627-LADRÃO DE JABUTICABAS-Memórias do autor

O quintal se estendia em suave declínio até chegar à rua dos fundos. Marcava a divisa um velho muro de taipa, que de tão velho já se desfazia no topo. Pelas rachaduras crescia capim, que disfarçava as frestas.

Largo e fundo, o quintal era tão grande que mais parecia uma chácara encravada na cidade. Além do barracão da oficina de marceneiro de seu Odorico, havia ainda espaço para uma horta de verduras, para uma extensa latada do chuchuzeiro, mais três laranjeiras, um pessegueiro, e no fundo, como um pelotão em sentido, rente ao muro rachado, seis jabuticabeiras.

Plantadas há dezenas de anos, ninguém sabe por quem, eram de três qualidades: dois pés de jabuticabas sabará, as mais apreciadas e as que mais produziam; dois pés de jabuticaba-do-mato, com frutos grandes, quase que o dobro das sabarás, também doces mas de cascas grossas e caroços idem. Dois pés de jabuticabas rajadas, as menos apreciadas, pois demoravam a madurar, eram grandes como as do-mato, mas não tão saborosas. Quando maduras, não ficavam totalmente roxas: estrias verdes marcavam a superfície e confundiam as pessoas. Estão maduras? Estão verdes? Sem falar que as cascas eram muito, muito grossas.

Seu Odorico tinha um cuidado especial com todo o quintal, pois dele tirava algum dinheirinho que ajudava na manutenção da casa. Todas as tardes, pelas cinco horas, limpava a banca, guardava as ferramentas e ia cuidar da horta e das árvores. Na horta, cultivava alface, couve, e outras verduras de fácil venda à porta de casa. Das laranjeiras e jabuticabeiras colhia as frutas, também vendidas por sua mulher aos vizinhos e até gente do centro da cidade, que procuravam laranjas graúdas e doces ou jabuticabas fresquinhas, colhidas na hora.

Por isso e pelo gosto que tinha no trato com as plantas, seu Odorico tinha orgulho da horta e do pomar.

Naquele ano a seca adentrou-se por setembro, coisa inusitada. As regas dos canteiros de verdura tinham de ser feitas de manhã e à tarde. E prevendo a falta da chuva essencial para uma boa produção de jabuticabas, tratou de cavar, ao redor de cada jabuticabeira, uma cova estreita, para onde canalizou a água que sobrava do tanque de lavar roupa.

Assim, as plantas não só floriram na época devida, como as flores vingaram em milhares de frutas. Pelo começo de novembro, os troncos e galhos mais finos estavam completamente cobertos pelas frutinhas ainda verdes. No começo de novembro, começaram a madurar. Em poucos dias, os galhos verdes ficaram roxos, e em seguida, quase negros, de tanta jabuticaba.

Como só ele tivera o cuidado de irrigar as jabuticabeiras, a produção foi notada por todos que viam as jabuticabeiras. Debruçados sobre a taipa, os galhos carregados chamavam a atenção dos raros transeuntes e do muitos meninos que por ali passavam.

Se Odorico não se permitia (nem a quem quer que fosse) a colheita de jabuticabas senão no dia em que estivessem “no ponto”. E era sempre em noite de lua cheia que elas chegavam “no ponto”. No dia seguinte, era iniciada a “colheita” tanto para consumo próprio como para a venda.

Chegou, pois, a lua cheia de novembro. Noite clara, quente. Seu Odorico saiu ao quintal para apreciar a horta, as árvores. O luar descia sobre as plantas, dando uma aparência sedosa às folhas. O galhos das jabuticabeiras pareciam enrolados por um manto de milhares de bolinhas aveludadas. Um silêncio amigo enchia o espaço.

Amanhã...amanhã começo a colher você, suas gostosinhas!

Enquanto passeava pelos canteiros, observou uma movimentação dos galhos de uma jabuticabeira. Prestou atenção. Viu algo escuro, talvez um vulto, talvez uma sombra, sobre o muro de taipa.

Pensou: Tem algum bicho querendo subir na jabuticabeira. Um gambá, com certeza. Mas não vai ter pra você, não. Vou lhe acertar as fuças.

Muito sorrateiramente, escondendo-se entre as outras árvores, foi até onde uma dúzia de bambus estavam encostados. Bambus compridos, próprios para derrubar as laranjas dos galhos mais altos.

Pegou um bambu e com máximo cuidado para não ser notado, foi-se aproximando da jabuticabeira, cujos galhos agora se agitavam ainda mais.

Ou porque entre as jabuticabeiras o luar perdesse sua claridade, ou porque já não estava lá tão bom das vistas (cataratas nos dois olhos pediam urgente cirurgia), ou porque a idéia inicial era de que um gambá aparecera para chupar suas uvas, Seu Odorico não sabia realmente o que ia cutucar com o bambu de mais de quatro metros.

Chegou sem ser notado sob a jabuticabeira. Com arte e perícia, levantou o bambu até o vulto que estava num dos galhos e deu aquela cutucada. Bem no meio do bicho, como pensava o homem.

— AAAAAAIIIIIIIIIII!

O berro humano estilhaçou o silêncio. E em seguida, uma barulheira de galhos quebrados, de gemidos e outros gritos foi acompanhada pelo despencar de um... menino!

Caiu ao chão com uma pedra. O susto fora tão grande para o garoto que não tivera como agarrar-se nos galhos inferiores.

Odorico também levou aquele susto, ao ver, aos seus pés, o garoto que, ao mesmo tempo em que caia, levantou-se num salto e ia fugindo, não fosse a mão ágil de Odorico, que lhe segurou firme o braço esquerdo.

— Me deixa, moço, peloamordedeus, me deixa. – falava, entre gemidos e soluços, tentando livrar-se da manopla que o prendia.

— Ah, seu ladrãozinho de merda! Vai me pagar. Vou te levar pra polícia!

— Me deixa, moço, me deixa.

No esforço para se soltar, escorregou de seu ombro o embornal, já quase cheio de jabuticabas colhidas ali do pé. Ao ver o produto do roubo, seu Odorico se distraiu, afrouxou a mão e o garoto — zapt! — se livrou da garra que o prendia. Deixou seu Odorico com o embornal na mão, e numa agilidade própria para garotos, subiu pela taipa, pulou para o outro lado da rua e sumiu na noite.

Odorico ficou ali, parado, estático, sem ação, ante a fuga repentina. Sopesou o embornal, quase cheio de jabuticabas.

— Filho da mãe! Escapuliu...

Subiu para a casa, passando por entre os canteiros. Pensando...

Mas pelo menos, já tenho alguns litros colhidos pra vender amanhã cedo.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 1º. De Outubro de 2010.

Conto # 627 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 12/01/2015
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