642-COM O SUOR DO TEU ROSTO -Drama Urbano
Ônibus cheio, passageiros espremendo-se em pé, debruçando-se sobre os sentados, Terezinha sente, sem se incomodar e até com certa volúpia, os amassos e as apalpadelas pelo corpo. Apesar de seus trinta e pouco anos, não é de se desprezar, tem lá seus atrativos e ela sabe disso. Se estava solteira, não era por falta de homem interessado. Ela é que não queria nada com eles, pois tinha de cuidar de seus pais. Não tinha como escapar do destino de filha única, arrimo da família.
A mistura de odores corporais pairava no ar e ela sentiu penetrando em seu próprio corpo o suor daqueles corpos juntos ao seu.
Suor. Lembrou-se da pregação do pastor, no domingo passado. A bem da verdade, lembrava-se de pouca coisa, quase que só uma frase: ...”obterás o teu pão com o suor do teu trabalho...”
Bem, estou cumprindo meu destino, pensou. Trabalhei como uma danada neste fim de ano, aproveitei todas as noites fazendo hora extra. A única coisa que aproveito do Natal é esta chance de ganhar um dinheirinho a mais. Dinheiro ganho com suor, sim. Mais do que merecido.
Nova chacoalhada cortou o devaneio da moça, que apertou a bolsa dentro da qual estava o envelope com os quinhentos reais, recebidos ao sair do trabalho. Exausta, descansou o corpo na perna esquerda. As pernas doíam, após quase quinze horas de permanecer de pé, atendendo os fregueses da loja.
Chegou na parada. Desceu. Já era quase meia noite e a rua estava deserta. Na calçada, apertou ainda mais a bolsa e começou a caminhar com passo apressado. Sua casa ficava a uns dez minutos de caminhada.
Mamãe e papai já estão dormindo. Melhor assim. Vou direto prá cama. Amanhã posso levantar tarde. Nem me importo se é dia de Natal.
Ia apressada mas sem se preocupar. Havia caminhado naquele trecho já não sabia quantas vezes. Talvez por isso não notou que estava sendo seguida por um homem alto e troncudo, caminhando com largas e silenciosas passadas, aproximando-se dela rapidamente.
De repente, num trecho mal iluminado, o homem a alcança e a agarrou por trás, segurando seus braços e tampando-lhe a boca. Ela conseguiu se virar e recebeu violenta bofetada, que a deixou zonza. Ele falou grosso em seu ouvido:
— Fica calada. Se gritar, te mato.
Terezinha não reagiu. Arrastada até um terreno vago, onde, atrás de umas touceiras, foi derrubada ao chão. O grandalhão assomou-se sobre ela, arrancou a blusa, rasgou a calça e a calcinha e a estuprou.
Ela não teve como reagir. Estava tão cansada, que mal sentiu quando a violência máxima contra seu corpo foi consumada. Apenas sentiu um cheiro azedo de suor exalando do corpo do cara. Caiu num torpor.
Fato consumado, o cara levantou-se, agarrou a bolsa de Terezinha e sumiu na escuridão.
A moça foi voltando a si, lentamente, se dando conta do acontecido. O silêncio da noite envolvia tudo e no céu limpo piscavam estrelas.
Qual delas será a estrelinha de Belém, que avisou o nascimento de Cristo? — O pensamento fugaz atravessou-lhe a mente, talvez tentando fugir à realidade do momento.
As costas, esfregadas contra as pedrinhas do chão, doíam-lhe. Sentou-se e tentou se arrumar com as roupas rasgadas. Não sentia dor nem vergonha, nada. Apenas uma apatia. E um nojo pelo cheiro de suor do homem.
Procurou a bolsa pelo chão escuro. Não encontrou.
Lá se foi o suor de duas semanas de horas extras.Que merda de vida.
Ao chegar em casa, mais de meia noite, os pais dormiam. Jogou-se na cama e dormiu como nunca dormira antes.
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Suor... Suor... Suor... No sonho, via-se asfixiada por ondas de suor. Suor que lhe corria pela face, sob os braços, pelo corpo, entre as pernas. No meio da multidão, todo mundo estava suando, e os suores de misturavam, produzindo um mau cheiro insuportável. O homem que a bolinava tinha as mãos molhadas de suor. Uma voz soava por sobre todos, chegando a todos os lugares, com vinda do céu: “Obterás o pão com o suor de teu rosto.”
Acordou antes de ser possuída pelo passageiro que a bolinava dentro do ônibus. Seu rosto estava inundado de suor.
Era de manhã. A claridade do dia se introduzia por entre as cortinas e as frestas das venezianas. Não se levantou. Permaneceu longo tempo pensando... pensando.
— Trabalhei como uma condenada para ganhar aquele dinheiro e de nada adiantou. Sem esforço e com prazer, o bandido me levou tudo. De nada valeu o suor de meu esforço.
As palavras do pastor, repetidas no sonho, martelavam a cabeça:
“... com o suor de teu rosto... com o suor... suor... suor...
Naquele momento percebeu a falsidade de toda aquela afirmação.
Mentira, é tudo mentira. De nada vale trabalhar honestamente. O pastor mente, a Bíblia mente. Não existe isto de ser honesto, se boazinha. Que adianta? Vem logo um bandido e toma tudo. Tudo. Suor. Honestidade. Mentira. Tudo mentira.
Uma onda de revolta e de amargura tomou conta de sua alma. Sua crença acabou, seus valores desabaram, seus sentimentos de fé e esperança desapareceram.
— Nunca mais vou suar para ganhar dinheiro.
Levantou-se e ao se levantar era outra mulher.
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Terezinha não voltou ao trabalho.
Hoje, Tetê pode ser encontrada todas as noites nas esquinas da cidade, ganhando a vida sem suar.
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 1º. De dezembro de 2010
Conto # 642 da SÉRIE MILISTORIAS