A Lenda de Odnum
Nenhum lugar dentre todos os lugares dos quais alguém já ouvira falar algum dia, era tão lindo, encantado e sublime quanto Odnum. Em todas as esferas comentava-se e conhecia-se a “Lenda de Odnum”. A linda história de um amor puro que nascera entre Oluá e Alerí, dois anjos criados para dividir uma vida de sonhos realizados.
Naquela noite, como em todas as outras, Alerí esperava seu amado, sentada no Jardim das Orquídeas a brincar com seus cachos, como era de costume seu.
“Quando pousei em Oluá os meus olhos, mesmo após incontáveis encontros, tantas horas juntos, quando eu, naquela noite, pousei nele os meus olhos senti-me arremessada numa emoção desconhecida. E era uma mescla de amor, de medo, e ao tempo em que eu sorria, apertava a mão de encontro ao peito para controlar o pranto que se formava dentro de mim. E assim, sem nada entender, percebi naquele momento que eu era capaz de amar mais do que todas as noites passadas e as que ainda estavam por vir. Foi quando olhei para o céu e pedi ao Criador que não te tirasse de mim, que não levasse embora o seu amor. E ali, naquele jardim nosso que de tanto nos servir de leito já guardava em suas folhas o cheiro do nosso amor, deitamos.
A noite tinha outro encanto, tudo tinha nova forma, nova cor, haviam mais estrelas no céu do que o de costume, eu era mais eu e o nosso amor tomara conta de tudo.
Na medida em que você me invadia, meu corpo entrava num estado de sensibilidade onde eu conseguia ouvir a velocidade do sangue que corria dentro de você, te tornando tão vivo. Acompanhei o eriçar de todos os pêlos que me cobrem a pele, um a um, cada centímetro de meu corpo que era percorrido por tuas doces mãos, cada sussurro eterno em meus ouvidos, cada gota de suor formada pelo movimento acelerado de nossos hormônios em ebulição.
Quando teus olhos descansaram nos meus, morri pra renascer perfeita, a mais perfeita fêmea, somente para ser sua, para sempre sua. Naquele seu olhar eu encontrei tudo o que precisava para viver uma felicidade plena.
Como posso gerar tanto amor, Deus? E que amor é esse que me torna parte do todo, que ao mesmo tempo em que me faz estrela, torna-me também grão de areia, grito do mar, melodia de final de tarde.
Seus olhos deitados nos meus formam a imagem que eu escolhi para ornamentar todos os espaços da minha vida. E que o Criador nunca te tire de mim.
Ao pensar nessa possibilidade, o amor que latejava em mim explodiu no choro intenso de duas lágrimas que escorreram de uma nascente imorredoura e foram contidas pela indescritível sensação do toque da tua boca na minha.
Teu beijo levou-me ao fio da loucura, onde eu já não conhecia a dimensão de nada mais , onde deixei de ser um corpo com uma alma e passei a ser uma alma com um corpo, onde tudo ao meu redor tornou-se nós.
Cravei minhas unhas em tuas costas na hora em que você, dentro de mim, num silêncio absoluto de palavras, disse ser meu todo o amor que havia em você. Nenhuma palavra ousou quebrar aquele diálogo de almas que se uniam num amor tão profundo, tão puro e tão lindo que fez despertar a maldade da inveja de seres que, por não conseguirem alcançar o nosso patamar, por não saberem amar, lançaram sobre nós o ressaibo de seus corações ocos. E arrancaram você de mim, friamente arrancaram você de mim. Quando eu mais te amava, bem no momento em que eu não cabia mais em mim de tanto amor, eles te levaram de mim. E só então eu pude entender o porquê de ter sido esta, uma noite diferente de todas as outras, onde embora tudo continuasse sendo o que era, era tudo mais intenso.
Na há como descrever o teu olhar enquanto a distância se fazia entre nós. E eu, sozinha, chorei.
Chorei ininterruptamente todos os milésimos de segundos seguintes, todos os longos anos. E essa noite tornou-se eterna e eu não mais vi a luz do sol a trazer um novo dia. Estava condenada a viver para sempre a noite mais linda e mais triste de minha vida, a noite em que mais amei e que mais sofri.
E tantas foram as minhas lágrimas que formou-se no mundo inferior, um oceano cheio desse pranto de dor. E nesse oceano nasceu uma criatura tão cruel, tão amarga e tão sofrida quanto as lágrimas que lhe serviam de lar. Quantas presas avistasse, devorava-as. Quantas embarcações destruídas! Quantas vidas desfeitas diante desses olhos mortos onde um véu de ódio escondia sentimentos dolorosos. O mar da morte era a moradia do ser que levava dor a quem dele se aproximasse.
De tanto que chorei a revolta de perder o amor que um dia deu-me a vida, tornei-me seca e vi a minha dor crescer a cada dia e ocupar o lugar da esperança de te reencontrar. A essa altura já não havia motivos para que eu ocupasse a condição de “ser de luz”. Eu já não era mais o anjo Alerí, a menina doce e sorridente. Eu não mais sorria. E com minha dor, com a dor que a mim pertencia, criara o habitat que dera vida a uma criatura que levava o meu desespero a tantas outras pessoas.
Como punição por minha fraqueza fui expulsa de Odnum e arremessada no inferno de águas que saíram de mim, e eu já nem sabia se o que eu sentia era dor, medo ou angustia, porque eu já não sentia a mim mesma, eu já não era nada.
Foi nesse estado de inferioridade que eu adentrei o mundo dos mortais e nesse choque voltei a sentir sensações, porém, agora eram pesados os sentimentos, sufocantes, maltratavam-me. Senti meu corpo submergir no oceano do pranto meu e tive o desprazer de, mais uma vez, sentir cada milímetro de toda dor que me tomara naquela dúbia noite, naquela noite que não deixou o sol voltar para minha alma.
A temível criatura sentiu o cheiro da presa e disparou em minha direção. Eu não temi a morte, porque qualquer coisa seria menos dolorosa do que aquela noite sem fim, aquela agonia que me acorrentava à escuridão. Na medida em que a criatura se aproximava, meu coração batia numa velocidade mais avançada e reminiscências ameaçavam lançar-me de vez no abismo da loucura. Uma mescla de medo, alívio e angustia faziam renascer a fonte de lágrimas que há pouco secara.
Quando os olhos vermelhos do temível ser se puseram nos meus, morri por um segundo. Faltou-me tudo: ar, pulso, memória.
Acordei a soluçar, a transpirar, levei a mão ao peito que queria fugir de tão acelerado. Quase louca olhei para o lado e totalmente louca pus-me a chorar, a sorrir, a rezar. Você estava ali, dormindo, na sua sublime condição de anjo.
A luz do dia veio encontrar-me ajoelhada ao teu lado, acompanhando tua respiração e agradecendo a Deus pelo teu amor. E foi aí, que o sol apontou para o teu corpo e eu não pude conter um grito de terror. Estava marcado em sua pele o retrato da temível criatura do oceano da minha dor.
- Alerí, meu amor – disse você ao acordar assustado com o meu grito – o que houve?
- Eu... eu... – gaguejei apontando para o desenho.
- Calma meu amor. Veja! – explicou Oluá levando minha mão ao desenho que já me era tão familiar – Eu tive um sonho estranho – continuou ele – onde o nosso medo de perder um ao outro e uma certa falta de confiança na Providência Divina, ocasionou a nossa separação – eu não continha as minhas lágrimas – e sua dor, Alerí, gerava o habitat para a minha dor e eu me afastara de você e me transformara num tubarão, senhor absoluto do oceano da morte e que escondia atrás de minha forma, um amor lindo que é todo seu, mas que eu havia perdido.
- Eu marquei essa imagem no meu corpo, minha doce Alerí, para que nunca, nem por um piscar de olhos, nem por uma fração de segundo, esqueçamos de que por mais dolorosa e difícil que venha a ser tudo o que há em nossa volta, Deus, através do nosso amor, nos fará sempre fortes para rebuscar os nossos sonhos ainda que esses se encontrem mergulhados no oceano de nossas dores.
- Meu doce anjo – continuou Oluá, com sua ternura tão bela – em vez de pedir a Deus para não deixar acabar o nosso amor, lembremos de agradecer a Ele por esta oportunidade tão linda de termos nos encontrado e tornado eterno esse tempo que compartilhamos.
- Oluá – disse eu envolvida na doce sensação dessa manhã que nascia – eu amo você e esse amor estará para sempre guardado entre as mãos de Deus.”
Clara fechou o livro com os olhos marejados. Esses contos eram para ela a certeza de que o amor no qual ela acreditava haveria de existir, um amor puro, singelo, um amor maior do que tudo, maior do que a dor, ou a dúvida, um amor capaz de fazê-la viver todos os sonhos que encontrava nas suas leituras. Imersa nesses sentimentos Clara adormeceu, ali mesmo, encostada numa árvore, no Parque de sua cidadezinha.
- Moça! Psiu! Moça!
Clara acordou atordoada com a voz que lhe chamava.
- Que horas são, por favor? – perguntava um rapaz de beleza única e voz melodiosa, olhos cheios de vida e sorriso largo, pele clara, cabelos negros.
- Seis horas! São seis horas! – respondeu a moça, encantada.
- Obrigada! É... Qual é mesmo seu nome? – perguntou ele.
- Meu nome? – titubeou ela – Clara, meu nome é Clara.
- Clara! – repetiu o rapaz expondo duas fileiras de dentes alvos – você tem nome de anjo!
Ao dizer isso o rapaz com a camisa no ombro, retomou sua bicicleta e seguiu a praticar seu esporte e Clara, nessa hora, levou a mão ao peito como que para segurar o coração que batia forte de susto.
Ele tinha tatuado no corpo a imagem do tubarão, senhor absoluto do oceano, o tubarão que um dia fora Oluá, o eterno amor de Alerí.