634-CONVERSA DE VELÓRIO-Trambiques e trambiqueiros

Pablito Gusmán já passeou por esta série de histórias. De pequeno contrabandista na fronteira do sul, numa das cidades que irmanam com o vizinho Uruguai, passou, aos poucos, a conviver mais no “lado de cá”, do lado brasileiro.

Fiel ao seu estilo de vida, de tretas e mutretas, esta mudança tinha um objetivo: aproximar-se das famílias ricas para encontrar uma jovem em idade de casar, ou mesmo uma solteirona, com bom dote, a fim de – como ele mesmo dizia – “encanar a perna”.

Por isso, podia ser visto como penetra em festas de casamentos, bailes, nos churrascos importantes e até em velórios e enterros.

— Uma viúva rica é até melhor partido do que uma prenda enjoada e difícil de aguentar, dizia aos amigos, sem pudor em revelar suas intenções.

Por isso se encontrava no velório de Dom Gabriel Ruiz, grande estancieiro, com rebanho de centenas de vacas, bons touros, haras com cavalos de raça e afins e muito dinheiro no banco..

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Dom Gabriel, milionário, era também um verdadeiro munheca, mão de vaca, miserável, que vivia só para acumular dinheiro.

Era publica e notória a fama de unha de fome do estancieiro. Quando ficou doente (coisa de uns seis meses antes da morte) fez questão de reunir Soledade, a mulher, as duas filhas e mais testemunhas, deixando para elas, em testamento, as herdades imóveis, o gado, carros, etc.

— Mas quanto ao dinheiro, faço questão: quero ser enterrado com todo o dinheiro que tiver no banco.

A exigência era insana. Tanto o padre Gusmão como o tabelião Taborda procuraram demover Dom Ruiz de tal desiderato, mas o homem foi inflexível.

Como ele já estava nas vascas da morte, a esposa anuiu ao pedido.

— Sim, querido, pode ir descansado. Sua vontade será feita.

— Juras, Soledá?

— Pelo Todo-Poderoso.

Desnecessário dizer que o teimoso e extravagante estancieiro só entregou a alma após o juramento da fiel esposa.

A viúva chegou ao velório vestida totalmente de preto, com véu cobrindo o rosto e portando uma caixinha de madeira, de fino lavor, que depositou aos pés do falecido, já no caixão, pronto para ser enterrado.

— Mãe, que é esta caixa? — cochichou uma das filhas.

— O dinheiro de teu pai. Prometi-lhe que ele seria enterrado com todo o dinheiro que estava no banco. Taí. Estou cumprindo o prometido.

— Mas mãe...

Pablito Gusmán, farejador de bons partidos, já havia sentido ares de grandes possibilidades naquele velório. Não só as duas filhas solteiras, como a viúva, bem conservada, eram excelentes candidatas às suas pretensões. E tinha, inclusive, sabido do estranho testamento de Dom Ruiz.

Atento, ficou por perto das mulheres, procurando consolá-las. Viu quando a viúva depositou a caixa de madeira aos pés do defunto e esticou os ouvidos para ouvir o diálogo cochichado entre mãe e filhas.

— Prometi, não foi? Estou cumprindo.

— Mãe do céu, a senhora ficou doida?

— Que nada. Vocês sabem que nossa conta no banco era conjunta. Só que, enquanto ele estava vivo, nunca me permitiu saber de seus negócios. Hoje, fui ao banco, vi de quanto era o saldo, fiz um cheque do valor e coloquei dentro daquela caixinha. Vai ser enterrado com todo o dinheiro da conta corrente.

E entre soluços e sussurros, arrematou:

— Ele que vá descontar o cheque nos quintos dos infernos.

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Se a história acabasse aqui, já estaria de bom tamanho. Mas Pablito estava por perto. Próximo o suficiente para ouvir todos os cochichos e surpreender-se com a esperteza de dona Soledade.

— Ora — pensou — esse cheque, se não tem valor nenhum para Dom Ruiz, que não vai sair do túmulo para descontá-lo. Mas é um verdadeiro tesouro em mãos hábeis... como as minhas.

Agüentou firme o velório e o enterro. Saiu do cemitério direto para se encontrar com Romário Poncho-Negro, marginal que, como Gusmán, vivia de pequenos golpes, serviços fortuitos ou ilegais, coisas assim.

— Romário, temos um serviço para hoje à noite.

— Bueno, tchê? Quanto levo na empreitada?

— Não quer saber primeiro do que se trata?

— Se me encheres a guaiaca de pilas, faço o que quiseres, mano.

— Coisa de cemitério. Desenterrar defunto.

— Ora, ora, que coisa simples. Vamos lá. Pra que horas, tchê?

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A neblina fria encobria os dois vultos escavando a sepultura recém coberta. Romário não sabia de quem era a cova. Seu negócio era cavoucar. E cavoucou até que deu com o caixão. Não houve dificuldade em abrir a urna. A caixinha estava lá, aos pés do defunto. Num passe rápido, Pablito pegou a caixa e meteu debaixo da própria capa.

— Vamos, agora é enterrar de novo.

Ainda estava escuro quando os dois pularam o muro. A missão cumprida, Pablito pagou Romário, e cada qual seguiu seu rumo, sumindo na névoa densa.

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Para não dar muito na vista, Dona Soledade deixou passar a missa de sétimo dia, antes de ir ao banco tomar as providências cabíveis.

— Não há por que me apressar, pois a conta é conjunta. Só tenho que levar o atestado de óbito para tirar o nome do Gabriel. — falou com seus botões.

Ao chegar à agência, foi atendida com muita cortesia pelo gerente. Antes que ela entregasse o atestado, o gerente lhe perguntou:

— Porque a senhora zerou a sua conta? Não está satisfeita com nossos serviços? Ou fez alguma aplicação importante?

— Como? Não estou entendendo. Zerou?

— Sim. Pagamos um cheque do valor total da sua conta, emitido pela senhora. O saldo agora é zero.

Dona Soledade que não era nenhuma sonsa, como já se viu, percebeu que algo acontecera com o cheque colocado na caixinha aos pés do falecido. Começou a suar frio e teve um breve desmaio. O gerente correu com um copo dágua.

Sem poder revelar ao gerente o ardil que preparara para o falecido, deixou-o sem resposta.

Não podia contar com a ajuda de ninguém, nem mesmo das filhas, as únicas que sabiam o que ela havia tramado. Que fazer?

Ir à delegacia de Polícia? Ridículo e inócuo, ninguém iria acreditar na sua história. Visitou o túmulo do marido e não viu nada alterado.

De nada valeram os bons ofícios de um advogado, metido a detetive, que acompanhou o roteiro pregresso do cheque até a capital, de onde, devido ao sigilo bancário, não chegou até o malandro Pablito Gusmán.

Pablito Gusmán, aliás, Paulo Gusmão, nunca mais foi visto na fronteira.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 28 de outubro de 2010

Conto # 634 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 22/01/2015
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