachinhas artesanais, papel de presente e livros em cuidadoso desalinho. O sofá aconchegante e os quadros nas paredes confirmavam o bom gosto. Dois pares de sapato deixados displicentemente na entrada do lavabo. O vento que atravessava a janela produzia uma discreta coreografia com as cortinas. Milles Davis tocava no cd “the man i love”. Ele e Ela, um em frente ao outro, confortavelmente acomodados sobre um gostoso tapete. As mãos dele nas dela em aperto forte. Os olhares, com brilho intenso, não se desviavam. Com voz segura e serena Ele dizia: – "A mulher que eu quero tem de ser bela por dentro. Com mãos que saibam desenhar no meu corpo todo o mapa do prazer. Ela deve andar ao meu lado; nem antes nem depois. Ler nos meus olhos as palavras que não consigo pronunciar. E tem de saber dividir o pão e beber do meu copo”.
Ela escutava sem necessidade nenhuma de falar – não precisava! Lia-se nas suas expressões delicadas e suaves o “sim” a tudo que Ele dizia: – "A mulher que eu quero deve sempre estar com braços abertos... acariciar-me, fazer- me sonhar e compor versos comigo. Quero amá-la por inteiro, carregá-la no colo, falar bobagens, brincar. Eu quero brincar com a mulher que eu quero!"
Quem via a cena se enternecia. Rendia-se a sedução. Ambos enlevados, comovente de se ver. Grau elevado de paixão. Era nítida a aura de um e de outro naquele maravilhamento mútuo. Ele e Ela pareciam ter dois corações cada, tanto que se enamoravam!
A última coisa que se ouviu, foi Ele falando para Ela: – "A mulher que eu escolhi é você!" Depois um lapso de segundo do mais absoluto silêncio. E enquanto as cortinas começavam a se fechar os aplausos explodiam ensurdecedores. Foi delirante. Todos inebriados com a cena.
E então as pessoas foram deixando o teatro. Sobressaltadas. Algumas em suspiros. Rostos felizes, mas contraídos, denunciavam: enfrentavam dúvidas e incertezas. Poderiam estar identificando a própria incapacidade de transpor para si, a extensão de afeto vista no palco. Lamentando sobre – quem sabe! – a mediocridade da própria existência. Logo acionaram o mecanismo de defesa: – "Aquelas emoções? Imagina! Só estão destinadas à imaginação. Quando que, no dia-a-dia da vida, na dureza dos problemas, eu posso reconhecer dentro de mim tanta paixão? Só mesmo na ficção..." E voltaram para o refúgio de suas casas, carregando a sensação de impotência para viverem um sonho daqueles.
É, a vida não facilita. Embrutece. Estratifica tanta coisa. Mas por outro lado, parece que nossa propensão é só acusar o desgaste da lida diária, emagrecer os sentimentos, embaralhar os sentidos: não ver com os olhos, não sentir com o coração, não pensar com a cabeça. Empalidecer a fantasia – no mínimo obrigatória – para se criar contra pesagem com o real.
Exorcizemos! Se temos “de médico e de louco”, temos também, de bruxas e magos, com força de transformação; que seja uma única vez, não importa! Mas temos! Então, qual impedimento de vivermos, um dia, um sonho de “branca de neve”? Não posso eu armar um cenário? Vestir uma roupa especial? Usar um perfume caro? Ouvir Miles Davis tocando “someday my prince will come”?
Eu quero me arrepiar com a cena. Sempre! Mas também quero ser protagonista, pelo menos uma vez. Estar em primeiro plano para alguém. Pois é! Não sou Camile Claudel, mas quero enlouquecer de amor.