617-A ÚLTIMA CAÇADA-Drama de caçadores
ENCHENTE DAS GOIABAS ou A ÚLTIMA CAÇADA
Lilico aprontou sua tralha de caçada: cartucheira de cano duplo, embornal com munição, uma guaiaca ajustada na cintura, outro embornal com o que comer. A guaiaca, coisa de gaúcho, era larga e tinha pequenas bolsas para guardar canivetes, frascos com arnica, alguns bandeides, essas miudezas de emergência. Também com um coldre, onde enfiou seu Smith-32. No embornal de comidas colocou pães, salaminho, um bom pedaço de queijo meia-cura, uma garrafa de “Tomba-Perna”, e uma térmica com café. E um saquinho com um quilo de sal, para salgar a caça. Facas e tesoura para limpar as aves caçadas.
Estava ainda escuro, cerca de quatro da manhã e o alvorecer iria demorar pelo menos duas horas. A mulher, Evanilda, acordara com sua movimentação na cozinha e o ajudara a passar o café. Colocou uma vasilha com pedaços de bolo de fubá, feito na véspera.
— Sei que você gosta. Leve uns pedaços pro compadre Altamiro.
Despediram-se na porta do alpendre. Em passos decididos, ele caminhou pelas ruas desertas, até à casa de Miro, que já estava esperando.
—’Dia, cumpadre. — disse Lilico. — Tudo em riba?
—Ta tudo nos conforme Acabei de checar o óleo do jipe, os pneus, ta tudo legal. Vamo imbora?
Foram cerca de duas horas no jipe, pela estrada de terra batida.
— Vamo parar no posto do Zé Galo, deixar o jipe lá e subimo a serra. O Jeremias me disse que lá em cima da serra ta fervendo de pomba-rola. E no descampado do Grumião as codorna tão-que-tão. — disse Altamiro, enquanto enfiava o pé no acelerador.
Deixaram o jipe no posto.
—Vortamo aí pelas quatro, cinco hora. — Avisaram ao Zé Galo.
Subiram o morro. O dia clareava, o sol despontava por entre os morros arredondados, típicos da região. Lá embaixo, ainda no escuro, mas já refletindo a luz arroxeada do alvorecer, o Rio Grande corria no leito profundo e rochoso.
Foram por uma ravina, um sulco feito pelas enxurradas e onde cresciam árvores mais desenvolvidas — imbaúbas, principalmente — devido à parca umidade das grotas que se formavam com poças de água das últimas chuvas. Abundavam ali as bromélias e pés de ananás.
Era pelo final de março. Devido a um “inverno” bastante chuvoso, os campos e a morraria estavam verdes. Até as árvores mais enrustidas do cerrado, os pés de barbatimão estavam com brotos novos, que disfarçavam seus troncos corticentos e marrons. As moitas de capim barba-de-bode, viçosas, vestiam um verde esmeralda. Os pés de arnica, que em época de seca vestem a cor cinza, estavam esbranquiçados e claros.
Quando chegaram ao topo da serra, viram lá em baixo as obras da represa, que estava sendo construída.
— Será que vão conseguir domar esse rio, cumpadre?
— Claro. A engenharia hoje ta muito avançada.
Falavam da Represa de Furnas, na época a maior construção para gerar energia elétrica, no Brasil.
Apoitaram numa pequena esplanada, no topo do morro. O capim gordura estava alto, quase batendo nos ombros dos caçadores.
—Cumpadre Lilico, vou fica desta banda, o senhor fica do outro lado, lá naquela moita de imbaúba. Ta bom?
— Danado de bom, Miro. Vamo ficar de costas pro sol, que é pra evitar um fogo cruzado. E a gente vê melhor o vôo das bichinhas.
Não passou muito tempo e os tiros começaram a espocar. Os dois caçadores quase não tinham tempo de remuniciar as armas, e os canos das espingardas esquentaram, de tanto tiro. Caçadores de experiência, não perdiam um alvo. Pelo meio da manhã, já tinham uma boa quantidade de perdizes e algumas pombas-do-ar.
Lilico chegou ao local onde estava Altamiro, carregando mais de vinte aves, amarradas pelos pés.
— Pra mim, ta bão dimais. Vou limpar e salgar as bichinhas.
— Também vou limpar as minhas, respondeu Miro, colocando a espingarda de lado.
Em rápidos movimentos, com facas afiadas e as tesouras, foram limpando as aves, tirando as penas e as víceras, e passando um pouco de sal, para conservar a carne.
Algumas nuvens, vindas do leste, toldaram o céu. Nuvens pesadas, prenhes de chuva.
—Cumpadre, num tou gostando de ficar aqui em riba. Vamo apressar e descer logo.
Apressaram-se, eram quase cincoenta aves, e o tempo ia escurecendo. Um ventinho frio começou a soprar. Ouviram trovões ao longe.
—Lá vem o temporal. E nóis aqui em cima...
Ajuntaram a tralha mais as aves que colocaram em sacos de couro macio. Desceram pela mesma ravina. A chuva começou fina, mas logo deu de engrossar. Raios começaram a coriscar e os trovões ribombavam pela serraria.
—Vamo cumpadre, animava Miro, que vinha depois de Lilico.
A descida era mais difícil do que a subida. A chuva tornava escorregadia as pedras do leito e nas poças d'água,
A região é uma morraria típica do cerrado: o solo é pedregosos, a infiltração da água é nenhuma. A água da chuva (poucas são as minas) escorre rapidamente e vai para as ravinas, que são estreitas e logo se enchem, formando regatos que se engrossa em córregos e riachos. E deságuam no Rio Grande, lá em baixo.
O temporal desabou repentinamente. As últimas chuvas da época são violentas.
— Puxa, que toró!
— Parece tromba-dágua!
Desciam como podiam, escorregando aqui, tropeçando ali. A chuva fustigando. Tão forte que a visão dos caçadores ficou restrita a poucos metros.
— Cumpadre, temo que sair daqui. Logo esta grota vai ta cheia! — Gritou Miro.
Bem que tentaram, A subida pelos barrancos da ravina era difícil, tinham de se agarrar na plantas, pequenas árvores, que, de raízes quase à flor do solo pedregoso, acabavam sendo arrancadas e não serviam de amparo.
No topo da serra a água caia em pancadas fortes e grossas. A água ajuntava-se nas ravinas em volume incalculável, e descia pelas grotas, arrastando tudo. As poças d´água se enchiam, transbordavam e a aumentava a correnteza. Agora não era mais um filete de água mas, sim, um caudal de força irresistível. Arrastando tudo pela frente.
Os caçadores não conseguiram se alçar para fora da ravina onde estavam. Foram pegos pela correnteza em toda a sua força. Arrastados inexoravelmente para baixo, atirados contra as margens pedregosas, não tiveram como se safar.
Passada meia hora, a tempestade amainou, as nuvens se afastaram, sempre indo de leste para o oeste. Um arco-íris pode ser visto, de encontro ao escuro das nuvens. A torrente acabou, e pela ravina apenas um filete de água límpida voltou a correr, com preguiça.
O sol reapareceu: quente e luminoso, delineando a paisagem, brilhando na folhagem das imbaúbas e no capim rasteiro.
O Rio Grande corria como sempre. Não era uma tempestade localizada, como essas conhecidas como “enchentes das goiabas”, que alteraria sua correnteza. Mas pelas águas que desceram com violência da ravina naquela manhã, veio uma estranha maromba, que deslizava agora tranquilamente pela superfície: uma confusão de galhos, espingardas e sacos de caçadores e dois corpos de homens entrelaçados.
Antonio Gobbo
Belo Horizonte, 19 de agosto de 2010-
Conto # 617 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS