Sublime

Ela abrira os olhos. O sol que nascera abriu uma fresta no meio de uma névoa espessa; era um lusco-fusco de cor acinzentada, onde pouco se podia ver em meio a verdes montanhas. A fina camada de gelo que cobria os gramados ralos e os caminhos de terra fofa daquele campo iam aos poucos sendo ocupados pelos patos, cisnes e os inúmeros pombos que despertavam em busca do seu desjejum matinal. O estreito lago, trazia naquela manhã uma fina camada de gelo que cobria meio palmo desde sua translúcida cobertura.

Uma senhora de cabelos grisalhos ondulados, de olhar macio e disperso, admirava o despertador dos seres vivos. Solitária, ela murmurava para si algumas poucas palavras. Num dos bancos postados em meio ao parque, ela fazia conjecturas sobre aqueles que sempre ocuparam seus principais interesses, preocupações e amores. “Nunca conseguirei lhes esquecer”, ela falava baixinho para um ponto médio entre duas aves pequeninas que passavam próximas as suas finas pernas.

Sua visão turva procurava ao longe a chegada de novas pessoas naquele desconhecido local. Eram crianças, daquelas matreiras que ela tanto gostava. Uma delas passou em frente ao seu banco, e correu atrás das duas aves aos seus pés que, fugidias, rumaram num raso voo para dentro da água gelada. Uma das meninas chegou a sentar-se ao seu lado, virou-se para ela e deu um leve sorriso; um segundo depois, pegou sua boneca de pano pelos pés e se pôs a correr atrás da outra pequena, gritando pela mãe. A senhora admirava o fôlego das crianças e seu desejo de sempre se deparar com o novo. O percurso da vida fazia com que na alta idade todas as coisas passassem de forma cada vez mais serenas. Era como se os pensamentos percorressem becos sem saída e lentamente se acomodassem na memória, para aos poucos se apagarem, como se nunca tivessem existido. O novo também se desvanecia, assim como a vida. O seu desafio era ter que acertar as contas com as coisas antigas, não tão somente o encontro com o velho, seu marido, mas tudo o que ela passara e provara desde então, das coisas boas às mais batidas.

Tremia um pouco com a hora que chegava. O gelo se derretia fazendo com que os fracos raios de sol transformassem a camada de água congelada em líquido, como se a terra estivesse suando, abrindo seus poros aos pouquinhos. Ela não sabia ao certo o que lhe poderia acontecer, se era aquilo mesmo que a esperava, como ela aprendera. Sentia um pouco de frio, mesmo que o sol agora a esquentasse; talvez fosse um pouco de fome. Tentou chamar por aqueles que estavam lá, pouco tempo atrás a vigiando. Eles a seguravam pelas mãos e falavam palavras tão bonitas, mesmo que ela não soubesse o que se passava naquele exato momento. Era como se sentisse novamente os carinhos, os confortos, e logo depois, aquele sopro. Isso a tranquilizou para a chegada da hora. Mas isso era dia? Nunca ela os disse que queria partir? Sentiu uma forte vontade de levantar e sair caminhando. Dar meia volta, chegar novamente ao lugar de retorno. Voltaria! Mas se não tivesse volta? Era melhor confiar só no caminho de ida. Olhou para trás, não via nada. Fazia novamente um longo silêncio. Um silêncio que a maltratava, a deixava cada vez mais intranquila, que não deixava ela ter uma boa estratégia para burlar o agora.

Tentou levantar-se em vão. Não tinha forças. Sentia suas pernas e braços pesados, como pedras amarradas ao corpo. Onde será que estão todos? Pensou que poderia sair. Mas iria para aonde? Não seria certo voltar para onde estava, se os ponteiros do tempo eram percorridos sempre para a frente, para o eterno. Começou a chamar, cada vez mais alto. Nome por nome, de todos que podiam estar ali, pregando uma peça daquelas, como se ela já não soubesse daquelas brincadeiras. Não tinha graça. Chamou até aqueles que tinha certeza que já passaram por ali. Mas nada; só ouviu seu forte suspiro.

Pensou no conforto de sua casa. Naquelas pessoas que a deram a certeza da real importância de sua passagem, que todos os dias a fizeram sorrir. Lembrou de alguns dos bons momentos que desde muito cedo vivera. Tinha espaço no peito para qualquer um que lhe pedira o convite de entrada. Reservou para todos, dos mais sofisticados aos mais simples, seu carinho. E sempre tentou manter um olhar de temperança, de alegria e de vigilância aos que dela necessitavam.

Já se fazia tarde a hora. O sol aos poucos abria o firmamento, e, soberano, mandava no céu. As brumas deram espaço à claridade. Queria que tudo acabasse; sentiu novamente um aperto no peito. Achou que começaria a chorar, quando sentiu um leve toque nas suas costas. Virou-se com alguma dificuldade e os viu nitidamente. Eram muitos. Foram dezenas de amigos, de parentes e de conhecidos que a vigiavam próximos às árvores e da relva que ficava atrás do banco de pedra onde ela sentava. O senhor mais próximo de pé sorria, uma senhora que ela rapidamente identificou no meio de todos, também fazia o convite para sua aproximação.

Num súbito esforço, levantou-se e deixou o banco para trás, ao ouvir a voz um pouco rouca do homem:

“Maria, estivemos aqui o tempo todo. Seja bem-vinda, nós te amamos”.

Agora ela os percebera, eles sempre estiveram ali na sua estada. Como se fossem os arbustos e animais a sua volta, eles a espreitavam dali, e passaram todo o tempo a observando. Apesar dela não os ter visto em nenhum momento, ela notou que os sentira, como os fortes raios de sol que brilharam e acalentaram aquela manhã de dezembro.

(Homenagem póstuma a nossa querida amiga, vó Maria que partiu em 29/12/14 na cidade do Rio de Janeiro).