614-APROVEITANDO A MARÉ- Outra História de Imigrantes Italianos
APROVEITANDO A MARÉ
OU
A ESTRADA DE FERRO
— Não quero que a ferrovia passe por minhas terras! E ponto final!
O comendador Josino Fagundes saiu pisando duro da sala do Clube Central, onde os mandachuvas da cidade estavam reunidos com o engenheiro Lacerda para a finalização dos acordos a fim de permitir a construção na Estrada de Ferro São-Paulo-e-Minas.
— O comendador é teimoso como uma mula, disse o prefeito. — Quando embirra, não tem cristão que o convença.
— E a mudança do traçado é quase impossível. Aquela planície ao longo do rio Manso é o ideal para a colocação dos trilhos. E pertence ao comendador. — disse Lacerda.
Entre os que participavam da reunião estava o italiano Giuseppe Pergamino, um dos menores proprietários de terras cujo percurso da futura estrada de ferro atravessaria.
Imigrante das levas de italianos que chegaram à região da Alta Mogiana na década de 1880, “cavou a América” e comprou um pedaço de terra. Não era muito, mas ele se engraçara com a situação do sítio, que estava também às margens do rio Manso e confrontava com o latifúndio do comendador Josino.
Plantou café em uma parte da propriedade e deixou intocada a mata, que cobria mais da metade do sítio. Não foram poucas as dificuldades que tivera com o vizinho. A estrada que dava acesso ao sítio “Nova Toscana” passava pela fazenda do comendador, era uma servidão definitiva, mas ainda assim, o comendador criava dificuldades no trânsito do italiano pela estrada. Houve um ano em que a colheita de café fora além da expectativa e Pergamino teve de enviar as sacas do café seco para Altinópolis, a fim de ser beneficiado. O comendador criou caso, uma ponte (localizada no trecho em que a estrada de terra passava pela Fazenda Solidão) caiu e o comendador fez de tudo para atrasar a reconstrução da ponte.
—Conheço bem as manhas e o poder desse comendador. — Disse Pergamino, na reunião. — Mas entendo que, se todos concordarmos com a construção da ferrovia e cedermos as terras que forem necessárias, ele acabará mudando de idéia. Vai ceder também.
— Isto é verdade! Vamos nos unir! — Falaram alguns.
— Sim, disse o engenheiro, de ele ficar isolado, contra a ferrovia, será mais fácil para nós vencermos sua resistência.
A reunião foi encerrada e todos, menos o italiano, saíram. Na sala permaneceram Giuseppe Pergamino e o engenheiro Lacerda.
— Quero dar um dedo de prosa com o senhor, doutor Lacerda. — falou o italiano.
— Pois não, seu Pergamino. Podemos conversar aqui mesmo? — respondeu o engenheiro.
— É sobre a construção da estrada-de-ferro. Pelo que sei, haverá grande necessidade de madeira. Os dormentes, lenha para as locomotivas e construções das estações.
— Sim, é claro. Vamos precisar de milhares de dormentesà lenha, nem sei o quanto as locomotivas irão consumir.
— Como o senhor sabe, já esteve nas minhas terras, tenho uma reserva de mata com muita madeira.
— É, vi a mata. Mas a ferrovia irá passar na parte plana, ao longo do rio. Sua mata ficará intocada. Não se preocupe, signor Pergamino.
— O que quero dizer é outra coisa. Quero fornecer dormentes para a estrada de ferro.
— Ah! Muito bem. Mas esta é uma proposta que deve ser levada para a diretoria, não tenho autorização para...
— Vá bene. Converse com os homens. Minha proposta é a seguinte: quero fornecer TODOS os dormentes, com exclusividade.
O engenheiro levantou as sobrancelhas, passou a mão direita pelo bigode e escondeu um sorriso.
— O senhor tem idéia do que está propondo? Acho que na sua matinha não tem tanta madeira assim.
— Claro que lá não tem a madeira pra todos os dormentes. Talvez para a metade. Mas quero a exclusividade. Todos os dormentes serão fornecidos por mim. Ou ficarei do lado do comendador...
— Mas é uma proposta e tanto. Como pretende fornecer?
— Posso fornecer, sim. Conheço como ninguém essas matas aqui das redondezas. Tem madeira que não acaba mais. E conheço os donos. Então, poderei cumprir o trato com a São-Paulo-e-Minas.
— Mas os dormentes são peças trabalhadas, tem de ser serradas na medida certa...
— Sei de tudo isto. Já fiz as contas. Só quero a exclusividade. Garanto que forneço todos no tempo que for determinado.
— Bem, a sua proposta merece atenção. Vou levá-la para os diretores estudarem.
Carlos Pergamino obteve o contrato para o fornecimento de dormentes. A construtora concedeu a exclusividade e ele não perdeu tempo nas providências. Antes mesmo que os contratos de cessão de terras estivessem concluídos, o dinâmico italiano mandou vir de Campinas serras, motores, polias, mancais, eixos, enfim tudo o que necessitava para a instalação de uma serraria. Pequena no início, é verdade.
Contratou um carpinteiro patrício para montar a serraria. Comprou um novo carro de boi e cinco juntas de bois carreteiros. Mandou abrir a picada que se adentrou pela mata. Conforme ia cortando as árvores maiores, a picada avançava. Sob orientação de outro engenheiro da estrada-de-ferro, cortou as toras na medida para fazer os dormentes.
O sítio transformou-se numa serraria. Aos poucos, de acordo com a necessidade, Giuseppe foi contratando mais pessoas para os trabalhos e as pilhas de dormentes começaram a subir no terreiro de café, transformado em pátio da serraria.
Antecipando-se ao início da ferrovia, um lote de 1.000 dormentes, o primeiro deles, já estava empilhado na “Nova Toscana, quando foi requisitado pela ferrovia.
O engenheiro Lacerda era um dos entusiastas do trabalho de Giuseppe. Visitava frequentemente a serraria e dava opiniões e informações a respeito da necessidade de madeira para a ferrovia.
— O cumprimento da ferrovia será de aproximadamente 90 quilômetros. — Ele disse a Giuseppe. — Serão necessários aproximadamente 100.000 dormentes.
Sabia que sua mata não tinha árvores para todos os dormentes. Afável e bom em negociar, Giuseppe adquiriu o direito de tirar madeira em fazendas de dois outros grandes proprietários. Com o comendador Josino, entretanto, nada conseguira. O homem, além de turrão, era derrotista e vivia preconizando o fracasso da ferrovia. Não mudou de opinião nem mesmo quando a ferrovia conseguiu, judicialmente, o direito de usar o trecho da fazenda “Solidão” para a colocação dos trilhos.
Em menos de seis meses, Giuseppe foi obrigado a aumentar a serraria, pois os trilhos eram assentados cada vez mais depressa. Quando os trilhos chegaram à Nova Toscana, e a ultrapassaram, a madeira cortada era embarcada nos vagões. Rumo à extremidade da estrada em construção.
Não tinha dinheiro para comprar um caminhão, por isso contratou com Sebastião Leria o transporte das toras, que já estavam sendo cortadas na mata da fazenda Palmeiras, a uns dez quilômetros da serraria.
Teve de construir algumas casas para abrigar empregados, barracões, e uma nova casa para sua família, dentro do sítio, mas um pouco afastada dos barracões e do setor de manobras das madeiras.
O antigo sítio de café transformou-se completamente numa serraria, com ponto de parada do trem de ferro para embarque dos dormentes.
O fornecimento de lenha para as locomotivas foi outra fonte de renda apreciável para Giuseppe. A demanda era grande, e na Nova Toscana havia pilhas e pilhas de lenha empilhada rente aos trilhos, de tal forma que muitos vagões saiam cheio de lenha para serem colocados estrategicamente em pontos de reabastecimento.
Giuseppe fez fortuna com o negócio de dormentes. A construção da ferrovia durou dois anos, e todos os dormentes saíram da Nova Toscana, que, não sendo estação oficial da ferrovia, era ponto de parada dos trens de carga.
Não deixou as terras, que distavam uns dez quilômetros da cidade mais próxima, Cafezal Verde. A casa que construíra era confortável e usava a ferrovia para o transporte de tudo o que precisava, e mesmo para as viagens do pessoal que trabalhava na serraria.
A prosperidade chegara de modo definitivo para Giuseppe Pergamino. Foi homenageado na inauguração da estação da ferrovia em Cafezal Verde e recebeu os cumprimentos do presidente do empreendimento.
Na fazenda Solidão, o comendador Josino Fagundes foi ficando cada vez mais amargurado, pois jamais dera o consentimento. A ferrovia passava por suas terras devido a um decreto do governador do estado, de desapropriação da faixa necessária à construção. Dizem que nunca viu uma locomotiva passando por suas terras.
Adoeceu e morreu no esquecimento. Dizem que foi de desgosto. Ninguém na cidade e na região ficou sabendo a causa de tanta ojeriza pela estrada-de-ferro.
Ninguém, exceto seu filho, que se lembrava bem quando...
Bem, mas isto é outra história, que um dia, — quem sabe? — será contada aqui.
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 27 de julho de 2010
Conto # 614 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS