604-A VINGANÇA É UM PRATO QUE SE COME FRIO-História de Xerazade
Havia um reino muito distante, além do grande deserto, cujo sultão, idoso e aborrecido com a vida, mergulhado em depressão, sentia que não tinha mais motivo para viver.
Não tinha mais ânimo para viajar, conhecer outros califados, outras terras, nem coragem de tomar uma atitude, abdicando seu poder para o filho.
Uma manhã, após mais uma noite insone, extremamente cansado, conversava com o barbeiro particular sobre sua vida sem graça, quando lhe veio uma idéia.
— Meu bom amigo Khalil — disse ao barbeiro — vou incumbir-lhe de uma tarefa de grande importância. Quero morrer, mas não posso por fim à minha vida por minhas próprias mãos. Alah me puniria com um desterro eterno na região do Nada Eterno. Quero que você me ajude.
— Sou seu servo submisso, farei tudo pelo Grande Sultão. — respondeu o barbeiro, — Mas que tarefa será essa que terei a maior honra em cumprir?
— Qualquer manhã dessas, sem me avisar, você cortará minha garganta. Assim, minha vida terá um fim aceitável aos olhos de Alah.
— Mas, Grande Sultão! — respondeu o barbeiro, assustado e temeroso. — Serei condenado à morte por esse crime.
— Não, caro Khalil. — explica o sultão. — Será como de fosse um acidente e nada acontecerá com você. Mas não conte a ninguém este pacto, que fica só entre eu e você.
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O barbeiro ficou apavorado com a triste missão de pôr fim à vida do amado sultão. No seu desespero, desabafou com o filho, que, como ele, era barbeiro e morava também no palácio, na ala reservada para os serviçais e suas famílias.
— Meu amado pai — disse o filho, mostrando sabedoria e preocupação — o melhor é o senhor se desincumbir o mais depressa dessa tarefa. Como diz o grande sábio Mustafá Alakibe, não se deve retardar até amanhã o serviço de dia de hoje.
Mas Khalil não se animava a cumprir o mandado.
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Ao dar a ordem ao barbeiro, uma grande transformação operou-se no espírito do sultão. Aliviado da preocupação de por fim à própria vida, passou a ver as coisas de modo diferente. Admirava-se com o vôo das borboletas no jardim, extasiava-se com o pôr do sol que incandescia o mundo com sua luz alaranjada. Animou-se a viajar pelo seu sultanato e conhecer lugares antes nunca visitados por ele.
Quando voltou de uma dessas viagens, lembrou-se do que havia determinado ao barbeiro Khalil.
Estando já em paz com a vida, usufruindo os dias ensolarados e as noites cálidas perfumadas pelos bálsamos do Oriente, na companhia de lindas odaliscas, o sultão arrependeu-se da ordem dada ao barbeiro.
Khalil continuava fazendo a barba do sultão todas as manhãs, mas ainda temeroso de cumprir a terrível ordem.
O Sultão, não querendo mais morrer, não podia voltar atrás na sua ordem. A fim de se ver livre da incrível situação que ele mesmo criara, mandou enforcar o barbeiro Khalil.
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— Por Alah, maldito seja este sultão! — gritou Xariar, saltando das almofadas e desembainhando a cimitarra. — Xerazade, me diga o nome desse vil cão, que irei eu mesmo fazer justiça.
— Calma, meu adorado sultão. — falou serenamente Xerazade, que contava a história ao seu marido. — Vejo que o dia já está claro, passamos a noite sem dormir. Vamos descansar. Você tem suas obrigações no palácio, deve cumpri-las. Amanhã à noite prossigo na história do barbeiro que não quis matar o sultão.
Xariar passou o dia preocupado com a história do sultão e do barbeiro. Estava impaciente quando a noite desceu e Xerazade retomou o fio da narrativa.
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— Pelo costume entre os sultanatos, os artífices e os profissionais que servem o sultão constituem-se em famílias e os filhos seguem as mesmas profissões dos pais. O filho de Khalil, barbeiro prático e hábil, foi o sucessor de seu pai. Passou naturalmente a fazer a barba do sultão, todas as manhãs.
Sabia que o pai tinha sido enforcado por que retardara demais no cumprimento da ordem dada pelo sultão, até que este, arrependido, teve de descartar do seu pai.
Agora, o sultão vivia cercado de pessoas, de vizires, de súditos e pessoas do palácio, desde o amanhecer até à noite. Khamel ab Khalil, o novo barbeiro, desempenhava suas atividades enquanto o sultão dava audiências ou conversava com os amigos. E matutava uma maneira de vingar o enforcamento do pai.
Silencioso, aparava com a tesoura a espessa barba do Sultão, e finalizava passando a navalha macia pelo pescoço, delineando a barba e deixando-o confortável e com boa aparência.
E observava. Sempre atento ao trabalho, não fosse machucar involuntariamente o Sultão.
Certa manhã, o salão estava cheio. Uma celebração estaria em curso naquele dia, e logo cedo todos os ministros se apresentavam para receber as ordens. O chefe dos aiatolás, a autoridade religiosa máxima do sultanato, também estava presente, bem como o chefe do exército e os magistrados mais importantes circulavam na imensa sala.
O sultão estava recostado sobre almofadas, quase que deitado, e Khamel passava o lado da lâmina afiada sobre a garganta do Sultão, de baixo para cima e de cima para baixo, até que o Sultão gritou:
— Vamos, acaba com este serviço logo!
O barbeiro, mantendo então a navalha pressionada na garganta do Sultão, falou baixinho no seu ouvido:
— Quer que acabe o serviço como a ordem que deu ao meu pai?
O Sultão quis levantar-se, mas a pressão da navalha no seu pescoço aumentou. Então o rapaz dirigiu-se aos presentes, falando claro e bom tom:
— Aproximem-se, que o Sultão tem uma confissão a fazer.
O Sultão quis gritar, dar uma ordem, mas a mão do barbeiro tapou-lhe a boca:
— Só fale quando for dizer a verdade. E não é verdade que mandou enforcar meu pai, sem julgamento nem imputação de qualquer culpa? Por Alah, não minta!
O Sultão, de olhos esbugalhados, sentia o frio da lamina afiada na sua jugular. Fazendo gestos, deixou que o barbeiro tirasse a mão de sua boca e disse:
— Sim, foi assim mesmo.
Imediatamente, mantendo a navalha no pescoço, Khamel tapou de novo a boca do Sultão. Continuou no interrogatório:
— E não é verdade que o Sultão tinha ordenado ao meu pai que cortasse sua garganta? Que depois, mudando de idéia e não querendo dar uma contra-ordem, mandou eliminar meu pai?
— Sim, sim, é tudo verdade — respondeu o Sultão logo que a pressão da mão do rapaz sobre sua boca diminuiu e permitiu emitir algum som.
— Pois então, cometeu um crime vulgar, mandando matar um inocente que não quis cumprir uma insana ordem emitida pelo senhor. É verdade?
O Sultão não falou nada. Mas o jovem falou para os maiorais do sultanato, que ouviam tudo, surpresos e assustados. Ninguém ousou fazer nenhum gesto em defesa do Sultão, pois a qualquer ameaça, a navalha do barbeiro Khamil afundaria no pescoço do homem ali semi-deitado.
— Então julguem vocês, em nome de Alah! — disse o jovem à multidão. — Aqui está um criminoso vil que não vacila um só instante em matar para salvar o próprio pescoço. Um homem contraditório, que mandou o seu barbeiro cortar-lhe o pescoço, e, arrependido, não teve coragem de liberar o barbeiro do fatal encargo. É um louco, um inconseqüente, um cão que não pode ser nosso Sultão.
Os chefes ali reunidos conversaram baixinho entre si. Em seguida, o chefe da Guarda do Palácio se adiantou e disse, dirigindo-se ao sultão e a todos:
— Em nome de Alah e por acordo entre o Aiatolás e outros magistrados aqui presentes, prendo o Sultão, que será levado para a masmorra e posteriormente responderá a julgamento por assassinato vil e sem motivo.
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Khamel sorriu e lembrou-se de um outro ensinamento do mestre Mustafá Alakibe:
“A vingança é um prato que se come frio”.
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 28 de abril de 2010 –
Conto # 604 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS