826-BRIGA FATAL-Médicos brigam por paciente enquanto este morre.

Personagens

No Carro:

- Roberto: moço de m/m 25 anos. Barbeado, bem penteado, simpático. Dirigindo atento à estrada e ao mesmo tempo ao que se passa no interior do carro.

- Clarisse: moça de 22/23 anos. Bonita, cabelos lisos até os ombros. Veste-se discretamente. Sentada no banco da frente, está agitada, virando-se constantemente para o banco de trás. Demonstra muita angústia.

- Arnaldo: homem de m/m 50 anos, barba de alguns dias por fazer, cabelos despenteados, veste pijama. Senta-se atrás do motorista, encostado de lado, meio deitado no banco. Respira com dificuldade, a mão direita sobre o peito, a esquerda agarrada com força no encosto do banco dianteiro e mostra estar sentindo muita dor.

- Dalva: mulher de meia idade (45/50 anos m/m). Cabelos mal penteados, face sem maquiage, mostrando pressa ao sair. A dor estampada no rosto. Sentada no banco de trás, virada de frente para Arnaldo, passa as mãos sobre o rosto dele.

No Serviço de Pronto Socorro:

- Dr. Gomide: alto, magro, idade entre 35/40 anos, demonstra calma e competência. Medico-chefe do Pronto Socorro. Veste a bata clássica de hospital.

- Jonas enfermeiro do hospital. Jovem, terá no máximo 25 anos. Forte, baixo, atarracado.

- Três mulheres e dois homens de diversos tipos e idade, sentados na sala de recepção, aguardando atendimento.

Na Ambulância:

- Dr. Jaime: Medico jovem, terá uns 28 anos. Estatura média, bem penteado, elegante. Chega na ambulância. Agitado, apressado, irriquieto. Traja roupa branca, calça tênis.

- José, motorista da ambulância. Idade aparente 30 anos. Veste-se de branco. Também mostra-se apressado, ansioso.

Cena 1

Interior do Carro. Câmara gira, passando pelo interior e focalizando cada um dos quatro personagens, à medida que dialogam.

Clarisse – dirigindo-se ao motorista e virando-se para olhar o velho, no banco de trás. –

Vamos. Roberto! Mais rápido! Papai está muito mal!

Roberto — As duas mãos no volante, atendo à estrada e ao painel do carro.

Não dá pra ir mais depressa. Estou no limite. Esse caminhão aí na frente não me deixa ultrapassar.

Arnaldo —a respiração arfante, olhos arregalados, não chega a pronunciar nenhuma palavra. Apenas

(sons cavos de dor e sofrimento).

Dalva — angustiada, ora passa as mãos sobre o rosto e o corpo de Arnaldo, ora junta as mãos, trazendo-as ao rosto, em sinal de oração. Balbucia as palavras.

Ai, meu Deus, não deixa ele sofrer não. Misericórdia...Minha Mãe de Deus, socorre

ele. Ave Maria...

Roberto, mais atento ainda ao tráfego, sem se virar:

Melhor vocês colocarem os cintos de segurança.

Ninguém presta atenção às suas palavras.

Câmara mostra movimentação da estrada, a partir do interior do carro, do ponto de vista do motorista. Passa lentamente sobre o relógio do painel do carro, que mostra a hora: sete horas e vinte minutos. Muitos caminhões, carros, movimento intenso. Depois de alguns minutos, a estrada se abre pela direita, descortinando-se o edifício da Unidade de |Pronto Socorro. Câmara mostra, por trás do ombro de Roberto a movimentação de suas mãos no volante, virando para a direita e indo em direção ao edifico. A aproximação é tranqüila e o motorista encosta o carro ao lado da porta principal, debaixo da marquise.

Roberto se liberta do cinto de segurança, abre a porta do carro, sai e se dirige rápido para a entrada do edifício.

Clarrise também sai do carro e corre para alcançar o irmão.

Depressa, Roberto. Temos de encontrar um médico.

Os dois aproximam-se do balcão de atendimento e dirigem-se à atendente. A câmara passeia pela sala, onde cinco pessoas estão sentadas nas duas fileiras de poltronas, aguardando serem atendidas.

A câmara volta a focar Roberto, Clarissa e a atendente, que já está ao telefone. Na parede, novamente o relógio, marcando 7 horas e 25 minutos.

No carro, Arnaldo respira cada vez mais com dificuldade. Dalva permanece ao seu lado, cada vez mais confusa e desesperada.

Ela olha para a porta do pronto-socorro. A câmara mostra, do ponto de vista de Dalva, uma maca saindo da porta do edifício e vindo para o carro. Além de Roberto e Clarisse, vêm dois homens vestidos de branco: O medico e o enfermeiro.

Dalva abre a porta do carro e sai. A maca é colocada ao lado do carro e agilmente o médico e o enfermeiro retiram Arnaldo do carro, colocando-o deitado sobre a maca.

Com movimentos precisos e rápidos, levam a maca para a sala de espera.

O Médico se dirige a Roberto e Clarisse.

Ele terá de ser atendido no Hospital do Coração. Já chamamos a ambulância, que deve chegar a qualquer momento. Vamos deixá-lo aqui. Será mais fácil para colocá-lo na ambulância, assim que ela chegar.

A maca é encostada num canto da sala. Chega uma enfermeira com um suporte para soro, um envelope com soro, seringa, etc. Aproxima-se da maca e aplica a agulha na veia do braço esquerdo de Arnaldo. Aplicado o soro, examina se está descendo bem e com um olhar para Roberto, Clarisse e Dalva, diz:

Está tudo sob controle. A medicação vai aliviá-lo e o fará dormir. Podem ficar sentados nas poltronas. A ambulância já foi chamada.

Cena 2

Estrada de grande movimento. Um congestionamento de alguns quilômetros, vistos do alto (tomada de helicóptero). A câmara se aproxima sobre uma ambulância, focando-a por trás. Luzes piscam sobre o teto. À medida que a câmara se aproxima, ouve-se o som da sirene da ambulância.

Mostra varias tentativas de sair do engarrafamento, mas não consegue. Aproximando-se a câmara “entra” na ambulância e focaliza os dois tripulantes. O motorista, atento e ansioso, tentando sair do engarrafamento.

O médico, também agitado, olhando para os lados, diz:

Porra, logo agora! Será que tem algum problema na estrada?

O Chofer, sempre tentando sair e voltando à posição anterior, responde:

Agora está desse jeito. Nestas horas de pico, de manhã ou de tarde, é um inferno.

O médico diz, com celular no ouvido, explica:

Estamos indo. A gente entrou sem querer num congestionamento. Estamos perto, no quilômetro 48.

Ouve atentamente por segundos, e responde:

Sei, sei que é urgente. Mas estamos presos. Não temos alternativa...

Com movimento abrupto, fecha o celular. Diz para o motorista:

Vão botar a culpa em nós pela demora... Que merda!

Dá um tapa no painel da ambulância. A câmara dá um close no punho do médico e congela no relógio, que marca 8 horas;

A câmara “sai” do interior da ambulância e vai subindo, mostrando sempre o engarrafamento, que se prolonga pela estrada.

Cena 3

No Pronto Socorro. Roberto, Clarisse e Dalva permanecem de pé ao lado da maca. Arnaldo está de olhos fechados. Dormita e de vez em quando dá fortes respiradas, procurando ar. Câmara da close no envelope do soro, que já está quase no final.

Clarisse ora cruza os braços, ora descruza, leva as mãos ao rosto. Pura ansiedade. Diz, sem se dirigir a ninguém:

O soro está acabando. E essa ambulância que não chega nunca.

Roberto, também mostrando ansiedade mais no olhar do que nos movimentos, diz:

Já faz quase uma hora que estamos aqui.

Ouve-se o som estridente da sirene da ambulância aproximando-se. Há uma movimentação na sala: o médico e o enfermeiro surgem correndo, vindo do interior do edifício. Dirigem-se para a porta. Câmara acompanha os dois e focaliza a ambulância enconstando-se à porta.

Da ambulância saem o medico Dr. Jaime e o motorista José.

Dr. Gomide, medico do hospital, na porta, dá as ordens:

Depressa. Aqui. Enfermeiro, tira o soro, arrasta a maca pra cá.

O Motorista abre a porta traseira da ambulância. O médio Dr. Jaime sai da ambulância com uma prancheta e caneta na mão. Dirige-se ao Dr. Gomide. Adiantando a prancheta e a caneta, ordena ao médico do hospital.

Assina aqui.

Dr. Gomide olha direto para Dr. Jaime. Um ar de surpresa do rosto. Diz:

Você ?

Dr. Jaime mostra um sorriso maroto e responde:

Quem mais poderia ser?

E com voz autoritária, mantendo a prancheta entre os dois:

Assina logo aqui, antes de colocar a maca na ambulância.

Dr. Gomide ignora o médico e se dirige ao enfermeiro do hospital:

Vamos, traga a maca, vamos transferir o paciente...

Dr. Jaime se interpõe entre a ambulância e o Dr. Gomide. Diz, com ar de autoridade e um pouco de gozação:

Antes, sua assinatura aqui na prancheta. Sem ela, nada feito.

Dr. Gomide afasta a prancheta num gesto de aborrecimento. Diz para Jonas, seu auxiliar:

Vamos, Jonas, o paciente não pode esperar.

Dr. Jaime não aceita o movimento do Dr. Gomide. Pega-o pelo pulso e diz, ainda mais sarcastico:

Primeiro, a assinatura...

Dr. Gomide puxa o braço, mas Jaime o segura com força. A prancheta escapa da mão do Dr. Jaime. Dr. Gomide tenta se livrar da garra de Jaime. Diz, com raiva:

Ah, moleque, você continua o mesmo, hein? Não se emendou...

Dr. Jaime desfere um tapa no rosto do dr. Gomide. Mesmo sendo mais baixo, atinge o médico com força. O som do tapa é claro e assusta todos os assistentes.

Dr. Gomide empurra Dr. Jaime. Renato, Clarisse e Dalva estão próximos da maca, d outro lado, e assistem, desesperados, a cena. O Motorista aproxima-se do Dr. Jaime e o enfermeiro do hospital chega perto de Dr. Gomide.

De repente, Dr Jaime avança par Dr. Gomide, esmurrando-o no abdomem.

A cena se enche de movimento. Os dois médicos se atracam em uma briga de socos, tapas e safanões. O enfermeiro e o motorista, pretendendo separa-los, netram na confusão e os quatros se embolam na luta.

Dalva, a esposa do paciente, grita, as mãos desesperadamente apertando seu rosto.

Meu Deus! Que é isso?

Renato e Clarisse parecem petrificados.

Na maca, o paciente, já sem soro, faz um movimento débil.

A luta continua.

Clarisse grita:

Papai! Papai!

A câmara focaliza o rosto do paciente, que exibe um estertor final. O rosto descamba para o lado, a boca semi-aberta. Os olhos fixam-se num ponto indefinido. A respiração cessa.

A câmara sobe e sem deixar de focar a maca, mostra os quatro homens em luta a poucos passos da maca.

Clarisse e Dalva se debruçam sobre a maca, ambas em soluços.

Renato sai do torpor e se dirige para o grupo que começa a se separar. Grita para todos:

Parem de brigar, seus desgraçados! Parem de brigar!

O grito surte efeito. Os homens aprumam-se e procuram se limpar, passando as mãos pelas roupas, cabelos, braços.

As duas mulheres continuam debruçadas sobre o homem deitado na maca. Choram alto.

Renato está irado. Avança para os quatro, parecendo querer brigar com todos.

Grita, com raiva:

Seus filhos da puta! Enquanto vocês brigavam, meu pai morreu!

A câmara vai se afastando, para cima, abrindo em panorâmica: todas as pessoas paradas, petrificadas. Uma brisa farfalha por entre as ramagens de uma árvore frondosa. A luz do teto da ambulância continua piscando. A uns dez metros de distancia e do alto, a câmara congela a imagem.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 30/09/2010

Conto # 626 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Nota: inspirado em noticia de TV: dois médicos entram em luta corporal num Serviço de Atendimento de Emergência, na periferia de São José do Rio Preto(SP), e o paciente morre ao lado da ambulância que o levaria para o Hospital do Coração. Em 29 de setembro de 2010.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 09/01/2015
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