613-A ITÁLIA É UMA BOTA-Uma Reunião de Velhos Italianos

Os velhos italianos reuniam-se, com numa assembléia, todas as manhãs na casa comercial de meu tio-avô, Francisco Cúrcio, para discutirem o desenvolvimento da história na Europa. A década de 1940 começara sob o signo de Marte. As forças do mal haviam sido desencadeadas por Hitler e os vizinhos da grande loja se preocupavam com os acontecimentos no continente do qual havia saído há mais de meio século.

A loja era um lugar propício para a reunião: com quatro portas abertas para a rua, tinha um estoque variado de “secos e molhados”, ferragens, tecidos, armarinhos, enfim, de tudo um pouco para atender os fregueses da cidade, na maioria os vizinhos, e grande número de pequenos sitiantes, na maioria imigrantes ou seus filhos, já que a formação da cidade e do município devia-se em grande parte às centenas de famílias de imigrantes italianos e austríacas que haviam vindo para “fazer a América”.

A disposição das mercadorias era a usual na época: um balcão de madeira separava o dono da loja e os atendentes (quando havia) dos fregueses. Para estes, havia espaço bastante para se movimentarem, entre as portas de duas folhas e o balcão. Nessa parte externa eram colocadas as sacas de cereais: arroz, feijão, milho e de macarrão a granel.

Sobre o balcão estavam as vitrines, pequenos armários de madeira e vidro, para mercadoria miúda: uma á esquerda, com material escolar: lápis, borrachas, cadernos, vidros de tinta, canetas e penas. No centro, a vitrine de doces e chocolates, o encanto da garotada. E à direita, no outro lado do balcão, a vitrine de armarinhos: linhas, retrós, agulhas, botões e miudezas para costureiras.

Um vão no balcão, sob o tampo, telado, era usado para expor as bananas, única fruta vendida na loja.

Á direita de quem entrava, havia um banco de madeira, encostado na parede, e duas cadeiras. Era o canto em que se sentava a meia dúzia de velhos imigrantes. Chegavam cedo, quando o empório era aberto, por volta de sete da manhã.

O proprietário, conhecido por Chico Cervejeiro, recebia todos afavelmente. De muito boa índole, bem humorado e com certo conhecimento dos fatos ligados à Itália, à Alemanha e à guerra que se desenvolvia no velho continente. Mostrava aos amigos exemplares do jornal “Fanfula”, editado em São Paulo, em italiano, e que chegava com atraso de dois ou três dias.

Apenas Tio Gordo (era assim que nós, os sobrinho-netos, o chamávamos, devido à sua enorme pança) e o velho Scandemberg (austríaco, residente defronte a loja) sabiam ler. Os demais haviam perdido contato com a língua pátria e não haviam aprendido direito falar o idioma da terra que os adotara. Os mais frequentes eram Vitório Storni, Humberto Cardoni, Romano Malaparte e Hugo Infante, todos moradores no mesmo quarteirão da rua. De vez em quando chegavam Ivo Spina, Nicola Novelino ou Alberto Guasco, que moravam na Mocoquinha, bairro próximo, e que aproveitavam para comprar fumo, papel para cigarros ou alguma ferramenta.

Todos davam palpites sobre a guerra. Hitler era, para eles, um poderoso governante que havia tirado a Alemanha da miséria e Mussolini um grande e inteligente comandante, que também havia soerguido a Itália, após a derrota da primeira guerra mundial.

Falavam uma língua estranha, mistura de italiano e português, gesticulando e muitas vezes,levantando-se para enfatizar as opiniões, algumas vezes pareciam estar brigando entre eles.

— Questa guerra é uma caixa de Pandora, gostava de repetir Scandemberg, que tinha muitos livros numa estante de portas de vidro na sala de visitas de sua casa. — Nessuno sai quando finirá.

Francisco passava da parte interna do balcão para o lado de fora e se reunia grupo. Era ágil, apesar da imensa barriga. Sentava-se no banco e arregaçava a calça até acima do joelho esquerdo, e começava a explicação das tropas.

— A Itália è cosi uma bota! — E passando o dedo gordo pela canela, por finas estrias azuladas da barriga da perna, subia até o joelho, parando em diversos lugares (qui é Roma, questo é il rio Pó...) e mostrando aos amigos o que havia lido no jornal.

Scandemberg, que também era o mais instruído (relojoeiro, tocava violino e escrevia cartas, a pedido dos patrícios iletrados, para os parentes na Áustria), entrava amiúde na exposição de Francisco, para ajudar ou, na mais das vezes, para corrigir a explicação.

— Ora mai, Il Duce está certo, la alianza com a Alemanha é invencíbile.

As mãos de todos iam e vinham, os dedos colocados nas pequenas varizes da perna de Francisco, e as perguntas e opiniões eram feitas em altas vozes. Muitas vezes tinha-se a impressão que estavam brigando.

Era assim que discutiam e às vezes encontravam soluções para a grave situazione internazionale.

Aí pelas dez horas Scandemberg, que mantinha ascendência sobre o grupo, sacava seu “patacão” do bolso do colete, preso por uma corrente de ouro, olhava as horas e dizia, como uma ordem:

=Bene, andiamo a mangiare.

Os velhos italianos se dispersavam em paz.

O Brasil permanecia neutro, não tomara partido na guerra, mas os velhos italianos tinham simpatia por Mussolini, Il Duce, que, segundo eles, havia modernizado a Itália e transformada de novo em potencia mundial.

Quando a Itália invadiu a Abissínia, entusiasmados, deram “Vivas!” de alegria.

Alegria que durou pouco.

Antes mesmo de o Brasil declarar guerra à Alemanha e à Itália, um órgão do governo de Getúlio Vargas, o Departamento de Imprensa e Propaganda — conhecido como DIP — começou a incomodar os velhos imigrantes.

Fanfula, jornal editado em São Paulo em italiano foi fechado,cortando-se, assim, o veículo de informação, das notícias da guerra. A Societá Italiana cuja atividade considerada subversiva era proporcionar bailes à “colônia italiana” no último domingo de cada mês, também foi fechada.

O delegado de polícia, o pacato José Martins, alto, magro e de fala mansa, ex-professor do Ginásio Municipal, apareceu no empório certa manhã com o aviso:

— Vocês me desculpem, mas recebi ordens do governo. Não podem mais reunir aqui nem em qualquer lugar, para discutir assuntos da guerra.

— Ma, pelo meno possiamo conversare...? — indagou um dos presentes.

— Não. Não podem mais se reunir. Se reunirem três ou mais, terei de prendê-los. Sinto muito, é da lei.

Tio Gordo se aborreceu. Espírito independente, que “fizera a América” por seu próprio esforço, que não tinha hora para abrir nem fechar sua loja, respondeu ao delegado naquele momento:

— Domani non abro questa porcheria.

E não abriu. Nunca mais comerciou. Não liquidou o estoque de mercadorias e não se preocupou com o resto do mundo. Foi cuidar de sua horta, no quintal da casa, onde nem guerra, nem o DIP nem a lei poderiam cercear sua liberdade.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 26 de julho de 2010

Conto # 613 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 30/12/2014
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