616-HABILIDADES DE UM ARTISTA- Notas Biográficas/Pedro Gobbo
Notas biográficas de Pedro Gobbo, meu pai.
Marceneiro de múltiplas habilidades, o passatempo predileto de Pedro era fazer brinquedos para os filhos, Antonio e Arthur.
Os primeiros pedidos ao Papai Noel foram (talvez induzidos por ele mesmo ou pela mãe dos garotos), foram carrinhos de madeira. Arthur gostava de caminhões e graças ao seu pedido, dois pequenos caminhões apareceram onde os sapatinhos tinham sido colocados. Os meninos ainda eram infantis, com quatro e cinco anos e maravilharam-se com os brindes.
Naquela época e na família, os presentes eram apenas por ocasião de aniversário e no Natal. Nos aniversários, não havia escolha, ganhava-se o que viesse, e eram um ou dois no máximo: dos pais, do padrinho ou da madrinha, e só.
Os brinquedos de madeira — pequenos caminhões, caixas para guardar badulaques ou miniaturas de casas e edifícios — eram coisas que o marceneiro habilidoso fazia com facilidade e constantemente,
Mas estava sempre bolando algum brinquedo diferente para os filhos. E não apenas de madeira, não. Certa ocasião fez um brinquedo engenhoso, uma hélice voadora. A hélice, com um furo em forma de oito, era colocada numa espiral de arame, e impulsionada por um anel, saía da espiral voando e atingia uma altura de uns quatro ou 5 metros. Foi um sucesso entre os amiguinhos e logo todos queriam ter uma, e lá foi o hábil marceneiro fazer mais hélices voadoras.
Outra coisa interessante, que não era propriamente brinquedo, consistia em fazer objetos geométricos de cartolina: caixinhas em forma de cubos, cones, pirâmides, sextavadas ou pentagonais. Usava formões muito finos e afiadíssimos, e seus cortes e dobradura eram perfeitos.
Talvez para variar de atividade, ou porque talvez os serviços de marcenaria tivessem com pouca demanda, ele, por vezes, enveredava por outras criatividades.
Numa época, passou a fazer quebra-luzes de chifres de bois e vacas, abatidos no matadouro municipal. Pedro era rigoroso e as suas exigências começavam pela escolha dos chifres: tinham de ser grandes e não podiam ser rachados. Ele mesmo ia ao matadouro para escolher os melhores chifres. Levava um serrote apropriado (tinha ferramentas para todo tipo de serviço) e, com a anuência dos açougueiros, cortava os maiores chifres. Em casa, colocava os chifres em água quente a fim de retirar a massa interna e amolecer as extremidades, que eram cortadas para formarem pássaros exóticos. Os pés e as asas eram a parte larga do chifre, cortada e moldada. A ponta do chifre constituía o bico, e nas proximidades ele entalhava os olhos do pássaro. Na parte interna afixava um bocal para lâmpada e os pés eram afixados numa base de madeira. Pintado de preto e envernizado, o chifre se transformava num exótico pássaro que servia como abajur. Por mais esquisito que fosse a peça, era original e bem acaba: lixada, envernizada e com os olhos deixando passar claridade, além do foco principal que era pela parte de traz, pela cauda estilizada. Um pássaro-preto de olhos luminescentes. E, apesar de bizarra — ou, talvez por isso mesmo — vendia bastante iluminárias.
Em outra ocasião passou a fazer porta retratos de bambu. De uma qualidade especial de bambu amarelo com estrias verdes. Serrava os segmentos entre os gomos, fazia uma canaleta suficiente para passar duas lâminas de vidro fino, cortadas em tamanhos próprios para retratos; afixava as duas colunas de bambu em uma base de madeira e eis o porta retrato pronto. A foto era inserida entre as duas lâminas de vidro. Também muito bem polida e envernizada, a peça era elegante e vendia bem.
Caixas de madeira, com segredo para esconder a chave, eram feitas com freqüência. Para seu uso havia feito uma especial, cheia de reentrâncias, e sob uma delas ficava escondida a chave. Apenas ele sabia, mais pelo tato do que pela visão, onde encontrar a chave.
Para a quermesse da festa de Nossa Senhora da Abadia, realizada anualmente no alto da Mocoquinha, fez uma curiosa escultura de madeira, de motivo religioso: um coração flamante atravessado por uma cruz. Representaria a Fé e a Esperança. Além da beleza do objeto, havia também um acesso oculto para o interior do coração, que era oco e poderia servir para guardar terços, medalhas ou outros pequenos objetos.
No dia do leilão muitas pessoas foram especialmente para arrematar aquela prenda, que alcançou um valor bastante alto.
Pedro fazia vinho de laranja todos os anos. Descascar e amassar as laranjas para obter o mosto era tarefa da família toda, durante as noites de uma semana. Pedro imaginou e construiu uma engenhoca que dispensava descascar as laranjas, bastando apenas lavá-las e cortá-las ao meio. O espremedor era eficiente para extrair todo o caldo. Em uma época em que não existiam artefatos hoje conhecido como eletros-domésticos, a invenção foi exitosa e até o gerente da companhia de eletricidade, doutor Hermann, homem viajado no exterior, elogiou a invenção.
As máquinas para marcenaria eram, de moro geral, caras e de difícil aquisição, nas décadas de 1930 e 1940. O marceneiro comprava motores e peças usadas de metal, mancais e eixos, e construía ele mesmo as máquinas para sua oficina: serra de fita, lixadeira, serra circular, entre outras.
Idealizou e construiu um acessório para máquina furadeira, que fazia os furos em posição oblíqua, fora do esquadro, para venezianas. Um trabalho que nenhum marceneiro ou carpinteiro gostava de fazer e que ele, com sua engenhoca, “tirava de letra”. Ainda no setor de carpintaria, bolou uma maquina para fazer tacos de madeira, que usou para fazer os tacos de as casa, em uma grande reforma no ano de 1953. .
O seu prazer maior estava nos entalhes em madeira: frontões, apliques para almofadas de portas ou molduras para quadros adornados com folhas de louro estilizadas.
Um grande desafio de sua profissão foi a construção da casa do doutor Pedro Amaral. Todo o trabalho em madeira foi feito por ele, desde o engradamento até os tacos para o piso, e os móveis: sala de jantar, sala de estar (com magnífica radiola), móveis para o escritório (o cliente era advogado), copa e quartos. Tudo feito em madeira de lei, maciça, entalhes por todos os lados.
Mais do que um desafio, foi um quase que uma aposta, pois, o carpinteiro oficial para todas as casas mais importantes da cidade disse que ele, Pedro, não teria capacidade de fazer o engradamento—caibros, ripas e suportes para o telhado—da casa.
Em pagamento de uma promessa, Pedro fez o altar para a capela do orfanato da cidade. Fez tudo sozinho, desde a mesa do sacrifício até as mais elaboradas formas do altar. A madeira, trabalhada por suas mãos, ora tomava forma de nuvens, elevando-se na direção do teto da capela, pintado de azul e figurando o céu: ora eram alegorias de anjos e seres celestiais entremeavam as nuvens, de onde, assentada sobre uma plataforma invisível, ascendia a imagem de Nossa Senhora.
Esta foi sua obra prima. (1)
Profissional competente e artista de mão cheia, era, acima de tudo, muito modesto. Recebia os elogios com um sorriso e dizia:
— Não sou nada mais do que uma ferramenta nas mãos de Deus. E quando a ferramenta é boa, metade do serviço já está feita.
(1): Ver o conto # 399 – A Promessa -
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 17 de agosto de 2010
Conto # 616 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS