O ÚLTIMO MONGOL - conto de 28/01/2015, reescrita de 2003 ?

PSEUDÔNIMO DE J B Pereira: Agostinus Boscovita

A chuva caia lá fora e eu aqui pensava a trajetória de um desconhecido que fluía em mim.

Certa vez, não sei s foi maio ou dez de Nissan, encontrei Bem-Salon, um dos últimos mongóis que veio a mim impressionar sobremaneira, porque ele procurava como eu algo mais que desse sentido a opacidade existencialide um errante nômade.

Fugira, sim, porque, certa noite, vira coisas demais, por isso fora perseguido deveras.

A tristeza caíra-lhe sobre a alma. Nada o acalmara nesses anos a fio. Tivera uma visão de cavaleiros exterminadores, uma visão apocalíptica: seres alados invadiram a terra. Ou, talvez, isso seria uma fobia herdada desde a meninice quando da fuga de sua família de uma casa em chamas.

Um crime leva outro rumo para um homem cuja velhice se tornara inevitável e enfadonha. Não conseguira decifrar o enigma de seu sonho, mas sua revolta o conduzira à violência a muitos inocentes.

Ele passou então o deserto da Arábia ao encontro de uma tal Canaã. Não era judeu, nem simpático a esses semitas; se para estes os do extremo oriente não passam de não crentes, para a Mongólia, os judeus não parecem tão interessantes, nem sequer um povo promissor.

A chuva continuava a cair – não mais sobre o corpo desse homem. Imagine a cores de um filme, caro e curioso leitor, se falassem as montanhas da Mongólia e de Cingapura, ou talvez as de Qumran, todas silenciosas e talvez com surpreendentes papiros antigos, prontos a desvelar momentos de uma passado distante. As cavernas poderiam deixar vir à tona a existência de moradores do deserto gelado ou quente cujos ecos atucanam hoje os novos habirantes desses desertos?

Bem-salon tinha uma estranha admiração por tais paragens, sentir-se-ia renovado com o vale dos planaltos e oásis. Nelas, sua voz ecoaria até nós. O que nos diria? Por quê estaria a nos dizer o que desejaria.

Tente você descobrir se puder, caro leitor, se for capaz!

Quando a infância era-lhe sobeja, a mãe contava-lhe, a seu modo, a fé e as aventuras de um povo do qual ela desconhecia. Caso raro, custou-lhe o preconceito e uma vida inquieta por tantos reveses, como se fora reduzida à forasteira em um pais hostil. Dizem que não era tão bela para seus coetâneos, porém sábia. Morrera jovem e sue pai só ficara com Bem-Salon pequeno. Este recordava-se de seus doze anos, pois vagava com seu pai pela região e vilas para trabalhar e tinha o retrato da esposa.

Este senhor cujas cãs se altaneiam qual o atalia em neve e os guardas a vigiar a propiedade nas noites do gelado inverno agora estava idoso. Como de outros de sua idade, o pai de Bem-Salon era amante de sua cultura, música, cantos, histórias e as corridas de cavalos.

Vários cultos dos antepassados tinham consigo, havia legado certa influência religiosa ao filho.

Mas, com o tempo, longe de suas terras, Bem-Salon conheceu sinagogas, mesquitas e igrejas cristãs.

Entre as lembranças do pai que morrera, a imagem distante da mãe na foto, o forasteiro chegara a Israel para trabalhar. A curiosidade e o fagulhamento de incertezas religiosas de todo tipo, próprias de um estrangeiro, Bem-Salon quis estar no país hebreu algum tempo. Aprendera parte da língua para fins comerciais e as necessidades de sobreviver em terras estranhas à sua vontade.

Os amigos o haviam instruído na conduta em Jerusalém. Seus olhos castanhos acompanhavam a todos como um mongol silencioso e prudente. As primeiras noites causaram-lhe saudades e até chorava, às escondidas, de noite.

Distante de Jerusalém, trabalhava na construção de estradas. Via a noite com as estrelas brilhando. Conhecera Safira, uma jovem contadora da empresa. E saia com ela aos fins de semana. Ela era uma neófita; deixara o judaísmo para ser cristã. Nascera entre eles uma doce e oportuna amizade. Deixara a solidão de sua tenda e já se sentia mais confiante na vida urbana.

Bem-Salon estava com a cabeça cheia de histórias e mitologias antigas. Os mitos de Prometeu, Ícaro, Hades, Zeus e a fúria dos Titãs faziam parte de suas leituras. Com o conhecimento e a amizade com Safira, agora lia a Bíblia e os Evangelhos. Ficara impressionado com as histórias épicas de Israel: os Juízes, Sansão e Dalila, Davi e o Gigante Golias, Daniel na cova dos leões, Os profetas e os salmos. E não deixou de ler vorazmente os Evangelhos. Entristecera com a morte de Jesus no Patíbulo, por cumplicidade dos romanos e judeus. Não entendera por que o Cristo não se defendia dos insultos, sendo o homem forte e prometido por Deus.

Para os gregos, Zeus era vaidoso e distante da vida do povo. Para os hebreus, seu Deus era um Deus das Estrelas e libertador. Prometeu sofria a harmatia ou o castigo pela desobediência a Zeus. A águia vinha todo dia arrancar-lhe as víceras.

Como é dura a vida sem o amor? E o perdão não é uma forma de covardia? Só bem mais tarde entenderia os valores cristãos.

O Deus de Jó era estranho e diferente das outras divindades. Nos textos, havia respostas opostas em cada cultura. Solidão, destino e morte faziam parte da vida. Mas, a dura luta pela vida o obrigara a dormir logo. E depois do banho noturno, foi-se dormir.

Lembrou-se dias depois de sua vida militar. A farda e a violência sacrificavam a vida do povo simples e gerava morte entre todos. Perdera irmãos e irmãs. Após o cessar fogo, resolver ir mundo afora e conhecer mais outras culturas.

Um dia no mercado a procura de um turbante e uma sandália, esbarrou-se nas caixas de Safira, que ainda não conhecia. Era ela muito linda e vaidosa. Mas, a morte do pai, herdara uma chácara. Os anos a conservaram solteira e rica. E agora contratava Ben-Salon para ser o porteiro da propriedade. E aos poucos, com o domínio da nova língua, Ben-Salon vai tendo maior amizade com os outros funcionários da chácara, até conquistar o coração de Safira.

As noites, ela passou a orar a Javé, depois a Jesus... E sua vida foi se iluminando de esperança e alegria. Todo sofrimento e perdas a amadureceram e a fizeram que ela entendesse o sofrer dos outros. Quem não sofre não se compadece da dor alheia.

- Como vai? – disse Bem-Salon.

- Bem e angustiada! – respondeu Safira.

- Por quê?

- Meus pais estão muito doentes. Falou Safira.

- Ora, os meus há muito partiram desta vida. Justificou Ben-Salon.

- Sinto muito! Acreditava que ainda vivessem. Olhou compassiva Safira.

- O que faz em Jerusalém?

- Busco trabalho e um meio de conhecer melhor essa terra que dizem ser santa e há tantas religiões juntas. Afirmou Ben-Salon.

- Sim, entendo! Jerusalém é a cidade de Davi, cidade das religiões que acreditam em um só Deus. Para aqui vem turistas do mundo todo. Ponderou Safira.

- Busco um modo de me entender, entender meu destino.

- Cada ser humano tem seu propósito sobre a face da Terra. E feliz de quem consegue dar um motivo para sua vida. Pontuou Safira.

- Ora, se admito um nada e vários deuses; depende deles minha vida. Mas, se tenho um só, a vida está ligada a Ele igualmente. Você acredita em destino? Interpelou Ben-Salon.

- Há uma destinação dos homens enquanto pessoas livres e capazes de decisões. E a liberdade é a questão que se coloca quando se pensa se há um destino comum e único para os seres humanos. Safira tentou responder.

- A morte é o fim de nossa vida sobre a Terra. E como provar uma vida após a morte? Ainda insiste Ben-Salon.

- Pode ser apenas uma etapa de uma longa ou breve existência. Não há uma prova científica da vida pós-túmulo. E é aqui que a fé entra. Entra para apontar uma vida em continuidade. A morte é uma ruptura do corpo e da alma. Mas a vida não é tirada; senão transformada. Como um pé de trigo, as sementes morrem, deixando surgir novo pé de onde a vida se manifesta diferentemente.

- Fé um universo possível, mas como saber que você está nele? Retrucou Salon.

- É um ato de confiança em alguém. Esse alguém é Deus. E não pode decepcionar como os outros seres humanos, limitados e falíveis. É a fé um ato de amor e a inteligência se vê pequena diante dessa possiblidade. Ou se fecha contra a fé; ou admite um ser absoluto, não absurdo. Nesse momento de decisão, a fé é a abertura ao sobrenatural, à destinação humana e um ato de liberdade. Muitos fizeram coisas estranhas e erradas em nome da fé. Mas, a decisão de crer deve ser límpida e honesta. Deus garante sua parte. E sabe da limitação e dificuldade que envolve a busca de todos nós sobre o sentido último da vida. Avançou Safira.

- Pensarei a respeito, mas tenho que ir trabalhar. Amanhã, talvez, a gente se vê e conversa mais. E despediu-se Salon com um cumprimento tímido. E Safira contentou em sorrir esperançosa.

Seus sonhos eram muitos; havia pesadelo e, às vezes, aventura de um caminhar em novas direções.

A Judeia foi a primeira viagem! Depois de alguns meses, voltou a encontrar a Safira e se despediu porque a empresa de estradas iria ao norte de Israel e ele aproveitaria para conhecer outros países como a Turquia, Damasco e Síria. O receio era grande e o visto do passaporte estava em dia. O receio era de violência.

Depois de um ano longe de Safira, ele a encontrou no mercado. Claro, podia conversar com ela em cartas. Seu conhecimento da língua hebraica era difícil e truncado. Ria de suas frases. Porque não sabia se comunicava, de fato, o que desejava.

Agora, com um período de descanso e férias, podia conhecer a Galileia, o mar Morto, o Horeb, o Sinai, a ruinas de algumas cidades do tempo de Jesus. Safira o ajudara na visita a tais lugares.

Nesse momento já era cristã batizada, e Salon admirava alguns cristãos e suas práticas. Achava que os cânticos e orações lindos e diferentes. Na tenda do pai de Safira, Amur, teve contato com o judaísmo e alguns do Islão. Seu pai não era cristão, mas respeitava a decisão da filha. Os primos não aprovavam a mudança de Safira para o credo cristão. O que mais incomodava a Salon era o conflito religioso e militar entre essas religiões. Safira manifestava contra o cruel fundamentalismo e afirmava que os interesses políticos geravam morte e uma guerra sem fim entre as religiões. A História de Israel é longa e complexa, devido aos sangrentos combates entre etnias e culturas diferentes dentro da meia lua fértil. Israel só se constituiria em estado moderno, nos tempos pós-guerra, depois do fim do nazismo. Não só imigrantes do norte da Ásia como toda a Ásia se deslocava em função de conflitos, seca, guerras, fome, necessidade de trabalho e busca de segurança. Famílias inteiras se migravam de ponta a ponta, do oriente ao ocidente.

Repensando suas tradições, Salon foi entendo mais sobre a história do povo escolhido e a formação do povo cristão ocidental, até a formação e diáspora dos judeus e cristãos. Acostumado a ser nômade desde criança, saindo da gélida Mongólia e penetrando nos desertos da Arábia, Salon sobreviveu entre muitas dificuldades e perseguições por ser diferente e estranho em cada terra que trabalhou. O seu caminho interior era a busca da verdade e do sentido da vida. Aprendera vários idiomas e conformara-se a muitos modos de cultura. Vira seu pai cego e a velha mãe reumática ir passando pela sua vida. Débora tinha sido sua primeira esposa, mas depois de 10 anos morrera de uma doença incurável. Sofrera muito porque a amava. Jurava a não se apegar a nenhuma criatura e animal. Perder é mais difícil de integrar no coração do que ganhar e ter vitórias. Logo que morreu, sem filhos, deixou a Mongólia definitivamente.

Os ataques às aldeias eram constantes, e os moradores fragilizados não sabiam como se defender. Nesse tempo, aprendera algumas práticas de defesa pessoal e revoltado aderira ao espírito das guerras e disputas por terras e comida. Mas, ao sofrer em uma das disputas e vendo mortos seus amigos, não quis prosseguir e nem matar ninguém. Preferiu deixar a região de conflitos antes de perder a vida. Deixe aos chacais os despojos das guerras!

Chegou a pensar ser abandonado no mundo e que sua vida era dura como a de tantos migrantes de outras culturas. Viajando, percebeu essa sua visão. Mas, encontrou gente boa capaz de acolher e ajudar os migrantes, gente como Safira e outros amigos.

Por muito tempo, as recordações foram tumultuosas e não sentia paz, depois da morte de seus pais e Débora, parecia que não “havia chão aos seus pés”. Seu bastão, velho instrumento de longos deslocamentos, ainda estava ao canto da tenda como um sinal de que somos todos peregrinos e náufragos, cada qual a sua maneira no mundo de inquietudes e mazelas. O mundo era uma disputa entre poderes e poderosos e os povos teriam que se ajeitar diante dessa maratona de interesses e caprichos. Quem poderia estar do lado dos empobrecidos?

Ao ler as histórias de cada povo, vira os carismáticos e caudilhos. Tutores e juízes de seu povo, tiveram a missão de acompanhar sua gente e ajudá-los nos caminhos difíceis e da luta pela sobrevivência. Sócrates, Cleópatra, Gengiscan, Moisés, Sansão, Josué, Davi, Salomão, Esdras, profetas, Cristo, Paulo, os apóstolos, dentre outros.

Por muito tempo, os cristãos foram vistos como estoicos e fanáticos. Os judeus vistos como preconceitos. Os árabes apegados ao Islã. Trajano, segundo Plínio, achava absurdo morrer por uma ideia, uma religião. Morre-se por terras, ouro, poder, honra...

Flávio Josepho adianta que o Cristo fora melancólico diante da morte de cruz. Sabe-se que foi torturado e condenado. Mas, a personalidade de Jesus é intrigante e ousadamente atraente. Seus milagres estão no conjunto de biografias chamadas de Evangelhos.

Por que temos necessidade do bem e praticamos o mal? Essa questão estava sem respostas. Toda indagação fica pela metade. E Salon lera muito e ouvira muito mais. Nada o satisfizera. E até se ver diante da limitação da inteligência que pode intuir errado e sofismar diante das paixões da vida. A fé propunha a negação do pecado pessoal e social. E o justo sofre as consequências do mal que os outros praticam, embora se esforce para colocar o bem em primeiro plano. Somos seres contingenciais e nossa ação pode fazer a diferença quando mergulhados no espírito de amor e justiça. Mas, o mal pode fazer muito estrago e abalar as estruturas de concórdia se estas não forem mais sólidas e corajosas.

O fragmento de Platão, Fredo 3279 b, apontava na direção de escolhas do homem interiormente belo e justo, capaz de ser sábio mesmo com a riqueza para o uso sóbrio de um homem ponderado. As contradições do homem eram muitas como trevas, contudo a presença de uma tênue luz é capaz de brilhar em noite densa.

E foi Safira essa luz cuja amizade levou Salon, já velho, a aceitar Jesus e entregar-se ao Deus vivo, que a todos acolhe e a todos perdoa, porque Deus é amor. Lá fora, anoitecia, o vento tranquilizava, o arco-íris após a chuva se dissolvia à medida que Salon fechava os olhos e abria o coração cheio de paz. Safira o abraçara na tenda do deserto!

J B Pereira e http://dicionariobiblico.blogspot.com.br/2007/10/paz.html
Enviado por J B Pereira em 28/01/2015
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