597-O PRISIONEIRO INTERNACIONAL-Politica e espionagem
O período da história mundial conhecido como Anos da Guerra Fria, na segunda metade do século XX, foi uma época em que as tramas políticas, os lances diplomáticos escusos e a espionagem regularam as relações entre os países.
Os principais envolvidos – Estados Unidos e União Soviética – usaram de todos os recursos das intrigas para atingir os objetivos misteriosos e escusos. Os aliados eram usados descaradamente: países, organizações, pessoas, tudo e todos eram manipulados a fim de que informações passassem de um lado a outro.
A história que se segue é um exemplo típico do que acontecia constantemente então. Por motivos óbvios, os nomes dos personagens são fictícios, mas as situações foram reproduzidas dentro da maior fidelidade possível, graças à narrativa do próprio diplomata envolvido no caso.
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Trokian Vladinescu nasceu na Romênia em 1935, quando as dificuldades de viver naquele país estavam crescendo: eram as nuvens escuras prenunciando a grande convulsão social na Europa Central, que resultaria na Segunda Guerra Mundial.
Durante as três primeiras décadas de sua vida, viu o final da guerra, a invasão de sua pátria pelas tropas da Rússia e a incorporação à União Soviética. O comunismo foi implantado e os lideres eram tão ou mais radicais do que os de Moscou. E, por um simples direito à sobrevivência, ele se incorporou ao Partido ainda como estudante.
Apesar de todas as dificuldades, Trokian formou-se em Engenharia de Hidrologia e tornou-se, no seu ramo, um expoente.
Em 1969, com apenas 34 anos, trabalhava no Departamento de Assuntos Internos para Rios e Canais do seu país. No começo do ano, candidatou-se ao cargo de Diretor do Serviço de Hidrologia da UNESCO, sediada em Paris.
Ao se tornar um Funcionário Internacional (assim são chamados os que trabalham em qualquer setor da Organização das Nações Unidas, da qual a UNESCO faz parte), o engenheiro teve de prestar o juramento “comprometendo-se a exercer suas funções levando em conta exclusivamente os interesses da Organização, sem solicitar ou aceitar instruções de nenhum governo”.
Tal juramento implicitamente coloca o funcionário sob a égide da ONU, para todos os efeitos. Para governos não democráticos (e a Romênia era então um país comunista e a forma de governo, como se sabe, ditadura do proletariado) este juramento subtraía o funcionário de sua influência. Trokian Vladinescu tinha consciência do significado do juramento, mas nunca poderia imaginar como ele iria, anos mais tarde, desempenhar um papel crucial em sua vida.
Em junho de 1976, estando a serviço da UNESCO há mais de cinco anos, Trokian saiu de Paris, onde trabalhava, a fim de representar o diretor da entidade em duas reuniões: a primeira em Bucareste, capital da Romênia, de 8 a 13 de junho e a segunda em Sófia, na Bulgária, de 15 a 18 do mesmo mês. Embarcou com a esposa e a filha, para o cumprimento das missões e, ao mesmo tempo, visitar o país natal.
Terminada a conferência em Bucareste, partiu para a segunda etapa da missão, acompanhado da esposa e da filha. Entretanto, ao chegarem à fronteira com a Bulgária, foram os três detidos pela policia da Romênia, com uma ordem para que voltasse com urgência à capital, a fim de falar com o vice-ministro de Relações Exteriores, Basile Traman, um fanático, obcecado pela “segurança” da União Soviética.
— Mas sou esperado em Sófia, onde tenho um compromisso inadiável. — Trokian tentou inutilmente argumentar com os policiais mal encarados e fortemente armados.
Na volta a Bucareste, a esposa, intuitivamente, lhe confidenciou:
— Não vejo nada de bom nesta entrevista com o vice-ministro.
— Sim, mas ordens são ordens. Aqui não valem argumentação nem bom senso.
Ao apresentar-se ao senhor Basile, burocrata apegado às filigranas dos regulamentos, ouviu deste:
— O Senhor não pode sair do país enquanto não forem resolvidos alguns assuntos importantes.
—Devo então de informar ao Diretor Geral da UNESCO que estou impossibilitado de prosseguir minha missão. Não poderei representá-lo em na reunião de Sófia, marcada para depois de amanhã. .
—Não, não é necessário. = Respondeu o vice-ministro. = Tudo poderá ser resolvido rapidamente. E um comunicado de tal teor poderá gerar um incidente que lhe será extremamente inconveniente.
Não querendo piorar uma situação que já não se afigurava nada boa, o engenheiro concordou em esperar até a manhã do dia 18. Mas ao sair da entrevista, comentou com a mulher e a filha:
— Alguma coisa me diz que estamos detidos sem qualquer acusação. E que nada será resolvido rapidamente, como afirmou o vice-ministro.
Nem ele mesmo sabia que quão próximas da verdade estavam suas palavras.
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O que se seguiu foi um pesadelo kafkaniano, não imaginado nem mesmo para um membro do Partido Comunista da Romênia. Na manhã do dia 18, Trokian voltou ao gabinete do vice-ministro, que foi lacônico e incisivo:
— O governo romeno decidiu retirar sua qualidade de funcionário internacional. Está terminantemente proibido, a partir deste momento, de comunicar-se com o Diretor Geral ou qualquer funcionário da UESCO. Deverá voltar aqui amanhã e escrever uma carta de demissão.
— E se eu não o fizer? — atreveu-se o engenheiro a perguntar.
— Será preso.
— E quais são as razões desta decisão de me retirar à força da UNESCO? — O engenheiro estava cada vez mais irado.
— Não estou autorizado a revelar os motivos de sua demissão. — Respondeu o alto funcionário.
— Considero isto tudo um abuso de poder. — Retrucou Trokian. — O governo romeno não tem o direito de revogar minha qualidade de funcionários internacional.
A conversa prosseguiu em tom cada vez mais acido e confrontante. Nada demoveu o vice-diretor que não permitiu a saída de Trokian do seu gabinete até que ele concordasse em voltar, no dia seguinte, para assinar a demissão da UNESCO.
Ao sair, Trokian notou que estava sendo seguido. Não pode sequer entrar em contato com seu amigo, Thomas Keller, diretor do Centro Europeu de Ensino Superior, sediado em Bucareste, para avisá-lo do que estava se passando com ele.
Entretanto, sua filha Marika, jovem decidida e corajosa, conseguiu furar a cortina de silêncio imposta ao engenheiro. Correndo grave perigo e usando de meios dignos de um romance policial, conseguiu transmitir à embaixada da França uma mensagem, pedindo que o Diretor Geral da UNESCO fosse avisado do que estava acontecendo com o pai.
Na tarde daquele mesmo dia, um funcionário da companhia telefônica visitou a casa de Trokian, para trocar nosso aparelho, que, segundo ele, estava defeituoso, não funcionava bem.
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Naquela noite Trokian redigiu uma carta de demissão, na qual dizia que o “governo romeno decidiu que devo voltar a exercer minhas funções no Conselho Nacional de Hidrologia”, e seguia com formalidades e agradecimentos, reiterando, no parágrafo final, sua fidelidade aos ideais da UNESCO. Apresentou-se na manhã seguinte com a carta, receoso de que não seria aceita. De fato, quando a apresentou a um funcionário subalterno ao vice-ministro, encarregado das questões com a UNESCO, este lhe perguntou:
= Você não poderia justificar sua demissão de outra forma, dizendo que está doente, por exemplo?
= Diante das circunstâncias, ninguém acreditaria. É melhor dizer a verdade, que fui chamado pelo governo, embora seja uma situação ilegal.
Foram momentos cruciais. O funcionário entrou e saiu diversas vezes do gabinete do vice-ministro.
=O senhor vice-ministro aceita sua justificativa, mas deseja a supressão do último parágrafo.
= Não vejo razão para suprimir. Até que a UNESCO aceite meu pedido de demissão, sou funcionário da entidade e mantenho meu juramento e minha fidelidade.
O funcionário voltou ao gabinete do vice-ministro, e quando saiu, exibia um sorriso que Trokian classificou como hipócrita, dizendo:
= Está bem. O senhor vice-ministro concordou com seu pedido de demissão.
Trokian saiu aliviado do ministério. Acreditava que, ao receber sua carta, o Diretor Geral da UNESCO compreenderia a mensagem embutida na carta.
Acho que lavrei um tento, pensou o engenheiro.
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Quase um mês se passou sem que Trokian tivesse qualquer informação sobre sua situação perante a UNESCO ou perante o seu cargo no Departamento de Rios e Canais do governo da Romênia. Inutilmente se dirigira ao gabinete do vice-ministro Basile Traman. Havia sempre uma desculpa para não ser atendido e ninguém sabia como estava sua situação.
São as próprias palavras de Trokian: “As duvidas me sufocavam: teriam as autoridades romenas enviado minha carta? Ou teriam falsificado minha assinatura, enviando outra? Haviam me dito no ministério que a UNESCO me responderia no máximo em uma semana”.
No dia 15 de julho, não conseguindo mais conter sua impaciência, ele resolveu telefonar para a secretaria da UNESCO em Paris. Foi uma atitude que envolvia grande risco, pois seu telefone estava evidentemente “grampeado”. O Diretor Geral estava ausente. Atendeu o Diretor-adjunto.
= O senhor está a par do problema que estou enfrentando aqui na Romênia?
= Sim, estou sabendo de tudo, informou-lhe o adjunto.
= Estou lhe telefonando correndo grande risco, pois estou proibido de comunicar com o exterior. Por isso, só desejo saber: sou ainda membro do Secretariado da UNESCO?
A resposta também foi lacônica e em inglês:
= You are and you remain. (O senhor é e continua sendo). Sua carta de demissão não foi considerada válida. = Prosseguiu o funcionário em Paris. = Foi escrita uma carta nesse sentido ao embaixador e delegado da Romênia na UNESCO.
Trokian desligou o telefone e resumiu em poucas palavras a situação para a mulher e a filha.
=Estamos salvos! Agora solução virá em breve. Logo voltaremos a Paris. Eu reassumirei meu cargo e Marika voltará à Universidade da Sorbonne.
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O que Trokian não sabia naquele dia era que sua carta tinha sido entregue, sem alterações, em 21 de junho (dois dias após a entrega ao vice-ministro Basile) acompanhada de outra carta do embaixador romeno, na qual dizia que o “pedido de demissão era transmitido segundo instruções do governo da Romênia”. O Diretor Geral da UNESCO, ao ler as duas mensagens, convocou imediatamente o embaixador.
=A demissão do senhor. Trokian não foi apresentada segundo os trâmites legais, disse. = Pra não criar problemas para as autoridades romenas, vou ignorar por 10 dias as mensagens. Se após este prazo o senhor Trokian não voltar a Paris, vou ser obrigado a reagir oficialmente.
Nada aconteceu no prazo definido. O Diretor Geral enviou ao embaixador, em primeiro de julho, carta oficial na qual declarava inaceitável minha renúncia, acrescentando que "as condições em que foi formulada e apresentada a petição do senhor Trokian Vladinescu colocam seriamente em perigo os fundamentos da função publica internacional”.
Uma cortina de silêncio caiu sobre o caso. Ciente de que ainda era funcionário da UNESCO, Trokian dirigiu-se diversas vezes, pessoalmente e por escrito, ao embaixador, sem obter qualquer resposta.
No final de julho, o “caso do prisioneiro internacional” já era do conhecimento do próprio chefe de Estado da Romênia, que tinha dado ordens ao embaixador para que não cedesse às pressões da UNESCO.
Em seis de agosto, o Diretor Geral da UNESCO escreveu carta ao Chefe de Estado da Romênia, na qual exigia a liberação do seu funcionário, terminando textualmente:
“Que eu saiba, é a primeira vez na história das Nações Unidas que um alto funcionário internacional se encontra detido ilegalmente”.
Esta carta foi ignorada pelas autoridades romenas. Diante disso, o Diretor Geral decidiu levar o assunto ao conhecimento do Conselho Executivo, que examinou o caso pela primeira vez em sessão privada de nove de outubro.
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A recomendação do Conselho executivo foi no sentido de que a UNESCO, através de seu Diretor Geral, pressionasse o governo da Romênia a fim de que Trokian fosse liberado e reconduzido a Paris.
Impressionado pelo rumo que o assunto estava tomando, o governo romeno declarou que estava disposto a prosseguir no diálogo. Em função desta abertura, o Diretor de Pessoal da UNESCO viajou, em 20 de outubro, para Bucareste, como representante do Diretor Geral, para abrir conversações sobre o assunto que já adquirira o caráter de internacional.
Trokian, desconhecendo o que se passava nos altos escalões do governo, passou a ser incomodado, num verdadeiro assédio moral, pela Securitate (departamento de espionagem e contraespionagem da Romênia).
= Em nenhum país do mundo — disse-lhe o assistente do vice-ministro — um simples cidadão pode se opor ao Chefe de Estado. O Diretor Geral da UNESCO não pode recusar-se a acatar sua demissão.
Dias antes da chegada do Diretor Geral da UNESCO a Bucareste, Trokian foi convocado pelo Comitê Geral do Partido Comunista. Ficou surpreso com as declarações do Chefe da Divisão de Relações Exteriores:
= O Partido não tem o quê censurar o companheiro Trokian. O senhor só foi detido no país porque já está há muito tempo no exterior.
E mudando de tom, acrescentou:
— O Senhor tem de compreender que a Romênia, que tem conseguido resistir às pressões do seu grande vizinho do Leste, não irá ceder às pressões do Estado UNESCO.
= Nesse ponto o senhor está equivocado = Trokian respondeu com altivez e coragem. = A UNESCO não é um Estado, e sim uma comunidade de cerca de 150 Estados-membros, contra a qual a Romênia nada ganharia se indispondo.
= Por outro lado = prosseguiu o chefe da reunião = recomendo que o senhor diga claramente ao representante da UNESCO, que não tem intenção de voltar a Paris.
= Mas esta não é minha vontade. Não vou mentir para salvar aparências. = Respondeu Trokian.
Ao chegar a Bucareste o Diretor de Pessoal, Luis G.Marques, que vinha representando o Diretor Geral da UNESCO, encontrou-se, antes de tudo, com Trokian para informar-lhe como a UNESCO havia reagido ante as atitudes ambíguas do governo da Romênia.
=Nós estamos fazendo o possível e até o impossível para mantê-lo como nosso funcionário, disse Marques.
=Ante o que o senhor me está relatando, confirmo a minha intenção de reassumir o meu posto tão logo seja possível.
No dia seguinte, Trokian foi ao Comitê Central para comunicar ao seu interlocutor habitual a decisão comunicada ao senhor Marques.
=Não vou confirmar o pedido de demissão e reassumirei meu cargo na UNESCO tão logo tudo esteja resolvido aqui... embora eu nem saiba mesmo porque estou retido.
=Seu comportamento o coloca numa situação muito grave = me respondeu o burocrata. =Seu problema já não é mais de minha competência.
Quando a UNESCO começou a pressionar o governo romeno foi obrigado a criar uma situação de fato para justificar a detenção de Trokian. Surgiu uma cobrança de uma dívida do engenheiro, no valor de 70.000 francos, para com o Estado romeno, cuja lei estabelecia que todo cidadão que trabalhava no exterior devia entregar ao governo a maior parte de seu salário. Uma coisa parecida com um hiper-imposto de renda. Apesar de já haver recolhido cerca de 120.000 francos referentes a rendimentos dos anos anteriores, Trokian prontificou-se a pagar o valor cobrado, assim que tivesse condições financeiras. O que realmente aconteceu em janeiro de 1977, quando a UNESCO adiantou este valor a Trokian, a título de salários futuros, o que colocou um ponto final às exigências do governo de Bucareste.
Mesmo assim, Trokian não foi liberado para voltar a Paris. Em quatro de março de 1977 o sul da Romênia foi sacudido por um terremoto. Trokian foi então “convocado” para prestar serviço militar na unidade encarregada de reconstruir uma cidade situada a cerca de 100 quilômetros de Bucareste, quase totalmente destruída pelo terremoto.
A convocação estabelecia um período de cinco meses de trabalho “voluntário”, ao qual Trokian se submeteu. No terceiro mês, contudo, ficou doente, com hepatite. Ficou vários dias sem assistência médica e quando foi atendido, estava bastante debilitado.
O comandante ordenou então que ele fosse recambiado a Bucareste, para ser internado em um hospital público.
Acompanhado de dois policiais, franco e abatido, Trokian chegou à sua casa para apanhar objetos pessoais. Despediu-se da mulher e da filha, sem saber para onde iria nem quando tornariam a vê-lo.
A pressão sobre a família também aumentou. O telefone da casa de Trokian havia sido cortado e os funcionários da Securitate visitaram diversas vezes a mulher e a filha, ordenando-as que se abstivessem de qualquer contato com UNESCO, sob pena de ser ele julgado por um tribunal militar e elas próprias serem detidas.
Por mero acaso, um amigo de Trokian o viu no hospital e correndo sério risco, informou à mulher e à filha o seu paradeiro. Mas elas nunca puderam visitá-lo enquanto ele permaneceu hospitalizado.
Havia uma corrida contra o tempo. Já corria o mês de junho de 1977 e o contrato de Trokian com a UNESCO iria vencer-se em 31 de outubro. As autoridades romenas faziam todo tipo de pressão e ameaças a Trokian e sua família, a fim de que ele pedisse formalmente que seu contrato não fosse renovado. E o Diretor da UNESCO mantinha pressão sobre o governo, a fim de que o funcionário fosse liberado e, embora doente, pudesse reassumir seu cargo em Paris.
Em julho, Trokian conseguiu alta do hospital. Mas, ao sair, foi advertido para tomar muito cuidado devido ao seu estado de fraqueza e aos perigos de acidentes de trânsito, bastante frequentes em Bucareste.
Entrementes a UNESCO enviou um emissário especial, com poderes especiais para tratar exclusivamente do caso do retorno de Trokian ao seu cargo em Paris. Protelações de todos os tipos foram feitas pelos funcionários e pelo vice-diretor de relações internacionais da Romênia.
A família de Trokian era vigiada constantemente e recebia frequentes visitas de membros da Securitate acompanhadas de ameaças veladas ou acintosas.
Trokian conseguiu encontrar-se com o representante da UNESCO, Sr. Rigaud, em uma entrevista cercada de mistério e perigo. Relatou então ao seu superior da UNESCO o tipo de vida a que estava sendo submetido tanto ele quanto sua família, às ameaças que sofria e à falta de segurança.
= A vida que nos tem sido imposta desde junho de 1976 não é vida. Minha mulher e eu estamos dispostos a aceitar a morte, mas vamos morrer de pé! = disse Trokian ao Sr. Rigaud, naquele encontro.
E concluiu:
=De modo algum estou renunciando ou pedindo desligamento de meu cargo na UNESCO.
Em função desta afirmativa, o contrato de Troikan com a UNESCO foi prorrogado por mais dois anos.
O assunto tornara-se então, de domínio público. Na época da Guerra Fria, informações deste tipo de evento constituíam um “prato feito” para a mídia da Europa e dos Estados Unidos. O que resultou em mais pressão sobre Troikan e família.
Em 13 de dezembro, Troikan foi acusado de “traição por transmissão de segredos” quando estava em Paris. A acusação seria “haver passado para agentes de uma organização estrangeira (no caso, a UNESCO) informações que, se utilizadas, punha em perigo a segurança do Estado Romeno”.
Foram concedidos a Troikan dois dias para contestar por escrito a acusação. Troikan respondeu rapidamente (pois já estava preparado para este tipo de “ardil 22”). Citou, em seu arrazoado, entre outras coisas, que a UNESCO não era uma organização estrangeira e que as informações técnicas que porventura havia fornecido no exercício de suas funções, eram dados de engenharia civil conhecidos e disseminados pelo mundo inteiro.
=Após esta carta, tenho certeza que vão me prender de verdade. = Disse à esposa e à filha.
Diferente do que pensava, não foi preso. As autoridades permitiram-lhe livre trânsito pela cidade, com obrigação de se apresentar à sede da Securitate todos os dias, às oito da manhã. Invariavelmente, sua permanência no departamento da polícia secreta ia até à noite, muitas vezes até ás 22 horas.
Eis o que ele mesmo diz:
=Pude descobrir o que até aquele momento só havia visto no cinema: os amplos corredores cheios de portas, cada qual com uma lâmpada vermelha em cima, que se acendia quando havia alguém lá dentro. As salas onde ocorriam os interrogatórios tinham trancas nas janelas, e havia muitos equipamentos de escuta, gravação e parafernália que se viam nas películas de James Bond.
Os interrogatórios se estendiam por horas e horas. Troikan ainda se lembra dos tipos de perguntas que os impressionantes policiais faziam repetidamente:
=Você reconhece haver transmitido cartas ao Diretor Geral (da UNESCO)?
Ou
=Quando você se encontrou pela primeira vez com o Diretor de Pessoal da UNESCO?
Ou então:
=Quais as informações que você passou para (o pessoal) da UNESCO?
Eram perguntas idiotas, óbvias, para as quais já havia respostas ou eram do conhecimento dos agentes de segurança. Usavam a técnica de perguntar à exaustão, até que num deslize causado pelo cansaço, o interrogado caia em contradição = e então, estava perdido.
Troikan não caiu na armadilha de responder ou de dialogar com os seus algozes. Respondia invariavelmente:
=Recuso-me a responde a esta pergunta.
Desapontados, os inquisidores ameaçavam:
=Agindo assim, você está facilitando sua iminente condenação.
=Melhor = respondia Troikan. = Assim voltarei mais rápido a Paris.
Passado algum tempo, os agentes dos interrogatórios viram a inutilidade de seus esforços. As sessões acabavam mais cedo, porém mantinham Troikan na sala, enquanto conversavam entre si coisas alheias ao caso.
As técnicas da policia secreta nos países comunistas eram aparentemente sem sentido e raivam ao absurdo. Enquanto a pressão dos interrogatórios diminuía, a polícia agia em outra extremidade.
No dia 25 de outubro, os agentes da Securitate invadiram a casa do “prisioneiro internacional” invadiram a casa de Troikan de madrugada, para efetuar a busca e a apreensão de seus bens. Era uma operação de intimidação, deixando Troikan a família com a certeza de que condenação estava próxima.
Contudo, alguns dias depois, ou seja, em 12 de novembro, Troikan foi convocado ao gabinete do Vice-Ministro de Relações Exteriores. , que, derramando-se amabilidades, disse:
=Decidi terminar com as investigações, por falta de razões válidas. E para provar nossa generosidade, vou permitir sua filha voltar a Paris para recomeçar seus estudos universitários.
=E quanto a mim? Quando poderei voltar a Paris?
=Veremos... = foi a resposta imprecisa do vice-ministro.
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Em casa, cansado e aborrecido, Troikan confessou à esposa:
=Para mim, estão armando uma outra armadilha.
Mas dois dias depois a filha Marika foi chamada ao Departamento de Relações Exteriores, onde recebeu de volta seu passaporte, com autorização para viajar a Paris.
Mesmo quando a moça partiu, Troikan viveu horas de angústia.
=Quem sabe não a teriam levado para outro lugar...?
Porém, algumas horas depois Marika telefonou para dizer que estava sã e salva em Paris.
No Dia seguinte, ainda satisfeito por saber que pelo menos a filha estava foram do affair que havia se constituído a situação em que se encontrava. Troikan foi de novo convocado pelo vice-ministro, que lhe disse, sem rodeios:
=Fomos generosos com você, agora lhe cabe dar mostras de gratidão ajudando-nos a acabar com o conflito com a UNESCO.
=Não tenho conflito nenhum a resolver. = Respondeu Troikan, cuja resistência já estava chegando ao fim. = O Problema é do governo, não meu.
Ignorando as palavras de Troikan, o vice-ministro prosseguiu:
=Dentro de alguns meses você poderá sair do país e encontrar com sua filha, se assim o desejar.
=O direito de reiniciar seus estudos, concedido a minha filha, parece-me perfeitamente normal. Ela nada tem a ver com a situação que o governo romeno criou comigo. Por que razão deveria eu mudar de postura que venho mantendo desde o início?
Saiu dali sem uma resposta do vice-ministro.
A conversa prosseguiu por muitos dias seguintes. A tecla era a mesma.
Após duas semanas de “diálogo”, o tom mudou novamente.
=Se você continuar se recusando a colaborar = disse o vice-ministro = sua filha será morta em Paris ou então trazida à força à Romênia. Já fizemos isto várias vezes.
Troikan levou a sério esta ameaça e comunicou-se com o Diretor Geral, em Paris, que imediatamente pediu (e obteve) da Securité Française uma proteção especial para Marika.
Pelo Natal de 1977, Troikan já não sabia se as coisas estavam piorando ou melhorando...
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Dezembro de 1977 e janeiro seguinte foram marcados por um período de relativa trégua. Os interrogatórios cessaram, as entrevistas também e Troikan parecia ter sido esquecido pelas autoridades de seu país.
Em fevereiro, a imprensa começou a divulgar fragmentos de uma declaração que Troikan havia escrito para a filha e ela tinha tornado pública. Entre outras coisas, dizia:
“A tragédia que tenho vivido desde junho de 1976 é agravada, sobretudo, pelo fato de eu ser prisioneiro de meu próprio país... Minha fidelidade à pátria não é razão para que eu aceite a injustiça que sobre mim se acometeu, para que eu aceite ser vítima de calúnias, de abuso de poder e do desprezo total das leis...”
“Em várias ocasiões os representantes das autoridades romenas utilizaram a argumentação seguinte: “Você é um cidadão romeno, e o Estado pode fazer o que quiser com você”. Como repudio o caráter feudal desse argumento e como qualquer diálogo com o poder está impossível, renuncio à nacionalidade romena”.
Em março de 1978 aconteceu na Romênia, sob a influência de Moscou, aconteceu um dos mais importantes expurgos do regime de Ceausescu, o sanguinário “chefe” do governo comunista, implantado logo depois do final da Segunda Guerra Mundial. Praticamente todos os funcionários do segundo e terceiro escalão na hierarquia do governo caíram em desgraça e alguns foram substituídos, presos outros, tudo dentro do figurino dos governos títeres da União Soviética.
Ao mesmo tempo a pressão internacional e da UNESCO se intensificou. Delegações de caráter governamental ou parlamentar, ao passarem por Budapeste, traziam o assunto para a pauta de discussões. Ceausescu também era questionado, quando visitava outros paises fora da esfera da União Soviética. Em abril diversas entidades internacionais manifestaram-se, condenando a violência da independência da função publica internacional. Em maio, houve uma proposta do Conselho Executivo da UNESCO para levar o conflito até a Corte Internacional de Justiça, em Haia.
Ante tal ofensiva, vinda de muitos lados, Ceausescu finalmente cedeu. Em seis de maio, Troikan foi chamado pelo novo vice-diretor de Relações Internacionais e informado que estava autorizado a voltar a Paris.
Uma semana depois (12 de maio de 1978) Troikan e sua mulher deixaram Bucareste, com passaportes e vistos de turistas. Chegaram a Paris dois dias depois e no dia 16 ele reiniciou seu trabalho na UNESCO.
Após quase dois anos de ausência, Troikan voltava à vida normal. Havia ganhado a partida. Porém as marcas da prova que acabara de atravessar iriam marcá-lo pelo resto de seus dias.
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 24 de março de 2010
Conto 597 da SÉRIE MILISTÓRIAS