594-MARCHA SOLDADO, CABEÇA DE PAPEL - Meninice do autor

— Atenção, pelotão! Pé no chão!

Ao comando, nós, os garotos da rua da loja do Tio Gordo, batíamos os pés descalços na areia.

— Arma no ombro!

Os cabos de vassoura eram colocados no ombro. Alguns não portavam cabos de vassoura e sim galhos retos de alguma árvore frutífera dos quintais de suas casas. Nas cabeças, a gente punha um “chapéu” feito de jornal: com poucas dobras se conseguia uma pirâmide, com as pontas coladas com cuspe, que era para o chapéu manter-se firme. Cada qual tinha de providenciar sua espingarda de pau e seu capacete de jornal dobrado.

Waltinho se atrapalhou, bateu com a sua arma no próprio chapéu de papel, que caiu. Rapidamente se recompôs antes mesmo de o capitão gritar:

— Maaaaaarche!

A fila de dez ou doze garotos começou a marchar. Uma marcha mole, cada qual no seu passo. Cada um vigiava o companheiro da frente, dizendo Acerta o passo! ou Anda na Linha! ou Mais depressa, sô!

O capitão Luizinho era o único que calçava botinas. Era regra do jogo, o capitão tinha de estar calçado. Como o Luizinho era o maior da turma e andava sempre de botinas, se impunha como capitão. Não se incomodava muito com a disciplina, deixava a gente à vontade para conversar na fila.

Quando o batalhão se aproximava do poste de madeira, que era da empresa de força e luz mas servia muito mais para amarrar cavalos, ou marca para nossos jogos, ouvia-se outra ordem:

— Paaaarado!

Parávamos de supetão. Algumas armas se chocavam, e embolávamos na formação.

— Cada um pro seu lado. Corre!

Aí, acontecia uma separação: a metade ia para calçada “de cá”, a outra para a calçada “de lá”. A gente corria e se escondia com podia: nos vãos das portas, nos alpendres das casas, e tinha até quem entrasse na loja do Tio Gordo.

E começava a guerra!

— Pa-pa-pa!

Cada qual apontava suas “armas” na direção do inimigo, que estava do outro lado.

— Pum! Pum!

A algazarra era grande e nem todos os moradores da rua gostavam. Seu Ludovico, um velho muito velho, que não saia de casa, só punha a cabeça de fora da janela entreaberta, de feições sombrias que a gente nem via direito, espantava algum de nós que se atrevesse a esconder-se no seu jardim.

— Sai, sai! Vou chamar seu pai! Cambada de moleques!

A gente fingia que não ouvia e prosseguia.

— Ta-ta-ta !

— Te acertei. Morre!

Um fingia ter sido atingido, rolava no chão. O capitão não se envolvia no combate, ficava perto do poste, dando ordens.

— Avançaaaar!

Então todo mundo saía dos “esconderijos” e ia pro meio da rua.

Não havia perigo de trânsito. A rua costumava ser deserta naquela hora da manhã: as carrocinhas de pão e de leite já haviam passado. Transitava apenas o Tunico Bananeiro, com sua charrete de bananas, ou então o Martinho Verdura, que vinha de bicicleta, com a enorme cesta de verduras amarrada no bagageiro. Nada que pudesse atrapalhar as manobras.

Então, no que a gente se encontrava no meio da rua, os paus e galhos transformavam-se em espadas e a luta era de espadachins.

O capitão gritou para Tuim, que ficou deitado no passeio:

— Soldado, vem pra luta!

Tuim, malandramente, não queria entrar na luta do meio da rua, gritou de volta:

— Ai! Num posso! Tô ferido!

E ficava por isso mesmo. A luta no meio da rua levantava poeira.

Não havia agressão, era tudo no faz-de-contra. Poucas vezes acontecia de um cabo de vassoura bater na cabeça ou nos braços do adversário.

Quando o chapéu caia da cabeça, o soldado estava vencido, fora de combate. Havia momentos em que eu não sabia se me defendia do inimigo ou se segurava o chapéu de papel para não cair.

Julinho trazia um galho de jabuticabeira, e deixava na ponta uma pequena forquilha, que servia de gancho para rasgar o chapéu e tira-lo da cabeça do inimigo mais próximo.

Até hoje, passados mais de sessenta anos, procuro descobrir de onde vinha aquela brincadeira, aquele espírito bélico. Estava o mundo envolvido pela terrível Segunda Guerra Mundial, mas as notícias eram poucas. Lembro-me do impacto que foi a convocação de quatro homens da cidade para servir o exército, eufemismo de “ir pra guerra”. Mas a arraia miúda nem percebia essas coisas. Ou percebia?

Não havia nem fotos da guerra nem exemplos em que a garotada pudesse se inspirar. Nas matinês do cinema era só fitas do Gordo e o Magro e seriados de Nioka, a Deusa das Selvas, ou de Roy Rogers, Rim-Tim-Tim e Lassie.

A manhã ia-se nesta brincadeira. Já era quase hora do almoço quando surgiam no final da rua os dois caminhões da companhia de estrada de ferro, carregados de lenha. Eram lentos, subiam rua acima com os motores gemendo; era a hora de acabar a brincadeira. A fome e o chamado de algumas mães, nas janelas, punha ponto final na batalha daquela manhã.

Sem vencedores nem vencidos. Era tudo coisa do país do faz-de-conta.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 5 de maio de 2010

Conto # 594 da SÉRIE 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 24/12/2014
Reeditado em 24/12/2014
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