596-A BENGALA DE CASTÃO DE OURO de Monteiro Lobato
Não tinha sequer onze anos quando tomou uma decisão drástica: mudar de nome.
Batizado José Renato Monteiro Lobato e apelidado de Juca, passou os primeiros anos como qualquer garoto abastado do interior paulista, no final do século XIX. Não que o incomodasse o nome de batismo ou o apelido. A razão era outra.
Nascido em 18 de abril de 1882, em Taubaté, Juca era filho de próspero fazendeiro, proprietário da fazenda Santa Maria onde os cafezais se estendiam a perder de vista além do horizonte. Com as irmãs menores Teca e Judite, passava grande parte do tempo na casa que a família tinha na cidade e na chácara do avô, Visconde de Tremembé, nos arredores de Taubaté.
Era um menino totalmente integrado na vida da fazenda. Nos anos tenros da infância, brincava com as irmãs de bonecas e bichos feitos de manga verde e chuchu. O pomar era local de proezas e satisfação: vivia trepado nas jabuticabeiras, mangueiras e tudo quanto fosse árvore frutífera. Gostava de pescar nos poços do ribeirão e nadar nas inúmeras cachoeiras da fazenda, que percorria no lombo de seu cavalinho Piquira. Nos passeios pelas matas exercitava pontaria dando tiros a esmo com sua espingarda Flaubert, presente do pai.
Na cidade, era ávido pelos espetáculos de circo de cavalinhos e mais ainda pelos livros da biblioteca do avô.
O Visconde de Tremembé, ao seu tempo um dos homens mais ilustres e esclarecidos da região, era avô de Lobato pelo lado materno. A verdadeira avó materna de Juca foi a professora Anacleta Augusta do Amor Divino, mulher humilde, com a qual o Visconde teve dois filhos, em união não consagrada pelo casamento. Mais tarde, o Visconde se casou com Dona Maria Belmira França, que se tornou viscondessa.
A primeira mulher nunca foi abandonada pelo visconde, mas vivia numa casinha modesta e distante da cidade. Juca a conhecia e nutria por ela grande ternura, ao passo que a esposa legítima era tratada por Juca como a visconda.
Na biblioteca e na chácara do avô, sentia-se mais à vontade do que na fazenda ou na casa da cidade, pois os livros o fascinavam. Principalmente os ilustrados. Um em particular prendia sua atenção pois tinha, logo no início, a reprodução de quadro que retratava o imperador Dom Pedro II. Ao rever a reprodução, Juca relembrava com emoção a figura suave e bem humorada do imperador, que conhecera na última viagem imperial a São Paulo, e quando fora hóspede do avô, ali mesmo, na Chácara do Visconde.
Juca aprendeu com a mãe, do Olímpia, a escrever, ler e contar. Em seguida, continuou o aprendizado com professor particular, como era costume na época.
Foi então que tomou a decisão.
O Pai tinha uma bengala fina, elegante, cujo castão era adornado por duas letras cravadas em ouro: JB (de José Bento). Juca, ou José Renato, como insistia em chamá-lo o primeiro professor Joviano Barbosa, gostava muito daquela bengala, pois era, na ocasião, símbolo da elegância masculina.
Pode-se imaginar o menino, já de olho na bengala do pai, imaginando um artifício para usá-la apropriadamente. Mas como, com as iniciais do pai ali marcando definitivamente e modo irretocável a posse pelo pai?
O jeito é mudar meu nome, pensou José Renato. E anunciou para o professor, a primeira pessoa a saber da “importante” decisão:
— A partir de hoje, meu nome passa a ser José Bento.
— Mas... — começou o professor.
— Sem mas nem meio mas. Fica sendo assim: José Bento Monteiro Lobato.
E assim ficou. Uma amostra da imaginação e determinação do menino que viria a ser o grande escritor Monteiro Lobato.
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 12 de março de 2010
Conto # 596 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS