Os Reprovados

Segunda série B, andar térreo, último pavilhão do Colégio Estadual Coronel Cid Gonzaga (Nota do autor: O Colégio Estadual Coronel Cid Gonzaga mudou de nome, e até onde sei, atualmente chama-se Escola de Educação Básica Cel. Cid Gonzaga, por algum incógnito motivo tão afrescalhado quanto o novo nome.) . De um total de trinta crianças, nós havíamos sobrados; um total de doze ou quinze, não lembro direito. Era o grande momento da entrega de boletins dos recuperandos (Nota do autor: essa expressão, "recuperandos" não existe, na falta de mais apropriada, essa fica). Era como se houvesse uma guilhotina envolta ao pescoço de cada um de nós, bastava olhar; um desses momentos de tensão pelo qual você daria tudo (opa, ou quase tudo) para não precisar vivenciar, sobretudo numa droga de uma escola com nome de coronel.

A professora Ivanir,, que possuía esse nome de homem e parecia mesmo um homem- feia, dentuça e de quebra com um cabelo horroroso tingido de vermelhão-, foi nos chamando por ordem alfabética. Eu estava contente só por saber que era a última vez que eu estava olhando para aquela figura cínica, despótica e babaca pela última vez no ano- e se Deus quisesse, na minha magra e desgraçada vida.

Começou:

- Abel Nogueira Lodowski, venha buscar seu boletim.

o Abel era um colono, um desses polacos com quem ninguém queria andar no colégio( e acho até que no mundo todo), a não ser eu e os que moravam na rrrrrrrroça (como eles diziam puxando o Érrrrrrrrre) e trabalhavam na lavoura como ele.

Com uma expressão de terror estampada no rosto branquelo, e bochechas vermelhas, ele caminhou até a mesa da professora Ivanir, desajeitado que nem um ganso velho cegueta. Ela deu o boletim e desejou Feliz Natal para ele. Ele deteve-se por um momento, olhando aquela merda de boletim e sorriu, já deixando a sala, espalhando um desses perfumes esquisitos que as pessoas fabricam em casa, alfazema, sei lá que diabo.

A professora espirrou, assoou o nariz, que pingava nojenta e abundantemente. Tá loco, como é que um cara podia sentar, naquele momento que já era angustiante o suficiente, e ainda ter que olhar para uma mulher como aquela? A vida é assim. Quem não tem muita sorte, em geral, ganha ao nascer uma carga enorme de azar.

Depois dessa cena lamentável, ela continuou, como se nada tivesse acontecido, como se você simplesmente tivesse o direito de assoar o nariz igual a um porcão na frente de um punhado de crianças sem nem mesmo pedir desculpas.

- Beatriz Campos, ou, minha Biazinha! Eu não te disse que um professor particular de português resolveria?, disse ela, enquanto a Biazinha ia até a mesa, com aquelas presilhas da Miney no cabelo, com seu rostinho bonito e sapatos novinhos e limpos, porque o papai dela sempre buscava e levava ela pra escola.

A Beatriz pegou o documento, ganhou um beijo no rosto da professora e saiu excitadíssima da sala. Depois que ela fechou a porta, deu pra ouvir ela comemorando lá fora, decerto com os pais. É o fim da picada, pensei, desenhando um anjo sendo engolido por um furacão na carteira. Então a professora assou o nariz de novo. Eu larguei o lápis. Estava começando a entender. Cadê o Alvir? Olhei para ele, lá nos fundos, sentado, assustado, passando as mãos em seus cabelos sebosos, usando seu uniforme habitualmente sujo- e naquele dia nem precisava ir de uniforme, acho que o cara não tinha outra roupa. Pela sequência do alfabeto ele deveria ser o próximo..., pensei, agora começando a acrescentar um diabão ao meu desenho, enquanto a professora seguia:

- Bruno Ranzel Junior- o Bruno levantou sorrindo, me lançou uma olhadela e piscou: assim como eu já havia entendido a jogada.

O próximo deveria ser o Carlos, um vizinho meu, meio autista, meio feio, meio gordo, meio burro, meio tudo. Porém ela saltou pro F

- Fabiana Gordin de Almeida...

- Fernando Junqueira Kaminski...

- Guilherme Augusto Ribeiro...

E chamou mais alguns nomes, chegando na Valéria Gonçalves Neto, e parou. A professora pegou um maço de papéis verdes, caminhou até a lixeira, deu uma catarrada (Nota do autor: preferi usar a expressão catarrada do que usar a flexão "escarrou" , a fim de preservar o jargão local do sul interiorista das Gêmeas do Iguaçu, Porto União e União da Vitória, conservando assim, a integridade e identidade do texto).

A professora Ivanir, lá, na frente e no centro da sala, sorridente, mais para quem sente prazer do que dedica conforto no que diz, começou:

- Queridos alunos, minhas crianças, lamento muito. Mas vocês, queridos alunos...- (pausa dramática, assoa o nariz)- Vocês são os que não obtiveram a nota exigida nos exames finais. E reprovaram.

Bom, não preciso nem dizer, que aí foi aquela choradeira. Só eu não participei. Olhei para eles, deixando o lápis, com meu diabão já concluído e o desenho encerrado, depois de autografar, claro.

Olhei para eles, e que deprimente eram, e provavelmente sempre seriam. Tinham pais pobres, sem estudos, operários e empregadas domésticas, nada muito mais especial do que isso. Pais bêbados, violentos, divorciados, que nunca compareciam nas reuniões de pais e professores bimestral, que nunca pagavam a taxa de matrícula. Nenhum deles tinha bicicletas, roupas novas; usavam cadernos velhos e nunca viajavam nas férias. Nunca tinham dinheiro para comer na cantina, nunca conseguiam vender as rifas da escola, e justamente por isso e pela já referida taxa de matrícula, eram perseguidos ano a fora, por boa parte dos educadores. E estavam lá chorando, não porque tinham reprovado de ano, não porque teriam de repetir o ano novamente. Choravam porque achavam que eram burros. Estava atestado, num papel, que agora a querida professora Ivanir deixava nas carteiras, um a um, desejando um feliz natal mais frio do que para os aprovados.

Levantei e saí, não aguentava mais aquela merda, e acho que ali eu comecei a perceber como as coisas funcionavam, e de alguma forma, descendo a longa rampa da escola, me senti muito mais forte. As crianças que foram aprovadas comemoravam com seus pais, na cantina, que ficava de encontro para o final da rampa. Bom, afinal de contas, uma criança que passa de ano merece um lanchinho, pensei, sorrindo com amargura e desprezo, olhando pra os enfeites de Natal pendurados nas janelas das salas de aula, com raiva do sol.

Ganhei a rua. Um velhote que bebia cachaça, sentado num ponto de ônibus, me abordou:

- E aí, passou de ano, menino?

Respondi:

- Claro que sim.

- E cadê seu boletim?

- Não sei.

Ele sorriu, numa boca desdentada. Assumiu um ar de seriedade:

- Você reprovou, não é mesmo?

- Sim, eu disse, depois de uma pausa. Ele me olhou, enternecido. Quase senti vontade de dar um abraço naquele velhote sujo. Mas segui andando.

Caminhei por três quarteirões, que naquela tarde dezembrina, pareciam muito maiores do que normalmente. Cheguei em casa, abri o portão, depois a porta, entrei, peguei um pacote de bolachas recheadas de 25 centavos e liguei a televisão. Estava passando um filme de Jesus. (No canal Rede Vida de Televisão, canal 24 na época). Ele estava sendo crucificado, naquela parte em que a cruz é erguida. Pensei que ele fez tudo direitinho, mas era pobre, e tacaram cruz nele.

Continuei comendo bolachas e pensando nisso, em Jesus, e mesmo que eu não acreditasse muito nele, me senti melhor.

R A Ribeiro
Enviado por R A Ribeiro em 30/12/2014
Reeditado em 30/12/2014
Código do texto: T5085680
Classificação de conteúdo: seguro