611-A DISTRAÇÃO DE MADAME CARMINHA

Madame Carminha anda muito distraída, ultimamente. Não, posso afirmar que não é caduquice, não. Afinal, ela deve estar com, no máximo, sessenta anos, tem bom raciocínio, conversa bem, é, como se diz, articulada.

Mas a sua distração... Ah! Penso em lhe dizer que tome algum remédio, mas quem sou eu, apenas seu chofer particular e não posso tomar liberdade de falar essas coisas.

É caso grave, que causa transtornos. Veja, por exemplo, o que aconteceu na semana passada.

Levei madame Carminha a um almoço no elegante no Clube dos Milionários, aonde ela e o marido vão com freqüência. O almoço estava marcado para as treze horas, mas ela, como sempre, estava atrasada. Como acontece sempre que ela sai de carro durante o dia, estava sozinha.

Quando chegamos ao clube, encostei o carro defronte à escadaria que sobe para a monumental entrada. Ela desceu e fui estacionar mais à frente, no mesmo quarteirão.

Devo dizer que o carro é um Volvo prateado, do ano, um dos poucos que rodam pela cidade. Vistoso e inconfundível, carrão pra ninguém botar defeito.

O almoço terminou pelas quatro da tarde. Quando ela apareceu na escada do clube, saí do carro e andei na direção da escadaria, a fim de ajudá-la a descer e acompanhá-la até o carro. Observei que ela não me viu aproximando e desceu a escada pelo lado oposto.

Andava com passos rápidos e foi com determinação na direção de um minúsculo Kia também prateado. Nem tive tempo de lhe acenar e muito menos falar com ela. Entrou no Kia, que partiu antes que eu chegasse próximo para avisar-lhe que estava entrando no carro errado.

Fiquei confuso. E, ao mesmo tempo, preocupado. Na sua distração, ela tinha tomado um carro que, por certo, esperava outra senhora.

Será que o motorista não havia percebido? Na minha angustia por não ter aproximado de dona Carmem a tempo de evitar que ela tomasse aquele carro, pensava em coisas desastrosas — como acontece com todo mundo, em situações deste tipo.

Voltei ao Volvo e tratei de seguir o Kia. Dei alguns sinais com o farol, mas, ou o motorista não entendeu, ou pensou que eu estava pedindo passagem. Após dirigir alguns quarteirões pela larga avenida, virou á direita, e eu na cola dele. Na próxima rua, virou novamente à direita e eu atrás. Continuava piscando os faróis, tentando me comunicar com o motorista do Kia. Inutilmente.

O motorista dirigiu o carro para o clube, de onde havia saído. Parou na porta e do Kia desceu madame Carminha, que me pareceu desorientada. Olhava para todos os lados, na certa procurando o Volvo.

Fui rápido e a alcancei antes que tomasse outra direção. Gentilmente, indiquei-lhe o Volvo, que eu havia estacionado atrás do Kia, abrindo a porta traseira para que ela entrasse.

Ela se mostrou surpresa quando me viu, mas entrou no carro. Fechei a porta, dei a volta e sentei-me ao volante.

— Jorge, vamos para casa. — Ela me disse.

Sai devagar e dirigi com calma, como ela gosta. Depois de alguns momentos de silêncio, falou:

— Entrei no carro errado. O motorista não se deu conta que eu não era sua patroa, e saiu disparado. Só quando eu falei ‘Pode ir devagar, Jorge, não estou com pressa’ foi que ele olhou pelo espelhinho e me viu. ‘A senhora me desculpe, dona Zuleika, eu não sou o Jorge, não. A senhora tomou o carro errado’. Eu respondi: ‘Ah! Eu também não sou nenhuma Zuleika. Volte para o clube. Meu chofer está me esperando.’ Então, ele voltou resmungando porque atrás vinha um outro carro piscando sem parar.

Eu não quis comentar a distração de madame Carminha. Mas acho que vou alertar o patrão.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 10 de junho de 2010

Conto # 611 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/12/2014
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