ZEFERINO DO PINHENGO (DO LIVRO CASSARAM ARS CEROULAS)

(Zeferino do Pinhengo é um personagem fictício criado para homenagear o escritor Osório Alves de Castro)

Tudo parece normal nesta manhã de quinta feira na fazenda do Zeferino do Pinhengo no lugarejo do mesmo nome. É de praxe ali na fazenda, o seu Zeferino acordar às quatro horas e meia da manhã para poder ordenhar as vacas no curral. Zeferino do Pinhengo é um dos maiores produtores de leite na região. Mas nesta madrugada de quintq feira, algo dá impressão de que alguma coisa está errada! As vacas não estão no curral e nem os bezerros apartados no curral reservado para eles.

- Que esquisito! Pensa. Será que o vaqueiro deixou as porteiras abertas! Ou, alguém as abriu propositadamente! Pergunta em voz alta.

Como a um passe de mágica, uma quantidade enorme de homens encapuzados e armados de carabinas em punho surgem subitamente, como se caíssem do céu ou brotassem do chão e cercam o Seu Zeferino do Pinhengo.

- Volte para a sede fazenda seu Zeferino, pegue toda a sua família e suas coisas principais, suba naquele pau de arara que levará você pra bem longe daqui, ordena uma voz grossa e meio rouca. Dá se a impressão de ser o chefe dos jagunços.

- Espere um pouco, seus jagunços de uma figa! Sou amigo do Coronel Areias Junior e isso não vai ficar assim.

- E meu caro, trate de apressar a sua retirada senão você queimará junto com a sua casa e o restante das coisas. Temos ordem de preservar a sua família e os animais. Completou o sujeito rouco. O que parece muito esquisito é que os empregados da fazenda não estavam nos galpões e nem nas respectivas casas. Algo muito estranho teve ter acontecido durante a noite. Na verdade os funcionários foram aliciados com promessas de continuidade na fazenda sem represálias e com uma vantagem maior nos salários.

Seu Zeferino anda cabisbaixo e humilhado por ter sido pego de surpresa nesta madrugada de quinta feira, temendo pela vida da sua família, se apressa em correr para a casa da sede. Nem os homens da sua segurança, os peões de gado e vaqueiros estavam por ali. Mais estranho ainda, é que nas casas dos empregados da fazenda tudo parece plácido e alheio aos acontecimentos da madrugada. É o sinal de que todos de fato mudaram de lado rapidamente e de uma maneira surpreendente. Seu Zeferino do Pinhengo sempre foi um bom patrão e um bom amigo para todos.

Mulher, levante-se rapidamente acorde as crianças e pegue só o necessário para irmos embora daqui. Grita com uma voz carregada de angústia, ódio e indignação pelo o que está acontecendo.

O que está acontecendo homem de Deus? Você não deveria estar no curral ordenhando as vacas. Dona Conceição pergunta assustada sem saber o que está acontecendo.

- estamos sendo expulso da nossa propriedade! Responde.

- Expulso por quem? Indaga.

-Não sei. Tem um monte de jagunços armados até os dentes cercando toda a sede e o curral.

-E cadê os homens da fazenda?

-Não há nenhum para nos defender. Também não adiantaria de nada! tem jagunço saindo pelo mata burro!

Dona Conceição, acordando a criançada que assustada não entende nada, começa a refletir. Há alguns dias, o capataz andou se ausentando da fazenda e, quando retornava, começou a fazer reuniões com os empregados da fazenda – Estou cobrando deles maiores produtividades na questão dos meeiros e dos empregados de fato! Respondia quando indagado por ela.

-Rápido mulher, os homens não estão para brincadeira! Exclamou seu Zeferino, enquanto pega os documentos pessoais e a única economia guardada ali na fazenda.

Dona Conceição arruma alguns pertences considerados de suma necessidade e puxando as crianças pelos braços, com lágrimas nos olhos e assustada com a situação repentina, afinal de contas, anos de tranquilidade ali na fazenda, fabricando os queijos caseiros os requeijões, a manteiga de garrafa e cuidava da criação de galinhas para a produção de ovos, auxiliava as mulheres dos empregados da fazenda e ainda dava aulas para as crianças, evitando assim o cansativo trajeto entre o Pinhengo e Santa Maria da vitória, para as crianças.

Como num piscar de olhos, para quem havia nascido ali no Pinhengo, de uma hora para outra, dona Conceição vê tudo se desfazendo como se fosse palha se desintegrando. Não pode ser verdade! Ainda devo estar dormindo! Isto não pode estará acontecendo, oh não! – Pensa forte, enquanto as lágrimas rolam dos seus olhos. Subitamente volta à realidade com a voz rouca ordenando:

- Anda logo sua molenga, não temos a madrugada inteira! Antes que o sol nasça vocês já devem estar a caminho do Sítio do mato para embarcarem no Vapor Siqueira Campos que está indo para a cidade de Pirapora nas Minas Gerais!

Seu Zeferino e dona Conceição, arrastando a pouca bagagem, ajudados pelos três filhos e as duas filhas, todos chorando e amedrontados, deixam a sede da fazenda escoltados por um batalhão de jagunços toscos e estúpidos, que vão empurrando a família alquebrada, humilhada e combalida para que suba rapidamente no caminhão pau de arara, um chevrolé acionado por uma manivela.

Calado e resignado, sem saber de fato que fora o mandante, seu Zeferino do Pinhengo, acaba de ajudar a acomodar a família no assoalho da carroceria enquanto que os jagunços cobrem toda a carroceria com uma longa lona amarela.

- Se fizerem barulho para chamarem a atenção de alguém na estrada, juro que não verão mais a luz do sol! Gritou o sujeito de voz rouca, que sem sombras de dúvidas deixa nítido para todos que é o chefão da operação violenta.

Com a cobertura da carroceria do caminhão pau de arara, o ambiente torna-se escuro para a família Zeferino, que só tem uma certeza: Que todos estão vivos, que perderam tudo, inclusive a dignidade, sabem o destino certo para estão conduzidos, mesmo sem poder ver a paisagem árida na estrada de Santana dos Brejos em direção ao povoado Sítio do Mato onde embarcarão no vapor para Juazeiro. Mas, na mente de Seu Zeferino e dona Conceição há uma grande pergunta que não quer calar: Quem está por trás de tudo isso? Por que não levam em consideração o Coronel Areias Junior, nosso amigo de tantos anos? Somos os aliados mais fieis a ele! Será que alguém quer atingir o coronel ou se vingar dele?

Este turbilhão de dúvidas e perguntas sem respostas, talvez o Zeferino nunca venha a saber ou tenha oportunidades de vir a saber. Na verdade, ouvindo o barulho do motor velho do caminhão, e os solavancos provocados pelo terreno íngreme da estrada de areia e cascalho que liga Santa Maria da Vitória a Santana dos Brejos e, depois para o cais do Sítio do Mato onde está ancorado o Vapor Afonso Arinos, Seu Zeferino e dona Conceição, na escuridão provocada pela lona que os cobre, acostumados a verem o dia raiar com o cantar dos galos, agora ouvem apenas o cantar roncado do motor do caminhão e a fricção dos pneus carecas no solo da estrada.

Um barulho que vai ferindo os ouvidos acompanhados de um soluço quase silencioso de uma das crianças. Precisamente da Tânia a menina caçula de dois anos, acostumada a ir ao curral, logo que acordava, para beber espumas do leite e voltar para a sede da fazenda nos ombros do pai, seu Zeferino.

Enquanto seu Zeferino do Pinhengo é conduzido para Sítio do Mato acompanhado por alguns capangas, que são da Gameleira, o chefe dos jagunços ordena para que a sede da fazenda seja incendiada, mas que todos os animais sejam poupados, afinal de contas são animais de pura raça e o novo proprietário quer que eles sejam preservados.

O incêndio é apenas para deixar claro que houve um ataque de jagunços para não despertar suspeitas sobre a autoria da expulsão do Seu Zeferino do Pinhengo. Aos poucos a sede da fazenda se transforma em um incêndio de proporções gigantescas, enquanto que o bando de jagunços vai se dissipando do local para que não haja nenhum vestígio de nenhum participante.

As pessoas que passam pela fazenda descem dos seus cavalos e na tentativa de ajudar os vizinhos que ao verem o fogo vieram para tentar apaga-lo, mas estão diante de uma luta inglória. Todos os pertences da família Zeferino que ficaram dentro da casa a maioria é de combustão ajudando em muito na formação das grandes labaredas. Uma judiação assistir a destruição de uma sede tão bonita toda ela fabricada de alvenarias e coberta de telhas estilo colonial.

Na mesma velocidade em que as labaredas vão lambendo a construção já em ruinas, a notícia chega a Santa Maria da Vitória e neste interim aos ouvidos do coronel Areias Junior, que, ator como ele mesmo, demonstra indignação e pesar.

-Quem cometeu uma asneira dessa contra um dos meus maiores aliados? Quero uma investigação intensa para que tal disparate seja esclarecido! Falou publicamente e até esboçou uns soluços que acabam por deixar as pessoas até emocionadas.

Major Altenório, outro fingidor na farsa, dirige-se até o Coronel Areias Junior da lhe um forte abraço em silêncio e se afasta furtivamente olhando para o chão como se estivesse imensamente consternado com a tragédia envolvendo o grande aliado Zeferino do Pinhengo.

Sem papas na língua Arnaldo Tigre se aproxima do Coronel e com um jeito debochado bate nos ombros de Areias Junior e jocosamente fala bem compassadamente e usando uma mansidão na voz.

- Quem será que fez essa asneira, coronel? Zeferino do Pinhengo era o único aliado seu que poderia ser chamado de o fiel escudeiro. Foi o único homem que disse não ao nosso convite para passar para a oposição ou seja, passar a pertencer às fileiras do nosso partido. Fizemos de tudo para que ele se convencesse, mas, ele foi inflexível. Disse que tinha uma dívida gigantesca com a família Areais, coisa que vinha desde os avós dele e, por mais que você Areais estivesse errado, ele jamais lhe trairia. A atitude dele em recusar o nosso convite deixou-nos despontados mas respeitamos a decisão dele.

-Quer dizer que ele recusou o convite de vocês? Pergunta meio engasgado.

- Sim, coronel, ele recusou textualmente o convite feito pelo Dr. Delvany, o coordenador da nossa campanha que será vitoriosa, sem dúvida nenhuma. Responde Arnaldo Tigre.

- Quer dizer que na reunião que ele teve com vocês ele se recusou a trair-me?

- Sim coronel, desapontou-nos, pois, sabedores da divergência de Zeferino do Pinhengo com o major Altenório, achamos por bem convidá-lo . Disse ele: O major Altenório não é membro da família Areias. É apenas um aliado de longas datas. Devo gratidão à família Areias e não ao major.

Coronel Areais Junior neste momento sente um arrepio terrível na espinha e na alma. Acabou descobrindo que major Altenório lhe dera um grande golpe para defender o seu interesse na briga contra o Zeferino do Pinhengo. Intrigado com o silêncio do Coronel, Arnaldo Tigre quebra o clima já sacando tudo.

- Pego no contra pé coronel?

- Eu lá sou homem de ser pego no contra pé?

- Então foi pego na contra língua, já que ficou mudo! Ironiza Arnaldo Tigre e se afasta bem devagarinho com um sorriso entre os dentes, apesar de estar consternado com a barbaridade cometida com o Zeferino do Pinhengo que, apesar de ser um forte aliado do déspota Areias Junior, sempre foi uma pessoa íntegra e nunca faltou com a ética para com nenhuma pessoa.

Cheio de rancor e ódio para com o major Altenório pela jogada baixa a fim de levar vantagem com a situação, deduzira erradamente o que de fato houve na reunião. Major Altenório achou que o Zeferino do Pinhengo, pelo simples fato de aceitar e participar de uma reunião no comitê de campanha do Partido de Oposição Libertador já havia aderido ao convite de mudança partidária. Um engano imperdoável para Areais Junior por parte do major Altenório.

Cego pelo ódio de ter sido enganado e de também ter procurado o Zeferino do Pinhengo para tirar satisfação e saber da verdade antes de cometer o destino que lhe custará muito caro por isso. E a caminhar para casa do major, meio cabisbaixo, acaba por receber a triste notícia da perda de todos os aliados que eram ligados ao Zeferino do Pinhengo. Respeitava muito o major Altenório, mas desta vez ele passou dos limites. Pensa com olhar fulminante.

É do conhecimento de todos que o coronel Areais Junior é dotado da maior falta de escrúpulos quando se vê em uma situação de perdas ou quando se vê ameaçado. Passado, amizade, tradição não fazem parte do seu dicionário de ética. Isto significa que o tempo vai esquentar assim que chegar a casa do major. Há se vai.

Assim que chega a casa do major, o coronel já entra sem ser convidado, como se entrasse no seu solar e ao ver o major Altenório tomando uma caneca de café, lhe acerta três chicotadas violentas as quais deixam um rastro de sangue.

-Seu canalha mentiroso! Berra ao ver o major caído no chão.

O major reage subitamente! Levanta e acerta um soco no queixo do coronel que cai estatelado no chão como uma jaca podre – Me respeita seu moleque inconsequente! Pisa no peito do coronel impedindo que este se levante e puxa uma garrucha da cintura e se prepara para atirar na cabeça do Areais.

- O que é isso homens de Deus! Grita dona Deijinha, esposa do major Altenório segurando a mão do marido fazendo com que o tiro acerte o chão e não a cabeça do Areais Junior que acabou ficando paralisado ao sentir a bala da garrucha passando pela sua cabeça roçando lhe os fios negros de cabelos cheios de brilhantina.

Major Altenório tenta usar a segunda bala da garrucha mas dona Deijinha dá lhe um chute nos colhões e urrando de dores, major Altenório cai no chão e solta a arma que é recolhida pela esposa.

-Cês estão loucos! Grita dona Deijinha.

O Coronel Areias Junior foi erguido do chão pelos amigos do Major Altenório que foram chamados para apartarem a briga, e enxotado ali do casarão e jogado na rua.

- Não tenho medo de você Areais e não tente nada contra mim, gritou major Altenório.

- Vou me vingar major, haverá troco sim!.

CAPÍTULO 23

CAPÍTULO 22

Passados alguns dias dos últimos acontecimen-tos em Santa Maria da Vitória, acontecimentos esses que deixaram muitas marcas, a cidade volta a canalizar as ex-pectativas para o inicio das campanhas politicas e que, dife-rente da primeira eleição que culminou com o coronel Areias Junior à frente da prefeitura, sem nenhuma chance para a oposição, o cenário atual é totalmente favorável ao P. O. L, Partido Oposicionista Libertador. Os próprios desmandos do coronel Areias Junior o levam a este panorama.

Longe de Santa Maria da vitória, lá para as ban-das de Marília, depois de ser transportado até o embarque no vapor Siqueira Campos em Sítio do Mato e juntamente com a sua família, alojado como retirante, passando pelas maiores humilhações, até a chegada a Pirapora e depois de perambular por pensões de baixo custo até o embarque para São Paulo, Zeferino do Pinhengo ainda não fazia ideia de quem fora o mentor do disparate, que lhe tirou a propriedade e o direito de viver com sua família na sua fazenda e sendo enxotado como um cachorro sarnento e sem dono.

Ao chegar a Marilia, indicado por um amigo que conheceu no trem de ferro que ia justamente de Belo Hori-zonte para Marilia, Zeferino do Pinhengo com a pouca eco-nomia que conseguiu levar consigo, de Santa Maria da Vitó-ria, comprou uma pequena casa na periferia da cidade, e, como era alfaiate nas horas vagas, profissão aprendida ain-da quando era criança com o avô que era alfaiate, montou a sua alfaiataria modesta, mas como é um homem de muita prosa, e bom alfaiate não demorou muito a fazer uma grande freguesia e um ciclo de amizade, principalmente com os comunistas da cidade.

Durante o dia Zeferino do Pinhengo gasta todo o seu tempo envolto com seus cortes e costuras e os longos bate papos com os jovens fregueses da alfaiataria. Os jo-vens adora ouvir os causos contados pelo Zeferino sobre a sua Santa Maria da vitória, do rio Corrente, do Rio São Fran-cisco, dos gerais, das cidades vizinhas e barranqueiras, a história dos coronéis da região e as suas pendengas políti-cas, os folclores da região, a história dos jagunços.

À noite, sempre quando deita na sua cama e nos escuro do seu quarto, quando as crianças e a sua esposa pegam no sono profundo, Zeferino, com a sua insônia an-gustiante, olhando para o telhado que deixava passar algu-ma fresta de luz, fica envolto em suas recordações de infân-cia, adolescência, juventude e a vida adulta como fazendeiro e aliado de Areias Junior. Na sua cabeça as paisagens memoriais vão sendo povoadas por inúmeros personagens que aos poucos se enchem de vidas e de enredos ao ponto de parecerem estar ao vivo dentro do quarto de dormir. Até os sons dos pássaros e dos rios são reais nestas intermináveis horas de insônias. Passa um filme em sua cabeça. As águas do Corrente, a Maria fecha a porta prau o boi não te pegar, um mato que dá na beira dos rios que quando tocadas nas suas folhas elas se fechavam para sua proteção.

Não é muito difícil para Zeferino se transformar em um comunista. A revolta que ele sente contra aos pode-rosos e contra os que lhe alijaram da sua vida pacata no in-terior da Bahia, aos poucos a sua alfaiataria se transforma em uma espécie de comitê do Partido Comunista, e enquan-to ganha dinheiro para o sustento e a estabilidade da sua família, Zeferino do Pinhengo, hoje Zeferino da alfaiataria, vai se politizando, aprendendo muito sobre a vida do Brasil, dos oprimidos, e para as pessoas não ligadas à política, ele conta muitos causos de Santa Maria da Vitória e as pessoas gostam em demasia. Um professor deu até uma opinião para ele.

- Escreve as suas histórias homem de Deus! Elas são muito boas e quem sabe, algum dia você até poderá publicá-las, disse.

-Sabe que é uma boa ideia! Responde Zeferino do Pinhengo.

-Suas histórias são boas de mais, muito interessan-tes. Não sabia que a sua região é tão rica de fatos.

O envolvimento com a turma comunista acaba rendendo ao Zeferino algumas prisões e apreensões dos seus manuscritos. Certa vez o delegado o interrogou abrup-tamente.

- Fale quem é esta tal de Maria Fecha porta! Ela é por acaso uma líder dos comunistas aqui de Marilia? Ela é de Cuba ou é uma Russa disfarçada de Maria?

- É apenas uma planta que existe na beira do rio Corrente que banha a minha terra natal e que faz parte das minhas memórias do sertão!

- Plantas, e ainda com esse nome! Conte outra seu caipira baiano!!!

- Se o senhor não acredita, não posso fazer nada!

- Ainda mais é um caipira nordestino desaforado!

- Estou falando a verdade tu é que não acreditas!

- Onde é este local da reunião seu comuna caipira? Você fala em código! Porto calendário tem tudo a ver com local e datas! Encaixa bem.

- Porto calendário é o título de um romance de um conterrâneo! Aliás, Maria fecha a porta prau boi não te pegar é outro romance dele!

- Qual o nome deste escritor, seu caipira da Bahia! Seu nordestinado!

- Osório Alves de Castro.

-Osório Alves de Castro! Esse cara foi um comunis-tazinho que deu muito trabalho para nós. Inda bem que foi embora para a capital São Paulo.

- Queimem todos os escritos deste caipira baiano e comunista! Ordena o delegado.

Zeferino fica tenso, nervoso. Horas de insônia relembrando personagens e passagens de cenas na memó-ria, agora tudo queimado por um delega que luta contra os revolucionários. Livre do interrogatório, Zeferino do Pinhengo volta para sua alfaiataria, combalido e combatido, mas sem perder o ânimo e nem a dignidade, qualidades adquiridas desde o nascimento. Depois de ser escorraçado da sua fazenda sem saber por quem, tudo o que se apresentar a ele será refresco para suportar. Volta para suas costuras de paletós e calças, seus cortes de costuras e moldes e ao mesmo tempo recomeça a remodelar e a reescrever as suas histórias do sertão baiano.

Durante uma reunião do partido comunista mostra os seus novos escritos para os amigos e um trecho novo chama muita a atenção de todos:

- O sertão é como onça. Pode amassar e não fazer contas das unhas e das presas e viver como gato de casa ou cachorro de colo. Mas se espanta!

- Que comentário lindo seu Zeferino! Exclama um camarada do partido cujo nome é Tenório de Castro, um jo-vem militante.

- Essa frase é de um grande escritor que nasceu na minha cidade e veio aqui para Marilia e eu resolvi usar em uma fala. Comenta Zeferino.

- Por acaso é o Osório Alves de Castro? Pergunta o professor.

- Sim. É dele mesmo.

- Eu li o Porto Calendário e Maria Fecha Porta prau Boi não te Pegar. Ele morou aqui em Marilia foi alfaiate como você. Acho que deva continuar a escrever as histórias do seu sertão e tenho a certeza que será um grande sucesso no futuro, Nunca desista de escrever os seus causos. Suas ideias são geniais, sem sombra de dúvida.

-Vou continuar, sem sombras de dúvidas.

-Tente escrever para o Osório Alves de Castro lá em São Paulo falando dos seus escritos. Como ele é seu conterrâneo dos sertões e dos gerais, e, como o senhor é da mesma cidade que ele e da região, tenho a plena certeza de que, amante como ele é das coisas do sertão, irá gostar de ver e ler seus escritos. Pensa no assunto. Aconselha o pro-fessor.

Zeferino do Pinhengo como já é de praxe, quando deita para dormir não o faz sem antes ver desfilar pela sua mente as recordações do seu sertão de Santa Maria da Vitória. Os lugares que percorrera quando criança e jovem. Da região do Vale das Éguas, Bom Jesus da lapa, Barriguda, São Manoel, Carinhanha, Descoberto, Cocos, Santana dos Brejos, Sítio do Mato, Ibotirama, Juazeiro, Petrolina, Pirapora, Januária Malhada. Lembrava os personagens, das olarias, dos barqueiros, da partida das mulheres em busca de seus maridos em Canudos, como escrito por Osório, na maldita guerra contra o Antônio Conselheiro. Lembra também de quando os jagunços expulsaram os santa-marienses da beira do Corrente lá pros fundões do tabuleiro na região do Pau de Colher. Na verdade o povo fugiu com medo dos jagunços. Com o passar dos anos, já sem o risco, o povo ia até a beira do Corrente para comprar mercadorias e vender seus produtos de olaria e das roças. Por isso se dizia que ia ao porto. Quando o povo começou a se achegar às margens do Cor-rente e a construir suas moradias, iniciando assim a funda-ção de fato da cidade de Santa Vitória, primeiramente cha-mada de Porto. Mas o Osório já escreveu um livro com a palavra porto no título!. Mas quem sabe com o tempo eu en-caixo um título que tenha força como o Porto Calendário do Osório! Pensa Zeferino do Pinhengo

De tanto sofrer apreensões dos seus manuscritos por parte da polícia repressiva, Zeferino resolve guardá-los no pequeno depósito no fundo da casa juntamente com o resto de fazendas utilizadas na confecção de ternos.

- Venha dormir homem de Deus. Toda noite é uma insônia danada! Reclama sua esposa dona Conceição.

- Preciso colocar as ideias em ordem!

-Você fica metido com estes comunistas, numa hora desta, você acaba entrando em uma grande enrascada!

- Ué mulher, não fiquei a vida inteira defendendo pessoas que pareciam corretas e acabei por entrar em um belo de um cano! Onde é que o grande Coronel Areias Juni-or estava, quando fui escorraçado da minha fazenda? Ás vezes eu penso que ele tinha culpa no cartório!

-Eu tenho certeza! Você não foi até a casa dos opo-sicionistas e inimigos do Coronel Areias?

-Será que foi isso?

-Sem sombras de dúvidas homem de Deus!

-Como é que não pensei nisso? Então foi por isso que o Areias não moveu uma palha para me salvar da en-rascada!

-E tem mais. Acho que o Major Altenório, que se transformou em seu inimigo velado tem culpa no cartório!

Zeferino do Pinhengo começa a fazer uma retrospectiva de todos os acontecimentos que antecederam a sua expulsão da sua própria fazenda, e chega à conclusão de que Areias Junior tinha sim, culpa no cartório. É fato que não movera nenhuma palha para ajuda-lo nesta violência tão infame por ele sofrida. Mais do que nunca continuará a militar no partido comunista e se alistará de vez passando a dividir de vez, a sua vida entre as reuniões do partido e as confecções dos ternos e outros tipos de roupa; e nas horas vagas, mais do que nunca, dará prosseguimento a escrever história do sertão baiano, através das suas memórias com os diversos personagens que fizeram e fazem o enredo dos seus escritos ,inspirados no Porto Calendário e na Maria Fecha a Porta pro Boi não te Pegar, do conterrâneo Osório Alves de Castro. Aos poucos Zeferino entre corte de moldes, tiradas de medidas e costura, entre reuniões do partido e as prisões efetuadas pela polícia vai tecendo os seus escritos para um dia no futuro, quem sabe, publicar as histórias escritas e que estão ainda bem vivas em sua vida.