A MENINA QUE COPIAVA III

A T R O C A

Os criados ainda retiravam do salão o que restara da festa, apressados pelos comandos do Conde que hora andava em marcha de um lado para outro, hora enrijecia como se estivesse criado raiz ao chão. A presença de Federico Coeur despertava inúmeras sensações, mas, ao final de cada uma delas, a raiva irrompia e tomava conta de seus pensamentos. Aquela espera o estava matando e a respiração ficava cada vez mais pesada, um risco que não podia se dar ao luxo de correr, claro que o “ilustre” Federico Coeur estaria ali, mas, ele era um Conde e deveria honrar o título de nobre, além do mais, precisava manter-se equilibrado para dar o passo seguinte. Whisky! Uma boa dose de Whisky seria suficiente para deixa-lo relaxado. Acenou para um dos criados e pediu que este lhe servisse um Ballantines 30 Anos Old, puro, sem gelo. Virou todo o líquido num gole só, depois, ergueu o copo sugerindo que outra dose lhe fosse servida, dessa vez, sorveu apenas uma pequena quantidade mantendo o ritmo lento até o último gole. “Feito!” Estava mais leve agora, embora, o pensamento de que talvez uma única dose tivesse sido o suficiente para deixa-lo confortável o incomodara. Sentiu uma leve vertigem, mas afastou-a rapidamente antes que esta o tomasse por completo. Um criado avisou-o da chegada de seu visitante, agora não restava mais tempo para distrações. Inspirou profundamente e assim que soltou o ar, pôs-se a andar rumo ao salão de visitas.

_ Hora-hora, se não é o Conde Bowels, de Glamis! _ Disse Federico Coeur assim que o conde apareceu em seu campo de visão.

_É uma honra ter a ilustre presença de Federico Coeur em meu castelo. ─ Respondeu rapidamente o Conde, forçando-se a parecer natural.

Os boatos eram de que Federico Coeur tinha uma presença forte e intimidava a qualquer um que se pusesse de frente a ele, no entanto, o Conde não identificou nada do tipo que o fizesse sentir-se intimidado, o feedback tornou-se incompleto e incoerente e ele deixou transparecer sua indignação. O homem que estava diante de si era um tanto debilitado, usava como apoio uma bengala com acabamento extravagante, mantinha a postura levemente curvada para frente como se sofresse de problemas de coluna, a pele era áspera tal qual ao timbre e os trajes finos serviam como distração para que ninguém reparasse em seus problemas dermatológicos. Continuou inspecionando até seu olhar cair sobre algo que realmente o intimidara, dois homens prostrados ao lado de Federico Coeur, cada qual com pouco mais de dois metros de altura, fortes, músculos quase rasgando o tecido dos ternos, perfeitas estátuas, ou robôs programados, apenas esperando o comando do mestre. O poderoso Federico Coeur reduzido à imagem de um homem franzino, sem nenhum artifício ou charme pessoal, guardado por capachos em função de sua riqueza. Um riso debochado cresceu dentro de sua mente e ele precisou se conter antes que este viesse à tona.

_Está um tanto quanto absorto. ─ Falou Federico Coeur. ─ Algum problema? ─ Completou.

Só agora o Conde se deu conta do quão esteve ausente, e preocupou-se que seus pensamentos talvez pudessem ter transparecido, sem mais pensar, atirou as palavras: _ Como disse... Estou honrado em recebê-lo!

_ Percebo que ainda não teve tempo de decorá-lo a seu gosto, estou certo?! ─ Disse Federico referindo-se ao castelo enquanto observava o espaço ao redor.

_ Bem, acabei de arrematar essa raridade, prefiro contemplar sua arquitetura, puramente, ao menos por alguns dias. ─ Revidou o conde. ¬─ Além do mais, não disponho mais da minha coleção de quadros.

_ Estou a par desse infortúnio. Aliás, eu mesmo arrematei alguns! ─ Provocou.

_Infortúnio nem tanto. Fico honrado em saber que estão em boas mãos. Mas, muito me instiga também...

_Não entendo! ─ Interrompeu Federico.

_ Não seja modesto. ¬ ─ Disse o conde num tom quase atrevido. ─ Sabemos que é dono de uma coleção impecável, nunca pensei que tivesse interesse em alguns dos meus quadros.

_ Naturalmente! ─ Apoiando-se em sua bengala Federico se deslocou meio passo à frente, depois, fitou-o bem dentro dos olhos. ─ Sou um bom apreciador da arte. ─ Completou.

_ Naturalmente! ─ Provocou-o, o conde, mas, arrependeu-se no instante em que viu os guardas também se adiantarem em meio passo. ─ Percebo que está muito bem acompanhado! ─ Apressou-se para contê-los.

_ Não se incomode. ─ Respondeu Federico, fez um leve movimento com as mãos contendo seus guardas. ─ Há de convir que um homem como eu não pode se dar ao capricho de andar desacompanhando. ─Completou.

_ Perfeitamente!

_Já que mencionou, também percebo que ainda não montou sua elite!

O conde engoliu a seco.

_Estou confortável assim. Não consigo respirar com gente me cercando a todo instante. ─ Sentiu a espinha tremer assim que atirou as palavras, mas, já era tarde. Recompôs-se rapidamente. ─ Além do mais, como já lhe disse, não há com o que me preocupar no momento, acabei de arrematar o castelo, tirando a arquitetura refinada e alguns móveis antigos, é tudo bem comum. Não acredito que alguém poça querer levar um bloco de mármore e duvido que consigam carregar qualquer artefato.

_ Me refiro a sua segurança! ─ Disse Federico Coeur.

Os dois se entreolharam profundamente, o conde sabia que aquelas palavras soavam em tom de ameaça.

_ Sou um conde. ─ Respondeu ainda mantendo seu olhar fixo no homem de aparência quase decadente, se comparando ao peso do nome. ─ Não se preocupe. Atacar um nobre é um atentando à própria vida. ─ Ele ensaiou um sorriso irônico, mas, desistiu quando observou os guardas. ─ Aceita uma dose de Whisky? ─ Tentou quebrar a tensão. ─ Acredito que saberás apreciar um Ballantines 30 anos, ou...

_Quem sabe um Royal Salute?! ─ Sugeriu Federico.

_Excelente escolha, porém, temo não dispor deste no momento!

_ Duvido que disponha. ─ A sugestão provocou ainda mais tensão e começara a pesar mais que o necessário.

_O antigo dono não se preocupou em deixar uma adega respeitável, digamos assim.

_Eu não me preocupei mesmo. ─ Retrucou rasgando a voz. ─ Agradeça pelo simples fato de ter-lhe feito essa caridade.

_Digamos que fizemos uma troca, um tanto quanto “injusta”. ─ O conde continuou o provocando e desta vez não se conteve quando os guarda-costas avançaram.

_ Não seja um idiota. ─ Apelou Federico. ─ A garota já é minha, apenas lhe dei a chance de não se opor a mim. ─ Concluiu.

_ Inimigo! ─ Repetiu o Conde. ─ Esta é mesmo uma palavra muito forte não estou certo? Melhor evita-la. ─ Ele recuou um passo e disse em seguida: _A garota está lá em cima, acompanhe-me...

_Sensato você! ─ Federico Coeur assumira um timbre ainda mais sombrio agora. ─ Contudo, sei perfeitamente que você compreende a importância da menina para mim, e que ela é capaz de realizar façanhas... ─ Ele fez uma pausa enquanto seus homens adiantaram-se novamente, dessa vez, em dois passos completos, até se posicionarem ao lado do Conde, depois, retomou. ─ Façanhas que outros não seriam capazes de entender...

_ Não se preocupe. ─ Disse o Conde, interrompendo-o. ─ Entendo perfeitamente o que quer dizer.

_Como disse, és realmente de boa sensatez, mas, nunca é de mais reforçar. Fique calado e assim não serei forçado a praticar um atentado à minha própria vida. ─ Ele se aproximou do conde que já estava a postos para subir as escadas, depois, continuou sutilmente com sua ameaça. ─ Correr riscos também é uma arte, e me fascina tanto quanto! ─ A última frase viera com um sussurro. ─ Admiro as mãos que pintam e venero as mãos que matam.

Houve um completo silêncio.

_ Acredito que já tenha ouvido estes versos?! ─ Indagou Federico.

_ Não, não me recordo. Acho que nunca ouvi algo parecido. ─ Respondeu o Conde, vacilando.

_Bem, acabou de ser agraciado com tais. Sugiro que pesquise quando tiver tempo. Agora, vamos!

Os homens de elite de Federico Coeur ficaram aguardando na escada, observando atentamente feito cães treinados para atacar ao menor sinal de ameaça. O conde seguia um degrau à frente, robótico, controlando a respiração ansiosa e se esforçando para manter o ritmo até chegar à sala onde Bianca estava. Os sapatos agora pesavam mais que o normal e a vertigem voltara repentinamente, embora mais lenta. Afastou-a mais uma vez e continuou a subir. As últimas palavras de Federico o provocaram, teve o pensamento de fazê-lo rolar escada abaixo, mas, precisava manter o foco, fez o contrário esperou-o para oferecer ajuda, mas foi dispensado.

_Não fique pensando que sou um energúmeno. ─ Disse Federico. ─ Às vezes, lobos se comportam como cordeiros para abater suas presas.

Acabaram os degraus e eles seguiram pelos corredores do castelo, Federico continuava seu monólogo amargo, mas o conde se afastava cada vez mais daquelas palavras travando a mandíbula e enviando pressão ao tímpanos. Aquele homem destilava veneno, no entanto, seria abatido por uma serpente mais perspicaz, manteve o pensamento longe até bloquear completamente a aspereza daquele timbre e assim seguiu até a última porta do corredor.

_Ela está aqui! ─ Disse o Conde destravando a mandíbula.

_Finalmente! ─ Exclamou Federico após puxar sua bengala para junto do seu último passo.

O conde abriu a porta. A sala era pouco iluminada, mas, logo Federico pôde ver Bianca inconsciente no chão, as mãos amarradas às costas. Ele se aproximou dela, a luz do corredor irradiava fraca, mas alcançava a garota. Mas, havia mais...

_ O “Starry Night” de Van Gogh! ─ Deixou escapar as palavras, admirado. ─ Ela o copiou!

_ Como pediu o mestre!

Federico Coeur se virou rapidamente quando obtivera a resposta inesperada. Bianca estava em pé atrás dele, pronta para golpeá-lo na fronte, mas ele foi rápido e esquivou-se no último segundo. Sua bengala tomou outra função e assim ele a golpeou fazendo-a dobrar os joelhos, depois, começou a enforca-la. Estava para chamar seus guardas e quando puxou o ar, tudo o que sentiu fora o cheiro de clorofórmio tomando conta de suas narinas e se espalhando como anestésico pelo seu corpo.

_Ele bem que disse que lobos costumam se comportar como cordeiros. ─ O conde deixou o corpo tombar para o chão. ─ E agora, o que faremos? ─ Quis saber.

_Agora eu vou pegar o meu irmão. ─ Respondeu Bianca.

_E como vai entrar na fortaleza dele?

_Me tornando o próprio. ─ Disse ela puxando o homem para si. ─ Espere! ─ hesitou.

_Algum problema? ─ Inquiriu o Conde.

_Este homem não é Federico Coeur. ─ Respondeu.

_Como assim não é o Coeur? Está certa disso!

_Obviamente!

_Mas que grande merda. ─ Começou o Conde. ─ Os guardas dele, quero dizer... Há guardas lá em baixo agora, estamos perdidos. ─ Completou.

_Ainda não. ─ Disse Bianca, confiante! ─ Lembra-se dos bilhetes de festas?

_Sim, mas... O que isso importa agora?

_Este homem será nosso bilhete de festa.

Em poucos segundos o Conde viu a imagem da garota se desfazer e tomar a forma do homem ao chão.

_Vamos?! ─ Sugeriu.

_A sua voz ainda... ─ Observou o conde ao perceber que o registro vocal não havia mudado.

_É apenas um detalhe. Estou trabalhando nisso. ─ Ela sorriu. Depois se pôs a andar rumo à porta.

_Espere! ─ Falou o conde ainda abalado.

_O que? ─ Parou em frente à porta e bloqueou a luz que entrava.

_A bengala. ─ Disse o Conde.

_Detalhes! ─ Sussurrou a garota no corpo do homem.

_Detalhes! Respondeu o Conde.

Ambos sorriram, depois, puseram-se a andar rumo às escadas, ao final delas, estavam os cães de guarda, famintos, esperando ansiosos qualquer deslize.

Héryton Machado Barbosa
Enviado por Héryton Machado Barbosa em 28/01/2015
Reeditado em 28/01/2015
Código do texto: T5117382
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