Filhos da Neném

Ah, a Tôca...eraTôca, e mais nada. A irmandande ainda tinha nomes ou abreviações mais definidas, eram a Lia, o Vicente, a Ção, a Vica, mas pra ela ficara só o toco, a Tôca.

Viviam juntos numa casinha singela, mas decente, limpinha, no povoado de São Gonçalo do Brumado, vila operária da municipalidade de Velha Serrana. Todos, menos a Vica, que na ânsia de abraçar a vida religiosa, entrara para o convento, onde sem condições de se alçar ao status de irmã, fizera-se voluntária, servidora, realizando as mais humildes tarefas - para não perder o hábito. E tampouco conseguiria ganhá-lo, aquele que era de uso privativo das irmãs que haviam feito os seus votos.

Lia tinha luzes, lampejos, raios e trovoadas: de elevada inteligência e frágil compleição, agravada pelo vício dos remédios, licenciara-se da fábrica e, precocemente encanecida, vivia acamada. Tomando injeções atrás de injeções. Raro, chegava à janela, feito uma aparição fantasmagórica, para ver o movimento do sobe-e-desce de gentes, crianças e bichos na poeira ou lama da rua esburacada. E sempre na companhia estridente da bela Léia, sua fiel, peluda e enciumada cadela. Que não mordia, mas no que latia era a pura latomia.

Ção era a única que trabalhava fora, empregada na fábrica, assegurando a dieta magra da família. Tôca e Vicente, compunham a face mais compungente daquele quadro triste, mas que existe, resultante de uma provável união de consanguíneos.

Vicente, então, só se ocupava de sair pra rua, tanger os seus bois imaginários com seu ferrão verdadeiro, e voltar quando a fome o apertava.

Tôca, no seu estrabismo violento, e aquele desabrido dente isolado e sempre crescente, fazia com que as crianças buscassem abrigo ao seu passar. E, no entanto, como se podia enganar. Era doce.

Sua entrada na igrejinha local, durante as mais folgadas ou apertadas horas era uma história digna de registro. Humilde, abaixava-se desde a soleira da porta e ia beijando o chão, reverencial, até a chegada ao altar.

E em sua própria casa, quando visita havia - a gente, em menino lá ia, acompanhando papai que ia aplicar injeções em Lia - inda mais doce, Tôca se transformava, servindo-nos bolo e café que ela mesma fizera, como que para louvar o Cristo que, parece, na igreja só ela tinha visto.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 22/01/2015
Reeditado em 27/07/2024
Código do texto: T5109942
Classificação de conteúdo: seguro