606-QUANDO O MIL-RÉIS VIROU CRUZEIRO-Um tesouro quase perdido

História de um Tesouro Ignorado

— Porca la miséria! Questa carestia num tem fine! — Tio Gordo exclamava, no seu idioma italianês, misturando italiano com português, quando mamãe reclamava do aumento de preços dos gêneros alimentícios. Ou quando papai falava do custo da madeira, sempre elevados, que usava na marcenaria, para fazer móveis.

As conversas eram quase sempre na hora do jantar. Éramos sete à mesa. Tio Gordo sentava-se à cabeceira da mesa. Papai e mamãe sentavam-se do lado esquerdo e Madrinha e Tio Armando do lado direito. Arthur e eu sentávamos no lado oposto ao Tio Gordo e como pouco nos interessava as conversas dos adultos, ficávamos calados enquanto durava o jantar.

— É por causa da guerra. — Explicava Tio Armando, o mais entendido nos assuntos da atualidade.

Papai era pessimista:

— É, mas uma vez que sobem os preços, nunca mais voltarão a ser como antes. Nem quando a guerra acabar. Não há mais dinheiro que chegue.

— Por falar dinheiro, ano que vem temos de trocar o dinheiro velho. — Tio Armando falava do novo decreto do governo de Getúlio Vargas, editado em novembro de 1942, que mudava a moeda brasileira, de mil-réis para cruzeiro.

— Trocar o dinheiro? — Madrinha Carolina estranhou a informação.

— É, quem tem dinheiro em casa, essas notas de cinco, dez, vinte mil reis, vai ter de trocar por notas do dinheiro novo. O tal de Cruzeiro.

— Então vamos ter de ver o dinheiro do Titio. — Mamãe, a mais prática de todos os adultos reunidos à volta da mesa, foi direto ao assunto. — Ele tem aquele baú no quartinho de dormir que deve ter muita nota de mil reis.

E dirigindo-se ao patriarca:

— Então, Tio, vamos abrir o baú?

— Domani... — foi a resposta lacônica de Tio Gordo.

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Tio Gordo era assim chamado devido à sua enorme pança. Irmão de minha avó, era tio de mamãe, de madrinha Carolina, de tio Armando, e meu tio-avô, bem como de Arthur.

Não se casou e ganhou muito dinheiro na loja de “secos e molhados”, casa comercial com quatro portas abertas para a Rua Doutor Plácido Guerra, onde vendia de tudo: de cereais e gêneros alimentícios até ferragens para lavoura, artigos escolares, fumo em corda, tecidos, armarinho, balas, chocolates, banana, sabonetes e “um mundo” de artigos. Entretanto, não vendia bebidas, de nenhuma espécie.

Imigrante italiano do final do século XIX, não se naturalizara brasileiro e por isso jamais tivera uma conta bancária, onde colocar o dinheiro ganho no balcão.

Tinha dinheiro, sim, guardado no baú de latão, uma caixa pesada e dourada. Seu quarto de dormir, pequeno, escuro e mal ventilado, era misterioso e nele só entrava madrinha para fazer a limpeza diária. Eu nunca havia entrado ali, mas, curioso, havia vislumbrado o baú que, na minha imaginação, devia guardar um verdadeiro tesouro.

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O domani, ou seja, o amanhã de Tio Gordo demorou alguns meses, e quando o assunto foi de novo lembrado, o prazo para a troca do dinheiro já ia terminando.

Um dia, um sábado (era sábado porque não tinha aula naquele dia), o baú foi arrastado por papai e Tio Armando para a sala e colocado sobre a grande mesa. Arthur e eu, garotos de sete e oito anos, ficamos excitados pela possibilidade de saber o que haveria guardado na caixa de metal. Tio Gordo concordara em abrir o baú ante a iminência de perder o dinheiro, se não trocasse.

Madrinha não se interessou, ficou na cozinha, lavando panelas. Foi a única, pois mamãe, papai e tio Armando estavam na sala, quando Tio Gordo destrancou o cadeado e levantou a tampa da arca.

Um cheiro esquisito, de mofo, bolor ou sei lá o quê, exalou de dentro do baú. Mamãe abanou a mão defronte o nariz, papai fez um careta e olhou pra mim. Tio Armando, discreto, fez de conta que não sentia nada.

Passado o primeiro instante, vimos que a arca estava cheia até à tampa, de notas de dinheiro antigo. Notas velhas, escuras, enroladas ou dobradas, colocadas em pacotes irregulares, sem cuidado.

Mamãe, ao ver o estado das notas, arranjou rapidamente uma toalha velha, para colocar sobre a mesa, a fim de não sujar o tampo e sobre a qual o dinheiro foi colocado. Os pacotes foram retirados, as notas avulsas colocadas separadas, e em poucos minutos a arca estava vazia, mostrando seu fundo. O monte de notas não era agradável de ver: o bolor branco e azulado cobria os pacotes e até as notas soltas. O cheiro também era muito forte e desagradável.

— Que cheiro de chulé. — Arthur me cochichou.

— Puxa, ai tem uma fortuna! — Exclamou papai, que, certamente, jamais vira tanto dinheiro em sua vida.

— Vamos ter de abrir estes pacotes e contar tudo. — Tio Armando já pensava em organizar o dinheiro.

— Mas, antes temos de colocar essas notas ao sol, para acabar com esse bolor e o mau cheiro. — Explicou mamãe.

Era num sábado, como disse. O mês devia ser abril, pois o dia era claro, ensolarado, frio e o céu de um azul profundo. Como só acontecia em abril.

Eu observava tudo, sem dar palpite. Meu irmão também. A gente sabia que ali tinha muito dinheiro, mas nem tinha idéia de quanto.

— Pedro, pega aquelas peneiras lá no armazém. — Mamãe determinou. — Vamos estender essas notas nas peneiras e colocar ao sol. É o único jeito de acabar com esse mofo.

As enormes peneiras para colheita de café eram restos do estoque do negócio do Tio Gordo, fechado no ano anterior.

Papai trouxe as peneiras. Eram muitas, talvez dez. Os pacotes foram desfeitos e as notas espalhadas, uma a uma, sobre as peneiras. Levadas para o quintal, ficaram ao sol.

Um vento suave soprava, e as notas, à medida que iam secando e perdendo aquele bolor, eram levantadas pelo vento.

— Tunico! Arthur! Ficam ai no quintal, vigiando as peneiras para as notas não voarem pro quintal do vizinho!

Sobrou pra nós dois. Passamos o dia inteiro vigiando as peneiras de dinheiro. Nada de brincadeiras naquele dia. Ô raiva!

À tardinha o dinheiro já estava seco e mais ou menos limpo. As peneiras foram recolhidas.

Após o jantar, fomos todos para a sala, a fim de organizar o dinheiro. Então papai explicou-me o valor daquelas notas.

— Estas são notas de quinhentos mil réis. É a nota de maior valor. — E mostrou-me uma nota grande, quase do tamanho de uma folha de caderno. — Aquelas são de vinte mil réis, as outras são de dez e aquele outro monte é de notas de cinco mil reis.

— Porque vão ser trocadas?

— Daqui pra frente o dinheiro se chama Cruzeiro. E estas notas perdem a validade daqui a algumas semanas. Então, tem de ser trocadas pelas notas novas.

— São diferentes?

— Sim. São diferentes e tem outro valor. Esta nota de dez mil réis, por exemplo, vai ser trocada por uma de dez cruzeiros.

Tio Armando, que era alfaiate e lidava bem com as novidades, tirou do bolso algumas notas novas, que nos mostrou.

— Aqui está uma nota de cinco cruzeiros. Substitui a nota de cinco mil réis.

Confesso que não compreendi bem porque o dinheiro novo valia menos do que o antigo.

Enfim, o dinheiro foi separado pelos valores. A pilha maior de notas era a das notas grandes, de quinhentos mil réis.

Tio Armando e papai contaram todo o dinheiro.

— Puxa vida! Mas é uma verdadeira fortuna! — Exclamou papai. — Mesmo quando transformado em cruzeiros.

— Com esse dinheiro Titio pode comprar muitas casas e até fazendas! — comentou Tio Armando.

Tio Gordo assistia a tudo sem falar nada. Até parecia que o dinheiro não era dele.

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Na segunda feira seguinte, Tio Armando foi ao banco levando o dinheiro. Ele era viajado, tinha uma bonita maleta de couro na qual colocou as notas.

Quando voltou, a quantidade parecia menor, mas era devido ao tamanho menor das notas, que, novinhas e sem dobras, formavam um conjunto bonito de se ver.

— Aqui está, Titio, sua fortuna em Cruzeiros.

Tio Gordo abriu o baú e colocou dentro as notas novas e fechou o cadeado. Ele não perguntou quanto era, nem papai, mamãe ou madrinha o fizeram.

Tio Armando sabia, mas acho que, discreto como era, nunca revelou a ninguém.

Naqueles tempos e na nossa família, respeito e obediência eram fundamentais e as questões de dinheiro eram tratadas como se fossem segredos inescrutáveis.

Só viemos saber da grande fortuna oito anos depois, em 1950, quando Tio Gordo faleceu.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 13 de abril de 2010 –

Conto # 606 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 28/12/2014
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