Vinho da verdade

Já tínhamos tido vinho em casa. Vênus era a marca, mas o Chapinha era também conhecido. O que não me lembra era se eram bebíveis ou se prestavam maiormente a dar uma paladar especial a certos pratos. Em doses moderadas, pois vinho era coisa cara, rara e com ele não se enchia a cara.

Bonito era vê-lo, sempre tinto, ser servido ao Padre nas missas ainda nos tempos do latim em que o celebrante bebia e comungava, como lhe prescrevera o Cristo, de seu sangue e de seu corpo santos. Embora se compartilhasse o corpo com os fiéis que comungavam, o vinho não vinha. Ficava restrito ao altar e muitos padres não pareciam ver com bom gosto aquela mistura de água com vinho.

Em Canaã, ou Caná, ou caninha mesmo, Jesus já havia endireitado essa situação, transformando a água em vinho. Mas fazer esse milagre não parecia coisa de todo dia. Deixemos as coisa santas entretanto. Há as profanas e são as que mais abundam neste mundo, ainda que o vinho, de preferência casto, possa restabelecer algumas verdades. In vino veritas, né, já dizia César aos colegas senadores, em quem botava a maior fé. E ainda lhes dava as costas.

Foi quando entrou na história, mais de 19 séculos depois, o Moscatel. Esse tinha jeito de vinho mesmo, e numa garrafa com um rótulo bonito, rolha de cortiça, chegou em casa pelas mãos do Amaral, um amigo de papai, que vivia na capital. E trabalhara num bar. Acho que tinha já saído, mas não por conta daquela garrafa.

Agarrara outra profissão mais segura do que estar atrás dum balcão. E a garrafa - cujo conteúdo, duma cor levemente amarelada, exalava uma certa fragrância - passou a ter lugar de destaque na prateleira. Bem no alto, para desestimular o contato de mãos infantis.

Mas isso não impedia, vai ver até que acrescia, a veneração por aquela peça mais que ornamental. Em algumas ocasiões especiais, vai ver que por vários natais, veio ela pra mesa e em doses homeopáticas, cumpria fazia roda do retângulo com graça e leveza. Não chegava a ser bem melhor do que o Silva Araújo ou o Biotônico Fontoura. Mas dava o que pensar e prum dever de casa que estivesse a esperar - deixava lá estar, apesar de inspirar.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 15/01/2015
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